Aspectos polêmicos dos regimes de bens

AutorEduardo Anesi Nogueira
Ocupação do AutorMestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Doutorando em Direito Público na mesma instituição. Auditor Fiscal da Receita do Estado do Rio de Janeiro
Páginas259-293
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ASPECTOS POLÊMICOS DOS REGIMES DE BENS
Eduardo Anesi Nogueira1
Sumário: Introdução. 1. Nossa concepção sobre o instituto da sociedade
conjugal. 2. Sociedade conjugal em nove pontos controvertidos sobre
regime de bens. 2.1. Mancomunhão vs. Condomínio Pro Indiviso três
fases do patrimônio societário. 2.2. Separação de bens e a “armadilha” do
codificador de 1916. 2.3. Separação obrigatória e o verbete nº 377 da
Súmula do STF. 2.4. Autorização conjugal e o regime da separação de
bens. 2.5. “Uma separação obrigatória para chamar de sua” – é possível
pactuar a incomunicabilidade dos aquestos e a livre gestão patrimonial?
2.6. Regime legal supletivo passado, presente e futuro. 2.7. Mutabilidade
do regramento matrimonial. 2.8. Projeção sucessória do regime de bens e
a “armadilha” do codificador de 2002. 2.9. Pacta corvina vs. pacto
sucessório renunciativo. Conclusão. Referências.
Introdução
O estudo da sociedade conjugal o mais conhecido de todos os
tipos societários envolve diversos elementos do Direito de Família,
alguns ainda hoje pouco compreendidos, como a autorização conjugal
sobre atos de disposição, a meação e o patrimônio societário.
Com a dissolução da sociedade conjugal, os bens societários já
passam da comunhão ao condomínio pro indiviso ou permanecem em
estado de indivisão até a partilha? Quais são os verdadeiros contornos da
meação e quando ela surge? Como funciona uma sociedade conjugal na
aquisição e alienação de bens? Por quais fundamentos se pode afastar a
incidência do verbete nº 377 da Súmula do STF pelo pacto antenupcial?
Isso equivaleria eleger o regime da separação convencional em lugar da
separação legal? É possível afastar a necessidade de vênia conjugal no
1 Mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Doutorando em Direito
Público na mesma instituição. Auditor Fiscal da Receita do Estado do Rio de Janeiro.
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regime da separação obrigatória no pacto em que se estipular a
incomunicabilidade dos aquestos?
Buscar-se oferecer respostas a estas e a outras questões
instigantes sobre a matéria. Quanto ao escopo do presente trabalho, para
poder tratar com profundidade nos temas mais difíceis, somente será objeto
de estudo a sociedade conjugal, não estando abrangidas questões atinentes
à sociedade convivencial e à sociedade concubinária.
O artigo se divide em duas partes. Primeiro, é oferecida nossa visão
sobre o complexo instituto da sociedade conjugal, que tem o chamado
“regime de bens” como seu estatuto, a regular sua constituição e
funcionamento. Segundo, são abordados nove aspectos controvertidos
envolvendo regime de bens, sempre à luz da concepção de sociedade
conjugal apresentada na primeira parte.
1. Nossa concepção sobre o instituto da sociedade conjugal
Embora o Código Civil não tenha tratado o tema de forma
organizada, é possível identificar que o casamento faz nascer uma unidade
jurídica complexa, com vida própria e contornos bem definidos: a
sociedade conjugal. Sustentar-se-á no presente trabalho que essa sociedade
sui generis2em muito se aproxima de uma sociedade de pessoas do Direito
de Empresa.
A sociedade conjugal, com expressa previsão na Constituição
Federal de 19883, mesmo não sendo dotada formalmente de personalidade
jurídica, possui (i) ato constitutivo, (ii) patrimônio próprio, (iii) modo de
ser e (iv) existência no tempo perfeitamente delimitada.
O ato constitutivo da sociedade conjugal ou seu estatuto formal
é, em regra, o pacto antenupcial, que deve ser feito necessariamente por
escritura pública4, antes da celebração do casamento5, somente produzindo
efeitos perante terceiros com o registro no Livro nº 3 (Registro Auxiliar),
2 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tra tado de dir eito privado. Atualizado por Rosa
Maria Barreto Borriello de Andrade Nery. 1ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. t.
VIII, p. 419.
3 “Art. 226. (...) § 5º Os d ireitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente
pelo homem e pela mulher” (Grifo nosso).
