A boa-fé objetiva nas relações reais: tutela da confiança na relação real como processo

AutorDiana Paiva de Castro e Francisco de Assis Viégas
Páginas61-95
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A BOA-FÉ OBJETIVA NAS RELAÇÕES REAIS:
TUTELA DA CONFIANÇA NA RELAÇÃO REAL
COMO PROCESSO
Diana Paiva de Castro
Francisco de Assis Viégas
Sumário: Introdução. 1. Reexame das fronteiras entre relação jurídica real
e relação jurídica obrigacional no trajeto rumo ao direito comum das
situações patrimoniais. 2. Delimitação do espaço de incidência da boa-fé
objetiva em relação à função social. 3. A interpretação da boa-fé nas
relações reais em função aplicativa. 3.1. A incidência da boa-fé objetiva nas
relações condominiais e a figura parcelar da suppressio. 3.2. A incidência
da boa-fé objetiva para a solução de conflitos entre centros de interesse
contrapostos nos direitos reais sobre coisa alheia: usufruto, servidão,
superfície, hipoteca e penhor. 4. Síntese conclusiva. 5. Referências
bibliográficas.
Resumo: O princípio da boa-fé objetiva encontra-se definitivamente
consolidado no âmbito das relações obrigacionais. Seu desenvolvimento na
seara das relações reais, de outra parte, revela-se ainda incipiente, o que se
deve, entre outros fatores, à equivocada compreensão do princípio da
tipicidade como entrave à autonomia privada na regulamentação do aspecto
atributivo dos bens. Com efeito, torna-se necessário promover a releitura,
sob perspectiva funcional, da dicotomia entre direitos reais e direitos
pessoais, analisando-se o potencial aplicativo da boa-fé objetiva nas
relações reais, inseridas no direito comum das situações patrimoniais. No
âmbito da aproximação entre relações obrigacionais e reais, com enfoque
na aplicação da boa-fé objetiva às relações reais, propõe-se o exame da
matéria nos Tribunais brasileiros, cotejando seu perfil aplicativo com o
substrato teórico apresentado.
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Palavras-chave: Direitos reais; boa-fé objetiva; direitos patrimoniais.
INTRODUÇÃO
A Constituição de 1988, ao alçar, em seu artigo 1º, III, a dignidade
da pessoa humana a fundamento da República, promoveu, com significativo
impacto no campo das relações privadas, a superação do paradigma
individualista e patrimonialista de outrora. O sistema jurídico,
compreendido em sua unidade e complexidade, adquire estabilidade na
precedência dos valores constitucionais, os quais, impregnando todo o
tecido normativo, impõem a funcionalização das situações patrimoniais às
situações existenciais. Nessa perspectiva, desenvolve-se proposta
metodológica voltada à tutela qualitativamente diferenciada das situações
jurídicas existenciais. Em lugar da tradicional classificação que opõe
“direito das obrigações” e “direitos reais”, consolidada na dogmática
apegada às abstrações conceituais e estruturas generalizantes, busca-se a
construção de sistema diferenciador das disciplinas patrimonial e
existencial.
Adverte-se, nessa direção, para a alteração dos confins entre direito
público e direito privado, suscitando profunda reflexão quanto à incidência
da ordem pública constitucional sobre as atividades privadas. Na
experiência jurídica brasileira, o desenvolvimento, em doutrina e
jurisprudência, dos denominados novos princípios contratuais representa
grande avanço na consolidação de instrumentos capazes de promover a
funcionalização das situações patrimoniais. Para além da intensa
intervenção estatal na tutela dos contratantes vulneráveis, contexto em que
desponta a disciplina protetiva do consumidor, os princípios da boa-fé
objetiva, da função social e do equilíbrio econômico espraiam-se para o
campo das relações paritárias, desempenhando importante papel na
efetivação dos valores constitucionais nas relações privadas.
Paralelamente, mostra-se relevante o esforço rumo à consolidação
do direito comum das situações patrimoniais, com a expansão da técnica de
regulamentação por meio de cláusulas gerais. Nesse contexto, destaca-se o
princípio da boa-fé objetiva como instrumento necessário à proteção de
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interesses merecedores de tutela (não apenas na seara contratual, mas
também) no âmbito das relações reais, notadamente nas hipóteses em que
se verifica a contraposição entre centros de interesse específicos.
O potencial aplicativo da boa-fé objetiva às relações reais será
explorado, no primeiro momento, a partir do reexame crítico dos elementos
de distinção entre relações reais e obrigacionais, demonstrando-se a
ausência de atributos diferenciadores que impeçam a incidência de
princípios fundados na axiologia constitucional, como a boa-fé objetiva, às
relações patrimoniais em geral. Em seguida, buscar-se-á estremar a ratio de
incidência da boa-fé e da função social no campo dos direitos reais,
delimitando a função destes princípios na promoção dos valores
constitucionais nas relações privadas. Estabelecidas as premissas teóricas
para a incidência da boa-fé nas relações reais, afigura-se pertinente a análise
de casos julgados pelos tribunais brasileiros, promovendo-se diálogo
construtivo entre teoria e práxis.
1. REEXAME DAS FRONTEIRAS ENTRE RELAÇÃO
JURÍDICA REAL E RELAÇÃO JURÍDICA OBRIGACIONAL NO
TRAJETO RUMO AO DIREITO COMUM DAS SITUAÇÕES
PATRIMONIAIS
Na experiência brasileira, pode-se dizer que o primeiro passo para a
implementação da proposta de tratamento comum das situações
patrimoniais1 consiste no reexame das distinções classicamente difundidas
entre os direitos reais e os direitos obrigacionais. No campo dos direitos
reais, subdividiu-se a construção doutrinária da relação jurídica real em duas
correntes: (i) a teoria realista, que compreende a relação jurídica real como
poder jurídico da pessoa sobre a coisa, oponível a terceiros;2 e (ii) a teoria
1 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro:
Renovar, 2008, p. 892.
2 Na doutrina brasileira, verifica-se, mesmo entre os autores adeptos da teoria personalista,
a concepção de que “no direito real existe um vínculo mais dir eto entre o sujeito ativo e o
objeto sobre o qual recai o direito, enquanto no direito pessoal se pode exigir uma
prestação do sujeito passivo” (WALD, Arnoldo. Dir eito civil, v. 4. São Paulo: Saraiva,
2009, p. 16). Na lição de Darcy Bessone, colhe-se também a compreensão de que “o direito

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