Direito real de laje: entre a lei e a realidade

AutorMaici Barboza dos Santos Colombo
Páginas457-500
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DIREITO REAL DE LAJE:
ENTRE A LEI E A REALIDADE
Maici Barboza dos Santos Colombo
“O povo que sobe a ladeira
Ajuda a fazer mutirão
Divide a sobra da feira
E repar te o pão.
Como é que essa gente tão boa
É vista como marginal
Eu acho que a socieda de
Tá enxergando mal”
Leandro Sapucahy
Sumário: Introdução 1 Gênese Legislativa 2 Perspectiva funcional do
direito real de laje 2.1 A laje como fato social 2.2 Fundamento
constitucional do direito real de laje 2.3 Consequências da compreensão
da laje como instrumento de regularização fundiária urbana em núcleos
vulneráveis 3 Breve análise estrutural do direito real de laje 3.1
Contornos conceituais 3.2 Natureza jurídica 3.2.1 Direito de superfície
3.2.2 Condomínio Edilício 3.2.3 Direito de laje como modalidade
proprietária 4 Usucapião 4.1 Usucapião de bem particular 4.2
Usucapião do direito real de laje e bens públicos 5 Conflitos entre o direito
ambiental e o direito real de laje Conclusão.
Resumo: O direito real de laje, objeto do presente estudo, foi recentemente
positivado no ordenamento jurídico brasileiro, primeiramente pela Medida
Provisória 759/2016 e, posteriormente, pela Lei 13.465/2017, que a
converteu em lei ordinária federal. O trabalho a seguir é resultado de
pesquisa exploratória, com abordagem teórico-crítica, a partir da análise de
documentos e bibliografia, a qual busca investigar o grau de efetividade
social do direito de laje no contexto específico das áreas favelizadas. O
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objetivo geral é analisar o instituto conforme as suas funções abstrata e
concreta, as quais, observando-se a metodologia civil-constitucional,
condicionam a interpretação aplicativa do instituto.
Palavras-chave: Direito de laje. Direitos reais. Direito de superfície.
Favelas.
INTRODUÇÃO
O direito real de laje foi positivado no ordenamento jurídico
brasileiro sob o pretexto embora não apenas de instrumentalizar a
regularização de favelas1. Assim constou no Projeto de Medida Provisória
encaminhado à Presidência da República, que o inseriu na ordem normativa
nacional. Em seguida, a Lei 13.465/2017, atualmente vigente e eficaz,
confirmou essa inserção, pormenorizando e disciplinando esse novo direito
real, por meio, principalmente2, do art. 1.510-A e seguintes, inseridos no
Código Civil.
Contudo, o direito que nasceu das áreas favelizadas a elas não se
circunscreve: o direito real de laje consiste em modalidade de direito real
prevista no Código Civil, sem qualquer ressalva específica sobre os limites
geográficos ou socioeconômicos de sua incidência3. A lei, geral e abstrata,
não apenas se aplica a comunidades pobres, onde a demanda social pela
1 Ricardo Lira aponta que a etimologia do termo vem de morro designado Favella no sertão
da Bahia, no contexto da Guerra de Canudos, servindo para designar a planta Ja thropa
Phyllaconcha, existente no local. (LIRA, Ricardo. Direito Formal e Direito Informal nos
centros urbanos brasileiros. Revista de Direito da Cida de, vol. 7, n. 2, p.p. 682)
2 Foi também disciplinado brevemente o aspecto registral do direito real de laje no art. 176,
§9º da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973).
3 Em sentido semelhante manifestou-se André Abelha, para quem uma das aplicações
possíveis do direito real de laje é na seara do direito minerário. Ele conclui que “[e]ntão não
importa (unicamente) que aplicação, na origem, se pensou para o instituto. Uma vez
positivado, ele se mistura com o restante do ordenamento jurídico e ganha vida própria. A
laje pode ter um futuro brilhante pela frente, se for bem, e sem preconceito, utilizada.
depende de nós.” (ABELHA, André. O post-it, a coca-cola e o direito de laje: lei 13.465/17
(Parte VIII). Migalhas, 27 nov. 2017. Disponível em: <www.migalhas.com.br> Acesso em:
05 dez. 2017.)
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juridicidade da laje germinou, mas a qualquer lugar4 e a qualquer pessoa.
Ousa-se afirmar, inclusive, que é nos núcleos urbanos formais, onde a
construção-base é regularmente construída conforme as exigências
registrais e urbanísticas, a maior viabilidade de sua incidência, tendo em
vista a frequente irregularidade das construções-base nas áreas favelizadas5.
Sem embargo, a extrapolação da eficácia jurídica para além da mens
legislatoris não aparece aprioristicamente como um “efeito colateral”
negativo que se deva combater6. Por outro lado, as dificuldades para a
implementação de um direito formal em espaços até então condenados à
informalidade merecem ser exploradas, com a finalidade de tentar contorná-
las e garantir a efetividade do instituto na realidade das áreas favelizadas.
Caso contrário, seria desperdiçada uma importante oportunidade para a
concretização dos valores constitucionais da solidariedade social e da
igualdade substancial, bem como a consecução efetiva da redução das
desigualdades sociais.
Ademais, uma jurisprudência de valores7 não ignora o contexto
social do direito e permite identificar funções e fundamentos próprios
quando a laje for reconhecida em situações de vulnerabilidade social. Por
isso, o objetivo do presente estudo é compreender os desencadeamentos
jurídicos da laje especificamente situada nas áreas favelizadas, a partir do
confronto entre a mens legislatoris e a lei efetivamente vigente. Pretende-se
levantar, sob a perspectiva funcional, eventuais incongruências entre a regra
4 Tendo sido acrescido no Código Civil, sequer há limitação quanto à qualificação do
imóvel, se urbana ou rural.
5 Em crítica semelhante, Cláudia Franco Correa chegou a afirmar que o direito de laje como
contemplado pela lei é um “direito de laje de ricos”. (CORREA, Cláudia Franco. Direito de
Laje. In: REUNIÃO DO FÓRUM PERMANENTE DE DIREITO DA CIDADE, 16, 2017,
Rio de Janeiro: EMERJ. Disponível em:
<http://www.emerj.tjrj.jus.br/paginas/eventos/eventos2017/o-direito-de-laje-e-o-
condominio-de-lotes.html.> Acesso em: 07 nov. 2017.)
6 Defende-se que o juízo de merecimento de tutela é critério valorativo para a tutela da
situação fática e parâmetro de legalidade para a aplicação do direito de laje em qualquer
situação, com ou sem vulnerabilidade social. Por isso, não se pode concluir a priori que o
direito de laje descaiba em contextos distintos aos da favela, sustentando-se apenas que a
vulnerabilidade social é fator distintivo relevante na atividade interpretativa-aplicativa para
a construção do instituto em concreto.
7 Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do dir eito. 7 ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2014.

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