4 Cf. art. 1.653, CC/2002, em correspondência ao art. 256, parágrafo único, I, CC/1916.
5 Cf. art. 1.639, caput, CC/2002, em correspondência ao art. 256, caput, CC/1916.
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do oficial de Registro de Imóveis do domicílio dos cônjuges6 sede da
sociedade conjugal7. Celebrado o casamento, sendo tal pacto nulo ou
ineficaz, a sociedade conjugal será integralmente disciplinada pelo
regramento supletivo definido pelo legislador civil8.
Uma outra possibilidade, caso seja da própria vontade dos
nubentes a pactuação da sociedade nos exatos moldes do regramento
supletivo, fica dispensada a forma de escritura pública, servindo como ato
constitutivo a mera opção pela adesão ao regime legal, reduzida a termo no
processo de habilitação perante o Registro Civil das Pessoas Naturais
competente9.
Passando à distinção patrimonial, que pressupõe comunhão de
bens em alguma medida10, tem-se como inconfundíveis o patrimônio
particular de cada um dos cônjuges11 e o patrimônio da sociedade
6 Cf. art. 178, V, da Lei nº 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos) e art. 1.657, CC/2002, em
correspondência ao art. 261, CC/1916.
7 Cf. art. 1.569, primeira parte, CC/2002.
8 Cf. art. 1.640, caput, CC/2002, em correspondência ao art. 258, caput, CC/1916.
9 Cf. art. 1.640, parágrafo único, CC/2002.
10 Entende-se que regimes de bens como o da separação absoluta, em que não há nenhuma possibilidade
de comunicação patrimonial, não se conformariam na ideia de uma sociedade conjugal propriamente
dita, pelo menos para os objetivos do presente trabalho. Sem possibilidade de formação de patrimônio
distinto, a impropriamente chamada “sociedade conjugal” seria meramente uma relação jurídica
complexa (art. 1.688, do Código Civil de 2002) limitada aos efeitos pessoais do casamento, inclusive
quanto à vocação hereditária ainda assim bem definida, com começo e fim de sua existência
delimitados, bem como seu modo de existir. Esta parece ser a posição de Pontes de Miranda, analisando
a sociedade conjugal e o regime de bens à luz do Código Civil de 1916: “Não se diga que é
conseqüência necessária do casamento. Pode existir casamento sem regime matrimonial de bens, isto
é, todos os interêsses dos cônjuges entre si e nas suas relações com terceiros ficariam sob as regras de
direito das obrigações e de direito das coisas, sem qualquer influência do fato e da situação do
casamento. Dependeria do direito positivo. Mas, para que tal se desse, seria preciso não só que a
separação dos bens fôsse absoluta, como se não tivesse havido e não houvesse casamento, como
também que a mulher e o homem não precisassem da vontade, expressa ou tácita, do outro cônjuge
para a prática dos atos que dizem respeito aos bens. Aliás, se só existe a exigência sem se estabelecer
qualquer limitação na circulação dos bens, como simples formalidade, embora seguida de sanções de
nulidade e de anulação, ainda não há regime matrimonial de bens”, cf. PONTES DE MIRANDA,
Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Atualizado por Rosa Maria Barreto Bo rriello de
Andrade Nery. 1. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. t. VIII, p. 298. Sobre esta
passagem, ressalta-se que o dispositivo relacionado à necessidade de vênia conjugal para dispor sobre
bens imóveis “qualquer que seja o regime” (arts. 235, 242 e 276, CC/1916) n ão foi reproduzido no
Código atual, em que há previsão expressa de livre disposição de todo o patrimônio quando no regime
da separação convencional (arts. 1.647 e 1.687, CC/2002). Sobre o tema, para Eduardo de Oliveira
Leite, “[e]nquanto a comunhão parcial forma três massas distintas (ou acervos) de bens, os particulares
do marido, os particulares da mulher, e os comuns (ou aquestos), na separação existem apenas dois
acervos, os bens do marido e os bens da mulher (...). Ou seja, o c asamento gera comunhão de
efeitos pessoais, mas não de efeitos patrimoniais” (Grifos nossos), cf. LEITE, Eduardo de Oliveira.
A “armadilha” do regime de separação de bens e a humanização do direito de família brasileiro.
Revista Brasileira de Direito Civil RBDCivil, Belo Horizonte, v. 17, p. 83-102, jul./set. 2018, p. 87.
11 Aqui compreendidos os chamados bens particulares, seja de titularidade exclusiva de um dos
cônjuges, ou até mesmo em eventual condomínio por regime de frações ideais.

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