Novos contornos das servidões prediais

AutorDiego Brainer de Souza André
Páginas321-364
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NOVOS CONTORNOS DAS SERVIDÕES PREDIAIS
Diego Brainer de Souza André
Sumário: 1. Introdução; 2. Novel interpretação das servidões:
características, evoluções e remanescências clássicas (2.1 Características
das Servidões; 2.2. Modos de constituição da servidão; 2.3. Da extinção das
servidões e a hipótese da privação pelo não uso) 3. A servidão predial
como locus negocial, seu exercício e os critérios hermenêuticos próprios
(3.1 Autonomia privada na servidão; 3.2 O exercício do direito real de
servidão e seus critérios hermenêuticos) 4. Conclusão; 5. Referências
bibliográficas.
Resumo: O presente trabalho propõe apresentar as primeiras impressões e
problematizações de um projeto que almeja aplicar a metodologia do direito
civil-constitucional e seus desideratos hermenêuticos à servidão predial.
Isso porque, feito um breve cotejo analítico da produção sobre o tema,
notou-se haver sido relativamente deixado de lado no âmbito das hodiernas
pesquisas acadêmicas. Dentro desse panorama, o artigo ora em destaque se
cinge a perquirir, a partir do chamado direito comum das situações
patrimoniais, o âmbito interno de autonomia privada do direito, hábil a
moldar seu próprio conteúdo, visualizando-o na perspectiva dinâmica dos
direitos reais, em prestígio ao aspecto relacional entre os centros de interesse
dos titulares do prédio dominante e serviente. Desse modo, seguindo no
encontro com o direito obrigacional, cogita-se da própria contratualização
do tradicional instituto, encontrando-se novos contornos diante da aplicação
dos princípios subjacentes tais como a boa-fé objetiva, em todas as suas
vicissitudes para o adequado deslinde das situações jurídicas subjetivas
que se apresentam. Parte-se, assim, para a reinterpretação de algumas das
características clássicas da servidão, tais como a perpetuidade, a
inalienabilidade e o aparente dogma de que não se presume, bem como dos
critérios para o exercício do direito em evidência, forjando-se o baluarte de
merecimento de tutela in concreto.
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Palavras-chave: Servidão Predial; Autonomia Privada; Direito Comum das
Situações Patrimoniais; Contratualização.
1. INTRODUÇÃO
A servidão predial1 consta dos arts. 1.378 e seguintes do Código
Civil, estabelecendo o primeiro dispositivo que proporciona utilidade para
o prédio dominante, e grava o prédio ser viente, que pertence a diverso
dono, e constitui-se mediante declara ção expressa dos proprietár ios, ou por
testamento, e subsequente registro no Cartório de Registro de Imóveis.2
Trata-se de “direito real exercido sobre a coisa alheia que consiste na
constituição de um encargo sobre o prédio serviente, em favor do dono do
prédio dominante, tendo por finalidade precípua tornar a propriedade deste
mais útil, mais agradável ou mais condizente com a sua destinação natural”.3
Tradicionalmente, consubstancia ônus real que é imposto
voluntariamente a um prédio (serviente), em favor de outro (dominante),
mediante contrato ou testamento, em virtude do qual o proprietário do
prédio serviente reduz o exercício de alguns de seus direitos dominiais sobre
o bem, ou tolera que o proprietário do prédio dominante se utilize dele,
1 Esclareça-se que o Código Civil utiliza o termo servidões (arts. 1.379 a 1.389) em vez de
servidões prediais, que constava da codificação anterior (arts. 695 a 712). Entre os clássicos,
como se extrai da obra de Washington de Barros Monteiro, atualizada por Carlos Alberto
Dabus Maluf, o CC/16 aplicava a locução “prediais” para distingui-las das servidões
pessoais (usufruto, uso e habitação). Como a expressão constituía “resíduo inócuo da
terminologia tradicional” acabou por ser retirada (MONTEIRO, Washington de Barros.
Curso de direito civil bra sileiro. Direito das coisas. 37. ed. atual. por Carlos Alberto Dabus
Maluf. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 3, p. 276). Ademais, o termo servidões prediais, como
aludido em doutrina, acaba por ser pleonástico, uma vez que a servidão, por razões óbvias,
somente pode recair sobre imóveis ou prédios. Esclarece-se, nesse sentido, que a preferência
pelo termo “servidão predial”, utilizado no ite m em evidência, apenas ocorreu com fins de
facilitar a sua identificação, em distinção a outras espécies, como as servidões legais ou
administrativas.
