Análise funcionalista de uma abordagem do processo de lavagem de dinheiro quanto ao bem jurídico

AutorPedro H. C. Fonseca
Páginas111-143
8
ANÁLISE FUNCIONALISTA
DE UMA ABORDAGEM DO
PROCESSO DE LAVAGEM DE DINHEIRO
QUANTO AO BEM JURÍDICO
8.1 INTRODUÇÃO
Na medida em que a dogmática passa a trabalhar em torno da função do Direito
penal tomam forma novas teorias pós-f‌inalismo, construídas ora em volta da proteção
do bem jurídico, ora com abordagem da relação normativa entre a expectativa social e a
conf‌iança, ora com avanço do Neokantismo, ora vinculando o comportamento humano
à mera concepção normativa, ora com base reducionista, outrora com apoio do dirigismo
penal vinculado pelo controle social. Diante de tais concepções, novos conceitos analí-
ticos do delito são formados, de forma que os elementos ancorados por Welzel passam a
ser movimentados de acordo com a f‌ilosof‌ia funcionalista adotada. Diante desses novos
contextos, analisa-se a posição do bem jurídico na lavagem de dinheiro.
8.2 NORMATIVISMO MONISTA FUNCIONAL-SISTÊMICO DE GÜNTHER
JAKOBS E A SUA RELAÇÃO COM O BEM JURÍDICO PENAL NA LAVAGEM
DE DINHEIRO
O Direito penal é direcionado pela função que cumpre no sistema social. Tem
suas próprias regras e submete-se a elas próprias. Representa um sistema autônomo,
autopoiético e autorreferente que vigora dentro de um outro sistema mais amplo.1 O
delito, neste sistema, representa uma disfunção do funcionamento do sistema, que
pode ser corrigido dentro do próprio sistema. O Direito penal busca a manutenção
da sociedade pela proteção das normas, de modo que há confusão entre a função
do Direito penal e o bem jurídico, quando Günther Jakobs2 af‌irma “a vigência da
norma como bem jurídico penal.”
1. JAKOBS, Günther. Dogmática de derecho penal y la conf‌iguración normativa de la sociedad. Madrid: Thomson
Civitas, 2004. p. 75.
2. JAKOBS, Günther. Dogmática de derecho penal y la conf‌iguración normativa de la sociedad. Madrid: Thomson
Civitas, 2004. p. 75.
EBOOK LAVAGEM DE DINHEIRO.indb 111EBOOK LAVAGEM DE DINHEIRO.indb 111 01/07/2021 15:55:2901/07/2021 15:55:29
LAVAGEM DE DINHEIRO – ASPECTOS DOGMÁTICOS • PEDRO H. C. FONSECA
112
O normativismo monista funcional-sistêmico tem o delito como toda conduta
violadora da norma, disfuncional às expectativas sociais de convivência. Contudo,
tal posição não atribuiu inovações no sistema conceitual analítico do delito, consi-
derando crime o fato típico, antijurídico e culpável.
Ocorrendo a frustração das expectativas normativas, a sanção penal será apli-
cada como conf‌irmação da vigência da norma infringida. A f‌inalidade é prevenir o
crime por meio da conf‌irmação da norma. Por isso, há adoção da prevenção geral
positiva ou integradora. O Direito penal existe para proteger a norma, e por via
indireta, protege bens jurídicos. O Direito penal serve para manter a conf‌iança dos
cidadãos no sistema. O bem jurídico penal que deve ser protegido é a f‌irmeza das
expectativas normativas diante de sua frustração. Nesse sentido, o crime é também
a desobediência à norma. O delito é o símbolo da falta de f‌idelidade ao Direito, e a
pena reforça o conteúdo da norma.
Com a teoria da imputação normativa, adaptou-se o Direito penal à teoria dos
sistemas sociais de Luhmann.3 Há um afastamento da neutralidade e imutabilidade
das construções dogmáticas, de acordo com a linha de pensamento de Günther
Jakobs. Reconhece, conforme Hans Welzel4, que o Direito penal tem como função
assegurar os valores éticos e sociais da ação, mas Günther Jakobs realiza um corte
com a metodologia f‌inalista, ao admitir a existência da missão do Direito penal e
não a essência dos objetos da dogmática.
Em 1983, o professor da Universidade de Bonn,5 idealizou um entendimento
normativista do Direito penal, contudo, com características diferentes do que foi
posto por Claus Roxin e contrárias ao ontologismo f‌inalista de Hans Welzel.
Pelo normativismo monista funcional-sistêmico de Günther Jakobs, os limites
necessários para a evolução da estrutura do sistema penal estão no interior do próprio
sistema, não admitindo os limites externos, de modo que não há como não notar
uma radicalização do critério funcional. Diante disso, Günther Jakobs6 entende que
o Direito penal representa um sistema normativo fechado, excluindo a possibilidade
de qualquer inserção empírica exterior e não normativa no Direito penal.
