Evolução histórica e aspectos controvertidos dos alimentos no Brasil

AutorMário Victor Vidal Azevedo
Ocupação do AutorMestrando em Direito Civil pela UERJ. Associado do escritório C. Martins Advogados. Atuante na área de contencioso civil estratégico, judicial e arbitragem
Páginas295-326
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EVOLUÇÃO HISTÓRICA E ASPECTOS CONTROVERTIDOS
DOS ALIMENTOS NO BRASIL
Mário Victor Vidal Azevedo1
Sumário: Introdução; 1. Os alimentos no período anterior ao Código Civil
de 2002; 2. Os alimentos no período de início de vigência do Código Civil
de 2002; 3. Algumas questões controvertidas sobre os alimentos após 20
anos da edição do Código Civil de 2002; 3.1.A questão da culpa na fixação
dos alimentos; 3.2. Os alimentos e a Lei n. 13.058/2014: guarda
compartilhada e a prestação de contas na guarda unilateral; 3.3 Os
alimentos gravídicos; 3.4. Os alimentos e a pessoa idosa; 3.5. Os alimentos
na pandemia da COVID-19; 3.6. Outras questões controversas sobre
alimentos; Conclusão; Referências.
Introdução
De a acordo com os dados divulgados anualmente pelo Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), as ações envolvendo Direito de Família e
alimentos foram o quinto tema mais recorrente nas demandas ajuizadas
perante as Cortes Estaduais no ano de 20192, totalizando 1.213.022 de
processos ou aproximadamente 2,35% dos processos em trâmite naquele
ano3. Em um recorte considerando somente os processos em trâmite em
primeira instância, o tema família/alimentos sobe para a terceira posição,
com 1.135.599 processos, equivalente a 3,79% do total4.
1 Mestrando em Direito Civil pela UERJ. Associado do escritório C. Martins Advogados. Atuante na
área de contencioso civil estratégico, judicial e arbitragem.
2 O relatório com os números do ano base de 2020 ainda não havia sido divulgado no momento da
elaboração do presente artigo, conforme se pode observa no site do CNJ:
https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros/. Acessado em 03.09.2021.
3 Justiça em Números 2020: ano-base 2019/Conselho Nacional de Justiça - Brasília: CNJ, 2020, p. 238.
Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justi%C3%A7a-em-
N%C3%BAmeros-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf. Acessado em 03.09.2021.
4 Justiça em Números 2020: ano-base 2019/Conselho Nacional de Justiça - Brasília: CNJ, 2020, p. 240.
Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justi%C3%A7a-em-
N%C3%BAmeros-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf. Acessado em 03.09.2021.
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Especificamente sobre a classe de processo relacionada aos
alimentos, a ferramenta painel do CNJ revela a existência de uma alta
litigiosidade envolvendo o assunto, com 464.881 processos tramitando em
2020, 832.631 processos em curso em 2019 e 571.448 processos em 20185.
Esse elevado número de demandas judiciais relativos à temática
dos alimentos revela que se encontra amplamente difundida em nossa
sociedade a noção de que os vínculos de parentalidade, de conjugalidade e
de companheirismo geram a obrigação para o parente, cônjuge ou
companheiro com maior capacidade financeira de atender minimamente,
por meio da prestação de alimentos, às necessidades daquele parente,
cônjuge ou companheiro com menor capacidade financeira, que não
consegue assegurar a sua própria sobrevivência6. Esses milhares de
credores e devedores de alimentos identificados pelo CNJ parecem não
hesitar em socorrer-se do Poder Judiciário para ver seus direitos garantidos
por meio do ajuizamento de ações pretendendo a fixação, a revisão, a
exoneração, a cobrança e a execução de alimentos.
A maturação dessa espécie de consciência coletiva em torno do
dever de prestar alimentos é fruto de um longo e contínuo processo
histórico que se iniciou na época do Império Romano7 e prossegue ativo
até os dias de hoje8, dada a constante - e cada vez mais rápida - evolução
da sociedade pós-moderna.
Apesar da longa tradição histórica do instituto, essa constante
evolução social se fez acompanhar de sucessivas alterações legislativas, de
modo que, ao longo do tempo, foram surgindo inúmeras questões
controvertidas atinentes ao tema dos alimentos.
É justamente dentro desse contexto que se insere o presente
trabalho, que, por meio de pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, tem
5 Disponível em: https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/paineis-cnj/. Acessado em 03.09.2021.
6 “A obrigação alimentar tem um fim precípuo: atender às ne cessidades de uma pessoa que não pode
prover a própria subsistência. O Código Civil não define o que sejam alimentos. Preceito constitucional
assegura a crianças e adolescentes direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura e à dignidade (CF 227). Quem sabe aí se possa encontrar o parâmetro para
a mensuração da obrigação alimentar. Talvez o seu conteúdo possa ser buscado no que entende a lei
por legado de alimentos (CC 1.920): sustento, cura, vestuário e casa, além de educação, se o legatário
for menor.” (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito da s Famílias. 9ª ed., São Paulo, Revista dos
tribunais, 2013, p. 533)
7 Conforme bem anota Yussef Said Cahali em sua clássica obra: Dos Alimentos. 6ª ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2009.
