Constituição da garantia fiduciária de bens móveis. Registro e oponibilidade em processo de recuperação judicial

AutorDanielle Fernandes Bouças
Páginas281-319
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CONSTITUIÇÃO DA GARANTIA FIDUCIÁRIA
DE BENS MÓVEIS. REGISTRO E OPONIBILIDADE EM
PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL
Danielle Fernandes Bouças
Resumo: O artigo aborda as evoluções legislativas da alienação fiduciária
de bens móveis, de maneira a defender a desnecessidade de seu registro para
sua constituição. O registro serviria apenas para conferir eficácia erga
omnes à garantia. A qualificação da relevância do registro mostra-se
fundamental em casos de recuperação judicial, em que a constituição da
garantia não registrada é frequentemente questionada pelo devedor com o
intuito de sujeitar o crédito aos efeitos do concurso de credores.
Palavras-chave: Garantia Fiduciária de Bens Móveis Registro
Oponibilidade Recuperação Judicial Insolvência - Boa-fé.
Sumário: 1. Introdução: Relevância do crédito e das garantias. 2. Alienação
e Cessão Fiduciária: evolução legislativa. 3. Lei de Recuperação Judicial.
Exclusão do crédito em garantia fiduciária. 3.1. Problemas iniciais:
classificação dos direitos creditórios como bens móveis, penhor e
ponderação de interesses na trava bancária. 3.2. O registro da garantia. 4.
Jurisprudência em formação. Registro e eficácia perante terceiros. 4.1.
Recentes precedentes das cortes superiores sobre o registro e sua eficácia.
4.2. Oscilações: Saldo após um ano do precedente. 4.3. Boa-fé, Tutela
externa do crédito, publicidade, risco do negócio e notoriedade da
insolvência. Fatores relevantes para análise do contrato e da garantia. 5.
Conclusão. Referências.
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1. INTRODUÇÃO: RELEVÂNCIA DO CRÉDITO E DAS
GARANTIAS
Para que se possa discutir o papel e função da alienação fiduciária,
principalmente em situações sensíveis de insolvência, como a hipótese da
recuperação judicial, faz-se necessário, antes, definir o conceito de crédito
e seu merecimento de tutela.
Crédito remete a certeza, confiança, empréstimo, dívida. Em uma
definição mais técnica, é a transferência de valores de uma pessoa em
sentido lato a outra, mediante remuneração, nas condições pactuadas. A
remuneração consiste, basicamente, no pagamento de juros que variam de
acordo com diversas circunstâncias e elementos, dentre eles o risco de
mercado, decorrente da desvalorização da quantia objeto do crédito, e o
risco do crédito, que resulta da probabilidade de o credor não receber o que
lhe cabe e foi pactuado.1 De modo mais sucinto, J. X. Carvalho de
Mendonça define como a operação em que alguém efetua uma prestação
presente, contra a promessa de uma prestação futura.2
Na idade média, a usura era vista como um ato imoral. Por conta de
influência religiosa, a atividade era taxada como proibida. Entendia-se que
a exploração da pessoa que precisava de dinheiro e a agiotagem seriam
contrários aos dogmas da igreja. Contudo, com a revolução industrial,
aumentou-se a demanda por grande volume de capitais para financiamento
de empreendimentos de maior dimensão e para sustentação da sociedade de
consumo em franca formação, não sendo mais possível conter a demanda
por crédito. Como se percebe, desse breve introito, dificilmente haverá um
financiamento para uma atividade de relevância social como ocorreu com
a revolução industrial - sem que haja mobilização de custos e, pela ínsita
lógica do mercado, sem que haja transferência desses custos aos clientes
que subsidiam a instituição financeira.
1 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Tutela judicial do crédito. TEPEDINO, Gustavo.
FACHIN, Luiz Edson. (Coord.) O dir eito e o tempo: embates jurídicos e utopias
contemporâneas. Estudos em homenagem ao professor Ricardo Pereira Lira. Rio de Janeiro:
Renovar, 2008, p. 463.
2 MENDONÇA, J. X. Carvalho de. Tratado de dir eito comercial brasileir o. Parte 2, vol. 5.
Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1938, p. 50.
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Uma vez que as operações de crédito, em regra, se materializam em
contratos, é desde já salutar delimitar o óbvio: eles são falhos ao não
anteverem, de forma completa, os riscos aos quais estão sujeitos. É
impossível pressupor todos os acontecimentos ou fatos que poderão se
concretizar, em especial os futuros. Justamente por conta dessa
imprevisibilidade, os contratos sempre serão imperfeitos, incompletos e
estarão sujeitos a fatores que possam alterar as condições originalmente
pactuadas. Por consequência, todos os contratos, a depender do evento,
podem ser questionados e revistos. Esses riscos intrínsecos, como eventuais
anulações ou mesmo revisões de cláusulas, indubitavelmente, incorrem em
custos de transação, os quais fatalmente são repassados aos consumidores.3
Um dos principais mecanismos para questionamento de contratos é
recorrer ao Poder Judiciário. Estudos recentes demonstraram que a
insegurança jurídica, pela indefinição da tutela de um tema, aumenta as
taxas de juros. O mesmo ocorre quando se contabilizam decisões favoráveis
aos devedores.4 Perlingieri ressalta que “entre o mercado e o direito, não
existe um antes e um depois, mas uma inseparabilidade lógica e histórica.
O mercado é, por definição, uma instituição econômica e jurídica ao mesmo
tempo, representado pelo seu estatuto jurídico, como tal caracterizado por
escolhas politicas”.5 Resta claro que a maximização do bem estar se esvazia
caso se ignore os fatores externos e o ambiente em que se insere. Não
dúvidas, também, que há atualmente um alto spread bancário6 influenciado,
3 SADDI, Jairo. A natureza econômica do contrato bancário. FONTES, Marcos Rolim
Fernandes. WEISBERG, Ivo. (coord.) Contra tos ba ncários. São Paulo: Quartier Latin,
2006, p. 26.
4 Para mais informações, principalmente sobre operações envolvendo alienação fiduciária
após o estouro cambial de 1999, v. RIBEIRO, Ivan Caio. A influência da segurança jurídica
sobre as taxas de juros na alienação fiduciária. In: Instituto Tendências de Direito e
Economia. (Coord.). Crédito imobiliár io. São Paulo: Instituto Tendências, 2005, p. 33-77.
5 PERLINGIERI, Pietro. Il Dir itto dei contratti fra persona e merca to:problemi del diritto
civile. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2003. p. 271-272.
6 O spread bancário é definido pelo Banco Central como “o adicional cobrado pelas
instituições financeiras dos tomadores s obre as taxas de captação” , ou seja, é a “diferença
entre taxas de juros de aplicação e de captação, compreendendo o lucro e o risco relativos
às operações de crédito. Representa também a diferença entre o preço de compra e de venda
de título ou moeda. Especifica o prêmio adicional que deve ser pago por um devedor em
relação a uma taxa de referência. O spread varia de acordo com a qualidade de crédito do
emissor, o prazo, as condições de mercado, o volume e a liquidez da emissão ou
empréstimo”. (fonte: http://www.bcb.gov.br/htms/infecon/niTxjuros.asp e

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