Por causa disso, limitou a dogmática jurídico-penal à análise normativo-fun-
cional do direito positivado. Não admitiu, assim, considerações empíricas não
normativas e de valorações externas ao direito positivo. O crime, diante da presente
orientação, é uma expressão simbólica da extrema falta de f‌idelidade ao Direito,
sendo também uma real ameaça para a integridade e estabilidade social.
3. JAKOBS, Günther. La imputaticón objetiva en derecho penal. Madrid: Civitas, 1996. p. 95.
4. WELZEL, Hans. Teoría de la acción f‌inalista. Buenos Aires: Editorial Depalma, 1951. p. 20.
5. JAKOBS, Günther. Dogmática de derecho penal y la conf‌iguracción normativa de la sociedad. Madrid: Thonson
Civitas. 2004. p. 51.
6. JAKOBS, Günther. Dogmática de derecho penal y la conf‌iguracción normativa de la sociedad. Madrid: Thonson
Civitas. 2004. p. 97.
EBOOK LAVAGEM DE DINHEIRO.indb 112EBOOK LAVAGEM DE DINHEIRO.indb 112 01/07/2021 15:55:2901/07/2021 15:55:29
113
8 • ANáLISE FuNCIoNALISTA DE umA ABorDAGEm Do ProCESSo DE LAVAGEm DE DINHEIro
O enfoque sistematológico procura proteger funções e bens jurídicos, preten-
dendo, no f‌inal das contas, impor a conf‌iança dos indivíduos no aspecto institucional.
A sanção penal no Direito penal, para Günther Jakobs7, é mera reação diante
de uma violação à norma penal, que é a função de prevenção-integração, devendo
ser def‌inida positivamente. Trata-se de uma forma de demonstração da vigência da
norma, na medida em que, havendo infração a esta, haverá uma consequência legal.
Nesse sentido, ensina Leonardo Siqueira8 o seguinte:
Assim, Jakobs acaba por defender que a pena tem como nalidade exclusiva a conrmação da
realidade das normas, ou dito de outro modo, a pena teria a função de restabelecer as expectativas
normativas, com o objetivo que elas não quem anuladas por sua violação.
Nesse caminho, a pena se dirige a todos os membros da sociedade, para rearmar a vigência da
norma, pois é essa vulneração a norma que se solidica a nalidade da pena, e isso só é possível
caso exista um comportamento responsável, culpável em última instância.
Na linha de pensamento de Günther Jakobs, o Direito penal admite um “bem
jurídico” merecedor de proteção, tutelado pelo Estado, desde que condicionado à
validez fática das normas. Somente com a aplicação da pena se podia esperar o de-
vido respeito aos bens de interesse da sociedade e dos indivíduos. Diante do crime
de homicídio, por exemplo, em que pese signif‌icar uma lesão a um bem, a conduta
“matar alguém” somente deve ser punida porque representa uma oposição à nor-
ma. Da mesma forma, nos crimes de lavagem de dinheiro, o objetivo é proteger a
norma. Não destaca um bem jurídico como nos demais sistemas, pois ocorre seu
esvaziamento para adoção de nova regra, qual seja, a proteção da ef‌icácia das nor-
mas. Nesse sentido, se houver conduta que viole a norma, haverá direcionamento
do sistema para aplicação da pena, pois busca-se a f‌idelidade à norma, ao Direito,
ao ordenamento jurídico.
Assim, em vez de o criminoso escolher praticar uma conduta sem valor jurídico,
atua com dolo ou culpa e escolhe realizar um comportamento que gera consequên-
cias jurídicas. Trata-se de um normativismo radical, que confere enorme dif‌iculdade
em qualquer tentativa de limitar o poder punitivo estatal. Por causa disso, o que
realmente importa, a proteção de bem jurídico, é deixado de lado em prol de um
símbolo de Direito penal, qual seja, a proteção à norma.
O sistema de Günther Jakobs abre portas para justif‌icar e tornar legítimo sistema
jurídico de imputação de penas, podendo, inclusive, validar um sistema de máxima
e ilimitada intervenção do Estado, sem violar bem jurídico o.
Günther Jakobs procura orientar seu pensamento no sentido de que, com a
ocorrência da conduta, o Direito penal está destinado a garantir a identidade norma-
7. JAKOBS, Günther. La imputaticón objetiva en derecho penal. Madrid, Civitas, 1996. p. 94.
8. SIQUEIRA, Leonardo. Culpabilidade e pena: a trajetória do conceito material da culpabilidade e suas rela-
ções com a medida da pena. Coordenação de Cláudio Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016.
p. 126. v.7. (Coleção Ciência Criminal Contemporânea).
EBOOK LAVAGEM DE DINHEIRO.indb 113EBOOK LAVAGEM DE DINHEIRO.indb 113 01/07/2021 15:55:2901/07/2021 15:55:29

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT