Novos dilemas da autoridade parental: impactos da sociedade tecnológica na vida de crianças e adolescentes

AutorMarina Giovanetti Lili Lucena
Ocupação do AutorDoutoranda em Direito Civil na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Páginas381-412
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NOVOS DILEMAS DA AUTORIDADE PARENTAL:
IMPACTOS DA SOCIEDADE TECNOLÓGICA NA VIDA DE
CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Marina Giovanetti Lili Lucena1
Sumário: Introdução; 1. Análise histórica da autoridade parental; 1.1 A
reformulação da família com a Constituição de 1988; 1.2 Conceito e
conteúdo da autoridade parental; 1.3 Extinção, suspensão e perda do poder
familiar; 2. O instituto da guarda compartilhada no Brasil; 2.1 Conceito e
conteúdo da guarda compartilhada; 3. Questões polêmicas: tecnologia,
autoridade parental e guarda compartilhada; 3.1 Liberdade e autonomia
individual dos filhos versus dever de cuidado e educação dos pais no
mundo online; 3.2 Sharenting; 3.3 Exposição de dados pela Internet das
Coisas; 4. Proteção de dados de crianças e adolescentes no mundo online:
situação atual e perspectivas para o futuro; Conclusão; Referências.
Introdução
A sociedade, nas últimas décadas, sofreu alterações econômicas,
culturais e tecnológicas. O Direito, como elemento integrante da
sociedade, deve se adaptar de acordo com os impactos dessas mudanças.
No Direito das Famílias, em especial, tais transformações foram profundas
e alteraram os institutos existentes, bem como possibilitaram novas
interpretações daqueles já existentes.
O objetivo do presente artigo é analisar as alterações sofridas pela
autoridade parental, trazendo reflexões sobre alguns dilemas vivenciados
pelos pais em razão do desenvolvimento tecnológico. Esses impasses se
tornam ainda mais marcantes nos casos de guarda compartilhada, quando
a responsabilidade pelos filhos é dividida pelos pais.
1 Douto randa em Direito Civil na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). O presente
trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -
Brasil (CAPES) Código de Financiamento 001.
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Na sociedade tecnológica há grande processamento de dados e
agilidade no compartilhamento de informações. A exposição online e o
armazenamento de dados podem trazer discriminações e danos no presente
e no futuro dos jovens, causando lesões para sua privacidade e sua
autodeterminação informativa. Nesse sentido, é necessário refletir sobre os
novos contornos da autoridade parental. A presente análise enfocará nas
alterações legislativas, sociais e econômicas após a publicação do Código
Civil brasileiro de 2002.
Serão abordados o desenvolvimento e as modificações da
autoridade parental e da guarda compartilhada no Brasil, além dos novos
desafios em razão do impacto da tecnologia para a aplicação desses
institutos. Serão analisadas três questões principais: o controle feito pelos
pais sobre o uso de internet pelos filhos, o compartilhamento excessivo de
imagens e informações dos filhos feito pelos próprios pais e o uso de
brinquedos conectados à internet. Tratam-se de pontos polêmicos e que
merecem análise urgente, já que o contato com o mundo online ocorre com
frequência crescente entre os jovens.
Sobre a metodologia empregada, a pesquisa realizada tem como
principais fontes os documentos2. Na revisão bibliográfica serão analisadas
as doutrinas jurídicas sobre os institutos da guarda compartilhada e da
autoridade parental, principalmente. Além disso, serão fontes documentais
as legislações brasileiras, notadamente a Constituição Federal de 1988, o
Código Civil brasileiro de 2002 e o Estatuto da Criança e do Adolescente,
além de outras legislações relevantes para a presente análise. A partir dessa
análise, serão obtidas conclusões sobre a autoridade parental na sociedade
tecnológica.
1. Análise histórica da autoridade parental
No Direito romano existia o pátrio poder, com o posto de chefe da
família ocupado pelo homem, que detinha posição superior na hierarquia
2 REGINATO, Andréa Depieri de A. Uma introdução à pesquisa documental. In: MACHADO, Maíra
Rocha (org.). Pesquisar empiricamente o direito. São Paulo: Rede de Estudos Empíricos em Direito,
2017. p. 189.
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familiar3. Sendo assim, o patriarca tinha sob sua autoridade e dependência
os demais membros da família4. Assim era a figura do pater familias.
No Brasil houve influência do pátrio poder romano, até mesmo em
razão da importação de legislações originárias de Portugal, como as
Ordenações Filipinas, que possuíam origem no Direito romano e foram
vigentes no Brasil até o Código Civil de 1916. Originariamente, nas
Ordenações Filipinas, o pátrio poder perdurava até que o filho fosse
independente do pai, sem determinação de idade. Com as mudanças
culturais, em 1828 fixou-se a maioridade em 21 (vinte e um) anos, idade a
partir da qual extinguia-se o poder familiar e a dependência dos filhos5.
Sobre a igualdade entre homens e mulheres, é relevante mencionar
que o Decreto nº 181, de 1890 concedeu à viúva o direito de exercer o
pátrio poder, desde que não tivesse contraído novas núpcias. Trata-se de
inovação interessante, já que permitiu que o pátrio poder fosse exercido
pela mulher6.
O Código Civil brasileiro de 1916 (CC/1916) privilegiava a família
patriarcal, com hierarquia entre os seus membros, na qual a figura
masculina do pai ocupava o posto central na família. O Código também
concedia ênfase para o patrimônio, em detrimento das questões
existenciais, de proteção da pessoa e sua dignidade. Além disso, a família
era fundada somente no matrimônio, excluindo outras formações
familiares.
O artigo 233 do CC/1916 estabelecia que o homem era o chefe da
sociedade conjugal e, como tal, representava legalmente a família, bem
como administrava os bens comuns e da mulher. Era ele quem fixava o
domicílio da família, dentre outras questões.
O artigo 380 do Código de 1916, em sua redação original,
estabelecia que o marido exercia o pátrio poder e era o chefe da família.
Alterado pela Lei nº 4.121/1962, o Estatuto da Mulher Casada passou a
vigorar estabelecendo que o pátrio poder competia aos pais, e era exercido
3 PEGHINI, Cesar Carlo. P oder familiar e gua rda: um caminho assertivo para a devida aplicação da
guarda compartilhada. In: COLTRO, Antônio Carlos Mathias; DELGADO, Mário Luiz (coords.)
Guarda compartilhada . 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 48.
4 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. F amília, guarda e autoridade pa rental. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2009, p. 13.
5 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. F amília, guarda e autoridade pa rental. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2009, p. 19-20.
6 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. F amília, guarda e autoridade pa rental. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2009, p. 20.

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