8 É o caso da Lei n. 14.010/20, que instituiu o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações
jurídicas de Direito Privado (RJET) e alterou a sistemática da execução de alimentos durante o período
da pandemia.
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como objetivo não só traçar a evolução histórica do instituto dos alimentos,
desde a sua origem até os dias atuais; mas também identificar, sem a
inexequível pretensão de exaurir o tema, algumas das controvérsias
existentes relativas ao tema, na esperança de poder facilitar de alguma
forma o trabalho do operador do Direito.
1. Os alimentos no período anterior ao Código Civil de 2002
O dever de prestar alimentos amparado na solidariedade familiar
(para parentes)9 e no dever de mútua assistência (para cônjuges e
companheiros)10 tal como hoje o entendemos (obrigação personalíssima11,
subsidiária12, irrenunciável, incompensável13, impenhorável14,
imprescritível15, irrepetível16, inalienável, irretroativa, amparada no
9 “Trata-se de obrigação alimentar que repousa na solidariedade familiar entre os parentes em linha
reta e se estende infinitamente. Na linha colateral, para guardar simetria com o direito sucessório, é
necessário reconhecer que a obrigação vai até o quarto grau de parentesco.” (DIAS, Maria Berenice.
Manual de Direito das F amílias. 9ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2013, p. 532)
10 “O encargo alimentar decorrente do casamento e da união estável tem origem no dever de mútua
assistência, que existe durante a convivência e persiste mesmo depois de rompida a união” (DIAS,
Maria Berenice. Manual de Direito da s Famílias. 9ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2013, p.
532)
11 “Visando preservar a vida do indivíduo, considera-se direito pessoal no sentido de que sua
titularidade não passa a outrem, seja p or negócio jurídico, seja por fato jurídico” (GOMES, Orlando.
Direito de Família. 3ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1968, p. 328)
12 Eventualmente, pode haver solidariedade entre os devedores no caso de alimentando idoso, nos
termos do o art. 12 do Estatuto do Idoso, conforme melhor explicitado no capítulo 3.4 abaixo.
13 “Aliás, mesmo que o devedor tenha, voluntariamente, prestado outros valores aos alimentários
(constituindo mera liberalidade) o que, não raro, ocorre, quando o pai, e.g., paga viagens ou gastos
supérfluos ao filho - não poderá compensar com o valor que deve pagar a título de alimentos. Enfim,
“não se admite a compensação dos valores devidos à título de alimentos com outros pagos por mera
liberalidade do devedor” (TJ/ DFT. Ac. Unân., 5ªT., Ap. Cív.2002.0110358943, rel. Des. Romeu
Gonzaga Neiva, j.1.9.03, DJU 15.10.03)” (FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson.
Direito das famílias. 3ª ed., Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2011, p. 725)
14 A doutrina apontada a possibilidade de mitigação da impenhorabilidade quando a penhora é feita
para pagamento de uma obrigação de mesma natureza alimentar, por se tratarem de créditos de natureza
idêntica. Nesse sentido: FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito da s famílias.
3ª ed., Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2011, p. 726.
15 “As prestações alimentícias prescrevem em dois anos pelo Código de 2002 (art. 206, § 2º). Esse
prazo era de cinco anos no C ódigo anterior (art. 178, § 10, I). O direito a alimentos, contudo, é
imprescritível. A qualquer momento, na vida da pessoa, pode esta vir a necessitar de alimentos. A
necessidade do momento rege o instituto e faz nascer o d ireito à ação (actio nata ). Não se subordina,
portanto, a um prazo de propositura. No entanto, uma vez fixado judicialmente o quantum, a partir de
então inicia-se o lapso prescricional. A prescrição atinge paulatinamente cada prestação, à medida que
cada uma delas vai atingindo o quinquênio, ou o biênio, a partir da vigência do Código de 2002”
(VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. 5ª ed. São Paulo, Atlas, 2005, p. 399)
16 “Uma tradicional característica dos alimentos é a proibição de que os alimentos sejam repetidos, ou
seja, restituídos, caso se constate posteriormente que eles não eram devidos. Os casos mais comuns em
que se busca a restituição é nas ações exoneratórias ou revisionais de alimentos. Por esta razão, e pelo
Princípio que veda o enriquecimento ilícito, a doutrina vem repensando esta característica, pois o

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