2 Preceito semelhante estabelecia o art. 695 do CC/16, in verbis: Impõe-se a servidão
predial a um prédio em favor de outro, pertencente a diverso dono. Por ela perde o
proprietá rio do pr édio servente o exercício de alguns de seus dir eitos dominicais, ou fica
obrigado a tolerar que dele se utilize, par a certo fim, o dono do prédio dominante.
3 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Curso de Direito Civil. Direito das coisas, vol. V, São
Paulo: Atlas, 2015, p. 347.
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aumentando a utilidade de seu imóvel. Por sua vez, ao reforçar a função
econômica, San Tiago Dantas aduz que “a servidão é um meio de que se
serve o direito para corrigir a desigualdade natural entre os prédios”,4
enquanto Lafayette Rodrigues sustenta que “as servidões não são outra coisa
senão direitos por efeito dos quais uns prédios servem aos outros.5 Se não
lhe traz vantagem alguma no caso, ao prédio, como classicamente se dizia
, servidão não há, funcionando como conditio sine qua non.
Apesar de a servidão predial remontar aos primórdios da história do
direito romano, constituindo um dos institutos mais clássicos no estudo do
direito civil, guarda em seu âmago uma atualidade (e potencialidade) que
impressiona, porquanto materializa direito real sobre a coisa alheia que
atende à função social da propriedade,6 sofre diretas influências da boa-fé
4 Continua o próprio autor, dizendo o seguinte: “uma tem água e, na outra, escasseia; uma
tem argila, com que se pode manter uma olaria, outra tem matas, de onde se pode extrair a
lenha; outra tem caieiras, de onde se pode extrair cal” (SAN TIAGO DANTAS, Fr ancisco
Clementino de. Progr ama de Direito Civil: Direito das Coisa s, vol. III, Rio de Janeiro: Ed.
Rio, 1984, p. 316). De efeito, se um prédio tem água, pode lhe faltar pasto e o vizinho
necessitar de água para exploração agrícola e ter uma vasta pastagem que não está dando
função social. O mesmo ocorre em grandes em centros urbanos, hodiernamente, com
espaços cada vez mais limitados e necessidades crescentes de imóveis vizinhos inclusive
para o empreendimento de atividades empresariais -, aumentando a necessidade de construir
novos arquétipos imobiliários para satisfazer anseios com novas utilidades. Como restará
explicitado, a servidão, com fulcro em sua autonomia, pode se materializar em interessante
instrumento.
5 PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito das Coisas, 5. Ed., Livraria Freitas Bastos: 1943,
vol. I, p. 369. Os prédios têm, nesta relação, uma tal importância que se costuma dizer, por
força de expressão, que a relação é entre os próprios prédios. Nessa direção, seriam partes
o prédio dominante e o prédio serviente. Embora seja esta uma maneira figurada de
descrever a relação, há, de fato, na servidão, uma ligação muito forte entre os prédios. A
servidão é constituída em razão dos prédios. Traduz, assim, a possibilidade de o prédio
serviente oferecer uma utilidade ao prédio dominante. Em suma, a servidão adere aos
prédios. É de se notar aqui a característica clássica do instituto, posto que serve ao prédio,
fora, todavia, do contexto em que será primordialmente tratado no presente estudo, qual
seja, atribuindo-se primazia à ao perfil dinâmico do direito real, em sua faceta relacional
entre os polos de interesses da servidão, representados pelos possuidores dos prédios.
6 ARONNE, Ricardo. Por Uma Nova Hermenêutica Dos Dir eitos Reais Limitados, Editora
Renovar, 2001, p. 329-330. O autor em questão, atento à imprescindibilidade de coadunar
a servidão à função social, aduzia o seguinte: A servidão é um instituto cuja finalidade é o
aumento das possibilidades de funcionalização de um bem, cujo titular, por força da norma
constitucional do a rt. 5º, XXIII, se encontra obrigado a or ientar o exercício do domínio
tendo em vista o interesse social. É um instituto que tr az uma órbita de funcionalização do
prédio serviente, ao possibilitar que o pr édio dominante melhor atenda a função social,
ampliando seu domínio com parcela dominial do prédio serviente”. Observe-se, porém, que

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