Interfaces entre responsabilidade civil e direito de família: ressarcibilidade de danos nas relações conjugais, convivenciais e de filiação

AutorDanielle Tavares Peçanha
Ocupação do AutorMestranda em Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Integrante da equipe do escritório Gustavo Tepedino Advogados. Advogada
Páginas229-258
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INTERFACES ENTRE RESPONSABILIDADE CIVIL E DIREITO
DE FAMÍLIA: RESSARCIBILIDADE DE DANOS NAS
RELAÇÕES CONJUGAIS, CONVIVENCIAIS E DE FILIAÇÃO
Danielle Tavares P eçanha1
Sumário: Introdução: evolução do Direito de Família e intercessão com o
sistema de Responsabilidade Civil; - 1. Responsabilidade civil nas relações
entre ascendentes e descendentes em primeiro grau; - 2. Responsabilidade
civil nas relações conjugais e convivenciais; - 2.1. Responsabilidade civil
por rompimento do relacionamento; 2.2. Responsabilidade civil por
descumprimento dos deveres conjugais; - Conclusão. Referências.
Introdução: evolução do Direito de Família e intercessão com
o sistema de Responsabilidade Civil
Oitenta e seis longos anos separam a primeira codificação civil
brasileira, conhecido como Código Bevilaqua, do atual diploma em vigor,
o Código Civil de 2002, celebrado por seu vigésimo aniversário de
vigência em 2022. De lá para cá, o Direito Civil passou por profundas
transformações, à luz do processo de constitucionalização do direito,
promovido a partir da repersonalização do ordenamento inaugurado pela
Constituição da República de 1988, que alçou a dignidade da pessoa
humana ao epicentro do sistema.
Com isso, pode-se dizer que uma das searas que mais vem sentindo
os influxos da tomada existencialista é certamente o Direito de Família.
Coloca-se em pauta, dentre tantas discussões correntes que batem à porta
do Judiciário, a indagação acerca da possibilidade de que áreas
tradicionalmente alheias à seara do Direito de Família, como o domínio da
responsabilidade civil, se intrometam nos confins domésticos, já outrora
1 Mestranda em Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Integrante da equipe do escritório Gustavo Tepedino Advogados. Advogada.
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considerados sagrados e cerrados. Em boa hora também, como se buscará
demonstrar no presente trabalho, ultrapassa-se o viés supostamente
autônomo e independente do Direito Privado, e especialmente do Direito
de Família, entendendo-se que não faz sentido blindar comportamentos
atentatórios simplesmente por estarem sob tal manto.
Em passado não tão distante, visava-se primordialmente a proteção
da entidade familiar enquanto instituição, que funcionaria como unidade
de produção e reprodução de valores. Tal interpretação decorre de uma
ideia bastante difundida tradicionalmente, segundo a qual existiria uma
coesão formal ínsita ao conceito de família, justificando, por vezes, o
sacrifício individual em prol da preservação daquela instituição que
representaria o elemento celular da sociedade civil: a família.
Evolutivamente, à luz das importantes alterações axiológicas
introduzidas nas relações familiares pela atual Constituição da República,
impediu-se que se pudesse admitir a superposição de qualquer estrutura
institucional à tutela de seus integrantes, mesmo em se tratando de
instituições com status constitucional. Deixa a família, assim, de ter valor
intrínseco, e passa a ser valorada de forma instrumental, merecedora de
proteção apenas na medida em que sirva ao desenvolvimento da
personalidade daqueles que a integram.2 A antiga família estanque,
excludente, desigual, hierarquizada e patrimonialista cede espaço para uma
família igualitária, democrática, plural e consciente de seu papel enquanto
instrumento executor de valores fundamentais, destinada a promover o
desenvolvimento da personalidade de cada um dos seus componentes.3
De outra parte, em termos de responsabilidade civil, entendia-se
preteritamente que entre os membros da família - enquanto fim em si
mesma -, existiria uma espécie de imunidade,4 não sendo legítima
2 Nesse sentido: “A família como formação social, como sociedade natural, é g arantida pela
Constituição (...) não como portadora de um interesse superior e superindividual, mas sim, em função
da realização das exigências individuais, como lugar onde se desenvolve a pessoa.” (PERLINGIERI,
Pietro. O direito civil na legalidade constitucional, Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 971-972)
3 Em lição acerca da evolução pela qual passou o direito de família, remeta-se a: TEPEDINO, Gustavo.
Premissas Metodológicas pa ra a Constitucionalização do Direito Civil. In: Temas de Direito Civil,
Rio de Janeiro: Renovar, 2008, 4ª ed., p. 21.
4 Acerca da família tutelada sob a égide do Código Civil de 1916, em termos de responsabilidade civil:
“Entendia-se que entre os membros da família haveria uma espécie de imunidade, não sendo legítima
a p retensão de se obter qualquer tipo de indenização”. (GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da.
Responsabilidade Civil nas relações familiares, p. 399. In: MARTINS, Guilherme Magalhães (coord.),
Temas de responsabilidade civil, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 387-440). Em análise evolutiva,
“essa imunidade vai sendo reduzida diante da tendência do valor conferido constitucionalmente aos
direitos individuais das pessoas e do respeito à autonomia da vontade nas relações conjugais e

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