Família democrática no direito brasileiro: constitucionalização das relações familiares

AutorGuilherme Calmon Nogueira da Gama
Ocupação do AutorVice Presidente e Desembargador do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (RJ-ES)
Páginas15-73
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FAMÍLIA DEMOCRÁTICA NO DIREITO BRASILEIRO:
CONSTITUCIONALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES FAMILIARES
Guilherme Calmon Nogueira da Gama1
Sumário: Introdução: constitucionalização do Direito de Família
brasileiro; 1. Tutela da pessoa humana nas relações familiares; 1.1.
Repersonalização do Direito de Família; 1.2. Situações existenciais e
situações patrimoniais; 1.3. Pessoas vulneráveis nas famílias; 2. Princípios
constitucionais de Direito de Família; 2.1. Princípios gerais; 2.2. Princípios
específicos; 2.3. Princípio da afetividade; Nota conclusiva.
Introdução: constitucionalização do Direito de Família
brasileiro
As quatros características da cultura pós-moderna que se aplicam
ao Direito o pluralismo de fontes e de sujeitos, a comunicação com o
reconhecimento dos direitos dos vulneráveis, o método narrativo na
elaboração das normas e o retour des sentiments com a efetividade dos
direitos humanos de decisivo papel nas relações privadas impõem a
necessidade de se repensar as bases, os fundamentos e as finalidades dos
institutos e das normas jurídicas2. O Direito de Família brasileiro não pode
mais ser analisado sob a ótica do perfil individualista, patrimonialista,
tradicional e conservador-elitista do período das codificações do século
XVIII - do qual o Código Civil brasileiro de 1916 (CC/16) era exemplo
mais próximo. Houve a superação do dogma da completude e da exaustão
dos Códigos na civilização ocidental, diante das transformações operadas
1 Desembargador e Vice-Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2). Professor
Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
e do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC/RJ). Professor Permanente do PPGD da
Universidade Estácio de Sá (UNESA/RJ). Coordenador Nacional da Rede de Juízes brasileiros de
Enlace da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado.
2 JAYME, Erik, Cours general de droit international privé. In: Recueil des Cours. The Hague-Boston-
London: Martinus Nijhoff Publishers, 1997, p. 36/37.
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em inúmeros setores, como o político, social, econômico, cultural e
familiar.
Os princípios e as regras constantes da Constituição Federal
brasileira de 1988 (CF/88) são normas jurídicas como quaisquer outras,
com a nuance de se localizarem no topo da pirâmide normativa do
ordenamento jurídico positivo. A CF/88 unificou o sistema jurídico com a
hierarquização das normas, a prevalência e superioridade dos princípios e
valores constitucionais, com funções de interpretação, de integração e de
construção das demais normas jurídicas do ordenamento jurídico3.
O Direito de Família do século XXI tem fundamento na CF/88 e,
por isso, apresenta forte carga solidarista e despatrimonializante. Cuida-se
do claro reconhecimento da maior hierarquia axiológica à pessoa humana
na sua dimensão do “ser” (ou existencial) – em detrimento da dimensão
patrimonial do “ter”4. De acordo com a concepção da tutela e promoção da
pessoa humana como centro de preocupação do ordenamento jurídico, é
correta a orientação segundo a qual as situações patrimoniais devem ser
funcionalizadas em favor das situações existenciais, notadamente no
âmbito das relações familiares.
A regulamentação das relações familiares no âmbito do Direito
vem sofrendo uma série de alterações nos últimos tempos, fruto de
profundas mudanças ocorridas na comunidade internacional, bem como do
desaparecimento de determinados dogmas antes considerados inabaláveis.
A abordagem contemporânea do Direito de Família brasileiro em nada se
assemelha à visão sobre o tema no início do século passado. Com
fundamento no art. 16.3, da Declaração Universal dos Direitos do Homem,
de 1948, reconheceu-se expressamente à pessoa humana o direito de
constituir uma família, o que vem sendo confirmado desde então em
documentos normativos internacionais (Pacto de San Jose da Costa Rica
de 1969, art. 17.2; Convenção Europeia de Direitos Humanos de 1950, art.
12) e nacionais (CF/88, art. 226; Código Civil de 2002 - CC/02, art. 1.511).
Qualquer norma jurídica no Direito de Família brasileiro exige a
presença do fundamento de validade constitucional, com base na
combinação dos princípios constitucionais da isonomia dos filhos, da
3 PERLINGIERI, Pietro, Perfis de direito civil. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 1997, p. 33.
4 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da, P rincípios constitucionais de Dir eito de Família. São
Paulo: Editora Atlas, 2008, p. 120.
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isonomia entre os gêneros dos cônjuges e companheiros e do pluralismo
dos modelos familiares com o fundamento da República do Brasil da
dignidade da pessoa humana. As relações familiares, desse modo,
passaram a ser funcionalizadas em razão da dignidade de cada partícipe.
Constata-se o desenvolvimento do fenômeno da repersonalização
do Direito de Família sob a ótica da solidariedade social. Assim, a regra
de ouro a ser observada é a seguinte: à pessoa humana serão reconhecidos
direitos, poderes, faculdades, entre outras situações jurídicas, na medida
em que contribua para o bem-estar da coletividade sob o prisma da
utilidade social, notadamente na proteção às pessoas mais vulneráveis. A
família passa a ser funcionalizada e condicionada à realização de valores
que se encontram na base do ordenamento jurídico, inclusive no
fundamento da dignidade da pessoa humana (CF/88, art. 1°, III) e no
objetivo da construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária
(CF/88, art. 3°, I).
Do monopólio do casamento como único modo de constituição de
família (CC/16) operou-se a transição para um modelo plural de famílias
jurídicas devido ao reconhecimento expresso (ou mesmo implícito) de
famílias jurídicas no plano da Constituição Federal e na realidade social
brasileira (CF/88, arts. 226, 227 e 230).
A família é uma formação social, lugar-comunidade tendente ao
desenvolvimento dos seus integrantes em suas personalidades e
potencialidades e, assim, exprime a função instrumental para a melhor
realização dos interesses afetivos e existenciais. Com base na valorização
da afetividade, a noção de família se torna mais democrática. Há a inclusão
de vários arranjos familiares na proteção do Direito, e não apenas a família
baseada no casamento. Algumas minorias passam a ser incluídas e mais
valorizadas nas relações familiares sob o prisma do Direito: as mulheres,
as crianças (junto com os adolescentes), os idosos, as pessoas com
deficiência, as pessoas homossexuais e transgêneros.
O estágio atual do Direito de Família estimula a maior autonomia
privada no desenvolvimento das relações baseadas na conjugalidade, ao
mesmo tempo que enfatiza a maior proteção estatal dos interesses das
pessoas vulneráveis nas relações familiares, tais como a criança, o
adolescente, o idoso e a pessoa com deficiência. Busca-se conciliar
autonomia e heteronomia no âmbito do tratamento jurídico das famílias,
em clara valorização da pessoa humana. O Direito de Família tende a

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