Contornos da autonomia privada no condomínio edilício: convenção e restrição de direitos

AutorMarcos de Souza Paula
Páginas239-280
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CONTORNOS DA AUTONOMIA PRIVADA NO
CONDOMÍNIO EDILÍCIO: CONVENÇÃO
E RESTRIÇÃO DE DIREITOS
Marcos de Souza Paula
“As grades do condomínio
São para trazer proteçã o
Mas também trazem a dúvida
Se é você que está nessa prisão”
Marcelo Yuka
Sumário: Introdução 1. Natureza jurídica da convenção de condomínio e
a aplicação de princípios contratuais às suas cláusulas 2. Destinação da
unidade autônoma: da proibição à revisão de critérios de despesa 3. O
poder sancionatório da convenção: do condômino inadimplente ao
antissocial 4. Convenção e vagas de garagem 5. Cláusulas de não
indenizar no condomínio edilício 6. Convenção e novas formas de
exploração da estrutura condominial 7. Considerações finais.
Resumo: A convenção de condomínio tem sido definida como a sua lei.
Para além das teorias que tentam explicar a natureza da convenção, esta é
inequivocamente o instrumento pelo qual os coproprietários regulam seus
interesses. É preciso, nesse contexto, analisar a convenção sob a ótica dos
valores do sistema, principalmente no que diz respeito às restrições que a
convenção pode impor aos que vivem no condomínio. Este artigo visa
examinar em que extensão a autonomia privada, nesse aspecto coletivo,
pode prevalecer sobre o interesse individual e em que ponto esta regulação
interfere no exercício normal de tais direitos, podendo, então, ser invalidada
pelo Judiciário.
Palavras-chave: Autonomia privada; convenção; condomínio.
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INTRODUÇÃO
Já se observou em doutrina que, por trás de cada direito real típico,
há um espaço de autonomia privada a ser qualificado pelo operador do
Direito.102 O condomínio edilício serve de exemplo a esta constatação, pois
nele a vontade dos condôminos exerce papel não apenas suplementar das
disposições legais, mas conformador dos direitos de cada coproprietário.103
Repositório precípuo desta vontade, a convenção de condomínio tem a
tarefa, atribuída por lei, de disciplinar uma série de questões afetas à vida
em condomínio.
Por conta desse papel normativo, a convenção precisa se harmonizar
com o ordenamento jurídico, não sendo poucas as controvérsias em torno
da validade das cláusulas que limitam direitos individuais em prol do
interesse comum. Pense-se no exemplo da cláusula convencional que proíbe
o exercício de certas atividades nas unidades autônomas, ou que proíbe a
locação da vaga de garagem a pessoas estranhas ao condomínio (ainda que
a vaga possua matrícula própria), ou que impede que o condomínio seja
responsabilizado por eventuais danos ocorridos nas áreas comuns.
A convenção se torna ainda mais relevante com o surgimento de
figuras como o flat ser vice, o condohotel e, mais recentemente, as
plataformas de compartilhamento de moradia (tais como o Airbnb) que
desafiam a estrutura condominial no desempenho de novas funções. Com
102 TEPEDINO, Gustavo. Multipropriedade imobiliária. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 83.
No mesmo sentido, GONDINHO, André. Autonomia privada e direitos rea is. Rio de
Janeiro: Renovar, 2000, p. 89-93. Quanto ao procedimento de qualificação, v.
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Trad. de Maria Cristina
De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 661.
103 Com efeito, a vontade dos condôminos é determinante desde a criação dos deveres mais
básicos de convivência (art. 1334 do Código Civil) até a própria extinção do condomínio
(art. 1357 do Código Civil). No direito argentino, observa José Negri que “são, pois, os
mesmos proprietários que, dentro daquelas normas fundamentais, hão de redigir seu próprio
convênio de copropriedade, moldando-o conforme às características do edifício comum e
às suas conveniências particulares” (tradução livre). No original: “son, pues, los mismos
copropietar ios quienes, dentro de aquellas normas fundamentales, han de redactar su
propio convenio de copropieda d, amoldándolo a la s característica s del edificio común y a
sus conveniencias particular es” (Régimen argentino de la propiedad horizontal: teoría y
práctica de la ley 13.512. 2. ed. Buenos Aires: Librería Editoral Depalma, 1949, p.137). No
mesmo sentido, GUIDI, Umberto. Il condominio nel nuovo Codice Civile. Milano: Giuffrè,
1942, p. 285.
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isso, é imperioso reconhecer na convenção um instrumento da autonomia
privada, procedendo, em seguida, ao controle de suas normas à luz do
ordenamento. O propósito central do presente artigo é avaliar como esse
controle tem sido feito em relação a certos aspectos da vida em condomínio,
a fim de se compreender em que casos a convenção prevalece como
regramento da autonomia privada e em que casos a noção de ordem pública
se sobrepõe às suas disposições para proteger direitos individuais.
1. NATUREZA JURÍDICA DA CONVENÇÃO DE
CONDOMÍNIO E A APLICAÇÃO DE INSTRUMENTOS
TIPICAMENTE CONTRATUAIS ÀS SUAS CLÁUSULAS
Embora seja de praxe definir a convenção como lei do
condomínio,104 sempre houve dúvidas a respeito de sua natureza jurídica, o
que ocorria, também, em relação à própria figura do condomínio edilício.105
Para a teoria da na tureza contratua l da convenção, esta seria uma espécie
de contrato, ainda que sui generis, que regula o interesse comum dos
proprietários.106 Segundo a teoria do negócio jurídico nor mativo, a
convenção seria negocial em sua origem, mas, uma vez concluída,
ostentaria natureza normativa, suplementando as regras legais.107 Já para os
104 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Loteamentos e condomínios. São Paulo: Max
Limonad, 1953. t. II, p. 315; FRANCO, João Nascimento; GONDO, Nisske. Condomínio
em edifícios. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tr ibunais, 1987, p. 53-54; CÂMARA,
Hamilton Quirino. Condomínio edilício: manual prático com perguntas e respostas. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 49.
105 A respeito das múltiplas teorias acerca da natureza jurídica da propriedade horizontal, cf.
MASDEU, Luis Zanon. La proprieda d de casa s por pisos. Barcelona: Ariel, 1964, p. 74-
97; MARTIN-GRANIZO, Mariano Fernandez. La ley de propieda d horizontal en el
derecho español. Madrid: Editorial Revista Derecho Privado, 1962, p. 112-132; GUIDI,
Umberto. Il condominio nel nuovo Codice Civile, cit., p.17-34; LOPES, João Batista.
Condomínio. 6. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 48-55.
106 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Loteamentos e condomínios, cit. p. 325;
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tra tado de Dir eito Predia l. Rio de Janeiro:
José Konfino, 1947. t. II, p. 200; MAXIMILIANO, Carlos. Condomínio. 5. ed. Rio de
Janeiro: Freitas Bastos, 1961, p. 237-238; GOMES, Orlando. Direitos Reais. 12. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1997, p. 230. No direito italiano, PERETTI-GRIVA, Domenico Ricardo.
Il condominio di case divise in pa rti. Torino: Unione Tipografico-Editrice Torinese, 1960,
p. 516. GUIDI, Umberto. Il condominio nel nuovo Codice Civile, cit., p. 304-306.
107 FUENTES LOJO apud FAZANO, Haroldo Guilherme Vieira. Pr opriedade horizontal e

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