Modelos de paternidade, maternidade e filiação: o parentesco decorrente da socioafetividade ('quando o afeto fala mais alto')

AutorRoberta Leite
Ocupação do AutorMestre em Direito Civil pela UERJ (2018). Doutoranda em Direito Civil pela UERJ. Advogada
Páginas93-134
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MODELOS DE PATERNIDADE, MATERNIDADE E FILIAÇÃO
O PARENTESCO DECORRENTE DA SOCIOAFETIVIDADE
QUANDO O AFETO FALA MAIS ALTO
Roberta Leite1
Tio Cacau, posso cha mar você de pai?
Claro, Ra íssa!
E você? Vai me chamar de filha?
Com certeza!
- Agora nós seremos pai e filha pa ra sempre?
- Sim, para sempre.2
Sumário: 1. Introdução; 2. Um breve panorama da evolução histórica do
conceito de família no Direito Civil brasileiro; 3. Princípio da
Socioafetividade (lato sensu); 4. A importância da socioafetividade; 5.
Aplicação da socioafetividade na parentalidade 20 anos após a edição do
código civil de 2002; 6. Procedimentos para o reconhecimento da filiação
socioafetiva; 7. Efeitos do reconhecimento da filiação socioafetiva; 8.
Síntese Conclusiva; 9. Jurisprudência sobre o tema; 10. Referências.
1. Introdução
A socioafetividade existe desde tempos imemoriais3. Em que pese
as profundas transformações sociais, o afeto sempre foi e, muito
1 Mestre em Direito Civil pela UERJ (2018). Doutoranda em Direito Civil pela UERJ. Advogada.
Contato: drarober taleite@outlook.com
2 Este foi um diálogo real, travado nos idos de 2004, entre uma criança de cinco anos com o seu, à
época, padrasto. A minha filha era a criança e o padrasto o meu ex-marido. Em 2010, quando ela tinha
12 anos, foi efetuada a adoção unilateral pelo padrasto, com a alteração no registro civil da criança.
3 Talvez os casos mais antigos e notórios de sociofiliação da história, seriam o de Moises e Jesus Cristo.
Segundo o Velho Testamento, no livro do Êxodo, é narrado que Moisés foi adotado pela filha do faraó,
que o encontrou dentro de um cesto, enquanto se banhava no rio Nilo e o educou na Corte como o
príncipe do Egito. O Novo Testamento, traz a narrativa de que Jesus Cristo fora concebido de forma
milagrosa pelo Espírito Santo, no ventre de uma virgem, Maria, sendo José, na verdade, seu pai
socioafetivo.
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provavelmente, continuará sendo o elemento inerente às relações
familiares, sem que houvesse qualquer necessidade da intervenção estatal
para que indivíduos de culturas, religiões ou filosofias tão distintas se
unissem em um projeto de construção de uma unidade familiar.
Nas últimas décadas a socioafetividade vem ganhando bastante
destaque na Ciência Jurídica, seja como elemento basilar ao
reconhecimento das uniões estáveis, hetero ou homoafetivas4-, como na
questão da (multi)parentalidade.
Com o advento da Constituição de 1988, e a necessidade de se
tutelar a dignidade da pessoa humana, a família deixa de ter um viés
patriarcal e patrimonialista, e se torna um espaço para o livre
desenvolvimento da personalidade. Obedecendo aos princípios
constitucionais, essa família da atualidade é eudemonista, na medida em
que, à luz do princípio da função social, deve servir de ambiência para que
seus membros busquem a própria felicidade pessoal, sendo calcada muito
mais no afeto do que em convenções.
Atento a esta nova concepção constitucional de família, nos termos
dos §§6º e 7º do artigo 227 da Constituição, o artigo 1.593 do Código Civil
de 2002 inova e traz em seu bojo a expressão “parentescos de outra
origem”, deixando clara a exi stência de parentesco que não seja apenas o
de origem biológica. Com efeito, diante da funcionalização da família, o
conceito de “parentesco de outra origem”, dado a sua textura aberta, faz
com que a filiação socioafetiva, envolva não apenas a adoção, mas outras
formas de parentalidade, abarcando aquelas baseada exclusivamente na
afetividade.
Portanto, sob essa nova perspectiva de família que se vem
testemunhando, atualmente calcada muito mais no afeto e nos objetivos
comuns; na função de promover o desenvolvimento e a dignidade dos seus
membros; no direito com as funções de assegurar a liberdade do indivíduo
em suas escolhas pessoais; a proteção e a não discriminação dessas
escolhas , , é o momento de que se revejam o alcance e as funções da
afetividade na parentalidade, de forma a permitir que os interessados
tenham mais liberdades de reger o próprio projeto familiar.
4 BARBOZA, Heloísa Helena. Efeitos jurídicos do parentesco socioafetivo. Revista da Faculdade de
Direito da UERJ- RFD, v.2, n.24,2013.
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Afigura-se, assim, a necessidade do enfrentamento do tema nas
novas estruturas familiares. Através de discussões sobre noções atualizadas
do direito das famílias, desde a parentalidade até a filiação, este artigo
abordará a filiação decorrente da socioafetividade, analisando a evolução
do Direito das Famílias, ressaltando a importância da Constituição de
1988, com a funcionalização do papel da família na sociedade, destacando
a importância da dignidade humana, e seus subprincípios.
Não obstante, será analisado o princípio da socioafetividade (lato
sensu) bem como a sua importância e aplicação nas relações familiares 20
(vinte) anos após a edição do Código Civil de 2002. Examinar-se-á os
procedimentos para que haja o reconhecimento da filiação socioafetiva.
Serão abordados, ainda, os reflexos do seu reconhecimento, sempre
obedecendo-se aos nortes traçados pela tábua axiológica constitucional,
demonstrando, ainda, como os tribunais superiores têm se manifestado
acerca do tema.
2. Um breve panorama da evolução histórica do conceito de
família no Direito Civil brasileiro
A família e as formas de sua constituição são objetos de estudos ao
longo dos tempos. E isso se deve à sua especial capacidade de mutação,
tornando qualquer questão que envolva Direito das Famílias ainda mais
desafiadora.
Não há como se falar em qualquer tema de Direito das famílias
sem se socorrer de outras ciências, como a sociologia, a filosofia e a
psicologia5. A necessidade de utilizar desses instrumentos neste campo
fértil, que é o Direito das Famílias, é inerente, visto que a família é um
órgão vivo e pulsante, influenciadora dos movimentos sociais e
influenciada pela sociedade. O Direito não é hermético e alheio a esses
fatores6. Pelo contrário. Por ter sua origem nos fatos sociais, e por não ser
5 “[...] a família é uma estruturação psíquica em que cada membro ocupa um lugar.”. Dentre todos, v.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família: uma abordagem psicanalítica. 3. ed. rev. atual. e
ampl. Belo Horizonte, Del Rey, 2003. p. 126.
6 Tânia da Silva Pereira, a analisar a Lei 8069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente, por exemplo,
já chamava a atenção da necessidade de se lançar mão da interdisciplinaridade do Direito com outras
ciências sociais: “encontraremos na Psicologia, Pedagogia, Medicina, Sociologia, etc. recursos
técnicos e princípios dogmáticos para que os fins sociais previstos na Lei 8.069/90 sejam atingidos.”
PEREIRA, Tânia da Silva. Direito da cria nça e do adolescente: uma proposta interdisciplinar. Rio de
Janeiro: Renovar, 1996. p. 38-39.

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