Pactos comissório e marciano em perspectiva dinâmica: projeções nos negócios jurídicos com escopo de garantia

AutorCarlos Edison do Rêgo Monteiro Filho
Páginas15-59
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PACTOS COMISSÓRIO E MARCIANO EM
PERSPECTIVA DINÂMICA: PROJEÇÕES NOS
NEGÓCIOS JURÍDICOS COM ESCOPO DE GARANTIA
Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho
Sumário: 1. Introdução. 2. Projeção do pacto comissório e do pacto
marciano nos negócios jurídicos com escopo de garantia. 2.1. Na
retrovenda. 2.2. No sale and lease back. 2.3. Na procuração em causa
própria. 2.4. Na trajetória trifásica da apreciação do pacto comissório nos
tribunais superiores. 2.4.1. Primeira fase: o posicionamento do STF no
sentido de aplicar a regra proibitiva de pacto comissório aos negócios
jurídicos com escopo de garantia. 2.4.2. Segunda fase: o posicionamento do
STF no sentido de restringir a aplicação da regra proibitiva de pacto
comissório às garantias reais típicas. 2.4.3. Terceira fase: a retomada pelo
STJ do primeiro posicionamento do STF no sentido de que os negócios
jurídicos com escopo de garantia não podem constituir fraude à lei. 3.
Negócios jurídicos com escopo de garantia, pacto comissório e pacto
marciano: paradigmas de interpretação-aplicação. 4. Referências
bibliográficas.
Resumo: Este trabalho se propõe a demonstrar o merecimento de tutela do
pacto marciano no bojo dos negócios jurídicos com escopo de garantia. Para
tal desiderato, partiu-se da análise da cláusula comissória e de sua distinção
essencial em face da cláusula marciana, a qual, por possibilitar que a
aquisição da coisa dada em garantia pelo credor seja precedida de justa
avaliação, denota efeito salvífico da nulidade do pacto comissório.
Empreendeu-se, assim, o exame da viabilidade do pacto marciano e da
proibição do comissório na dinâmica dos negócios jurídicos com escopo de
garantia tais como retrovenda, sale and lease back e procuração em causa
própria , apreciando-se, ademais, a trajetória trifásica da apreciação do
tema nos Tribunais Superiores brasileiros. Por fim, propuseram-se
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paradigmas para a interpretação-aplicação do pacto marciano nos negócios
jurídicos com escopo de garantia.
Palavras-chave: Negócios jurídicos com escopo de garantia. Pacto
comissório. Pacto marciano.
1. INTRODUÇÃO
De início, cite-se a lição de Caio Mário da Silva Pereira, para quem
a cláusula1 comissória “consiste em pactuar, no ato constitutivo da garantia
real, a faculdade de apropriar-se o credor do seu objeto em caso de não ser
cumprida a obrigação garantida”.2
Trata-se, portanto, de cláusula que autoriza a apropriação pelo
credor do bem dado em garantia diante do inadimplemento da dívida, sem
que haja avaliação da coisa3, ou por meio de avaliação realizada pelo próprio
credor, que tomará para si eventual diferença entre o valor do objeto da
garantia e o valor da dívida, caso aquele seja maior do que este.
Em síntese, há, na cláusula comissória, aquisição pelo credor da
coisa dada em garantia , independentemente da verificação de seu justo
preço.4 Tal cláusula se afigura vedada no direito brasileiro. A esse respeito,
o artigo 1.365, na disciplina da propriedade fiduciária, estabelece ser “nula
a cláusula que autoriza o proprietário fiduciário a ficar com a coisa alienada
em garantia, se a dívida não for paga no vencimento”. O artigo 1.428 do
Código Civil, por sua vez, na normativa das garantias reais de penhor,
hipoteca e anticrese, dispõe acerca da vedação ao pacto comissório, com a
1 Esclareça-se que, neste trabalho, os termos cláusula , pacto e lex serão utilizados
indistintamente, como sinônimos, por carregarem, no contexto, o mesmo significado. Sobre
o tema, v. REIS, Mayara de Lima. O pacto comissório no dir eito r omano. São Paulo:
Universidade de São Paulo, 2014, p. 9.
2 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. IV. Atualizado por Carlos
Edison do Rêgo Monteiro Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 290.
3 Não constitui objeto deste trabalho o aprofundamento do acirrado debate doutrinário
acerca da distinção entre as noções de “bem” e “coisa”. Para o aprofundamento da discussão
v. TEPEDINO, Gustavo. Multiproprieda de imobiliária . São Paulo: Saraiva, 1993, p. 92.
4 CARVALHO SANTOS, J.M. de. Código civil brasileiro interpr etado. v. X. Rio de
Janeiro: Freitas Bastos, 1937, p. 91-94.
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seguinte redação: “é nula a cláusula que autoriza o credor pignoratício,
anticrético ou hipotecário a ficar com o objeto da garantia, se a dívida não
for paga no vencimento”.
Não se confunde o pacto comissório, contudo, com a cláusula
marciana. Nas palavras de Pietro Perlingieri, o pacto marciano é o ajuste
“com o qual o credor, na hipótese de inadimplemento, torna-se proprietário
da coisa recebida em garantia restituindo ao devedor a diferença entre o
valor do crédito e eventual valor a maior do bem”.5 Com efeito, a
conceituação de pacto marciano gira em torno de alguns elementos
constituintes do instituto, que serão estudados a seguir. Mostram-se
recorrentes, pois, na análise de cada conceito formulado, pelo menos duas
ideias centrais.
A primeira, que também se faz presente na sistemática do pacto
comissório, consubstancia-se em que o credor se torna proprietá rio da
coisa objeto da gara ntia. A segunda ideia essencial à concepção do pacto
marciano esta, por sua vez, ausente no mecanismo da cláusula comissória
reside no fato de que a aquisição da propriedade ocorrerá após aferição
do justo valor do bem dado em garantia. A partir desse elemento pode-se
distinguir, já em primeiro plano, o pacto marciano do comissório.6
Configuram-se, portanto, notas marcantes do pacto marciano a
aquisição da propriedade plena da coisa objeto da garantia pelo credor e a
aferição de seu justo valor. Esta última envolve, de um lado, o aspecto
procedimental (avaliação do bem por terceiro imparcial ou por comum
acordo das partes), e, de outro, o aspecto temporâneo (avaliação deverá se
dar necessariamente no momento da aquisição da coisa). Tal sistemática
terá como possíveis efeitos, (a) a extinção da obrigação sem que nada mais
seja devido, quando o valor do bem equivaler ao da dívida, ou nos casos de
perdão legal; (b) o abatimento do valor do bem no montante da dívida,
permanecendo o devedor obrigado pelo restante e (c) a obrigação de o
credor restituir o superfluum (valor do bem que excede o da dívida) ao
5 PERLINGIERI, Pietro. Manuale di diritto civile. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane,
1997, p. 304.
6 CARINGELLA, Francesco. Studi di dir itto civile. t. I. Milano: Dott. A. Giuffrè, 2003, p.
1.036.

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