Questões de gênero e seus impactos nas relações familiares (sobre caminhos e travessias): da total desigualdade formal e material rumo à superação da binariedade do sistema sexo-gênero

AutorManuel Camelo Ferreira da Silva Netto
Ocupação do AutorDoutorando em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Páginas193-228
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QUESTÕES DE GÊNERO E SEUS IMPACTOS NAS RELAÇÕES
FAMILIARES (SOBRE CAMINHOS E TRAVESSIAS): DA
TOTAL DESIGUALDADE FORMAL E MATERIAL RUMO À
SUPERAÇÃO DA BINARIEDADE DO SISTEMA SEXO-GÊNERO
Manuel Camelo Ferr eira da Silva Netto1
“A mudança de sexo e a mig ração são duas práticas
de transiçã o que, questionando a ar quitetura política
e jurídica do colonia lismo patriar cal, da diferença
sexual e do Estado-nação, situa m um cor po humano
vivo nos limites da cidada nia, talvez até da quilo que
entendemos por humanidade”. (PRECIADO, Paul B.
Um Apartamento em Urano: crônicas da travessia,
2020).
Sumário: Introdução; 1. Um ponto de Partida: conhecendo o sistema sexo-
gênero, o patriarcado e a heterocisnormatividade; 2. O Caminho da
Igualdade Formal: relações de gênero e família antes do Código Civil de
2002; 3. O Caminho da Igualdade Material: relações de gênero e famíliaS
após o Código Civil de 2002; 4. Rumo a Novas Travessias: qual o futuro
do gênero na família (ou sobre como o gênero pode vir a ser uma categoria
jurídica superada)? À Guisa de Conclusão: um caminho sem volta;
Referências.
1 Doutorando em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em
Direito Privado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Graduado em Direito pela
Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Advogado. Mediador Humanista. Pesquisador do
Grupo de Pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas (CONREP/UFPE/CNPq) e do Núcleo
de Estudos em Direito Civil Constitucional - Grupo Virada de Copérnico (UFPR/CNPq). Membro da
Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional
Pernambuco (CDSG/OAB-PE). E-mail: manuelcamelo2012@hotmail.com
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Introdução
O trecho que epigrafa este artigo foi retirado do livro “Um
Apartamento em Urano: cônicas da travessia” (2020), do filósofo
espanhol Paul B. Preciado, um dos expoentes internacionais da Teoria
Queer, e não fora escolhido por um acaso. Tal obra trata-se de um
compilado de crônicas escritas pelo autor para o Jornal Francês Libération,
durante seu processo de transição enquanto um homem trans, e, dentre
outras questões, traz diversas reflexões críticas a respeito dos impactos das
relações de gênero no meio social.
Falando especificamente da passagem aqui destacada que,
inclusive, será responsável por nortear a presente discussão , Preciado faz
uma interessante analogia entre o seu processo de transição de gênero e as
práticas migratórias. Ele reporta-se a ambos como “travessias”, uma vez
que se opõem à arquitetura político-jurídica patriarcal do Ocidente,
fazendo com que os indivíduos que passam por tais experiências sejam
enxergados enquanto transgressores da ordem social.
No que se refere ao gênero, especificamente, diz-se que ele possui
uma ligação umbilical com o meio social sob o qual é construído e
normatizado. Esse processo, por sua vez, é responsável pela produção e
conformação dos sujeitos e de seus corpos dentro da uma lógica
exclusivamente binária, a qual os divide em masculinos ou femininos, com
base estritamente em seus caracteres biológicos, e reprime quaisquer
existências que se oponham a essa lógica, tal qual ocorre, por exemplo,
com as pessoas trans.
Nesse diapasão, pode-se dizer que o próprio Direito, em especial o
Direito das Famílias, estruturou-se e ainda estrutura-se com base em
experiências e compreensões diretamente ligadas ao gênero, à sua
dimensão “exclusivamente” binária e aos supostos “papéis” que cada um
deles (masculino/feminino) deve cumprir na sociedade. Por outro lado, não
se pode olvidar, igualmente, que as visões em torno da temática têm sofrido
mudanças, com o passar dos anos, sobretudo em razão da atuação e críticas
levantadas pelos movimentos sociais, especialmente o feminista e o
LGBTQIA+, impactando tanto no corpo social, quanto na sua tutela
jurídica.
Considerando tal contexto, portanto, o presente artigo levanta a
seguinte problemática: quais as principais transformações que podem ser
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observadas no Direito das Famílias brasileiro, ao longo do seu processo de
positivação e interpretação, ao se levar em conta as influências do gênero
enquanto uma categoria sociojurídica de normatização e “normalização”
dos corpos por ele tutelados?
Nesse sentido, em analogia a essa “alegoria da travessia” trazida
por Preciado, visar-se-á explorar os impactos que as questões de gênero
surtiram e ainda surtem na normatização do Direito das Famílias brasileiro
ao longo do seu processo de positivação e interpretação. Assim sendo,
serão buscados os “caminhos” percorridos pela norma jusfamiliarista
nesse contexto específico e as influências do gênero na sua
regulamentação, enfocando, sobretudo, nas “travessias” efetivadas na
tutela da família e o paulatino processo de efetivação da Igualdade
Material nesse cenário.
Para tanto, objetivou-se: a) compreender a estruturação do
chamado sistema sexo-gênero, a partir dos estudos desenvolvidos pela
Teoria Queer em torno da subversão ao binarismo, e a sua influência na
regulamentação do modelo heterocispatriarcal de família; b) investigar as
influências do gênero no Direito das Famílias brasileiro, levando em conta
o início da vigência do Código Civil de 2002, bem como o momento que
o antecedeu e aquele que se sucedeu a partir dos seus 20 anos de vigência;
e, c) analisar prospectivamente as transformações nas relações de gênero
que possam vir a implicar uma superação do seu modelo binário de tutela
na seara jusfamiliarista.
Dessa forma, foi utilizado o método de raciocínio analítico-
dedutivo, com abordagem qualitativa, a partir do emprego das técnicas da
revisão bibliográfica e da pesquisa documental, no intuito de depreender a
relação entre gênero e normatização das famílias no contexto do Direito
Civil pátrio.
1. Um ponto de Partida: conhecendo o sistema sexo-gênero, o
patriarcado e a heterocisnormatividade
Antes de iniciar esta caminhada pelos impactos das relações de
gênero na normatização da família, é preciso que se compreenda, a pr iori,
o seu conceito e como ele apresenta-se dentro de um modelo binário de
imposição de padrões de comportamento que constroem o modo-de-ser e
agir das pessoas no meio social do qual fazem parte. Aqui se está a falar

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