A posse dos bens públicos e a função social da propriedade pública

AutorRafael da Mota Mendonça
Páginas151-194
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A POSSE DOS BENS PÚBLICOS E A
FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE PÚBLICA
Rafael da Mota Mendonça
Sumário: 1. Introdução - 2. A propriedade como função. 2.1. O absolutismo
da situação proprietária. 2.2. Teoria funcionalista - 3. A posse como função.
3.1. Autonomia da posse frente à propriedade e as razões para a tutela
possessória. As teorias subjetiva e objetiva da posse. 3.2. A posse como
forma de cumprimento da função social da propriedade. A prevalência da
situação possessória em face da situação proprietária: A função social como
um método de resolução do conflito - 4. A natureza jurídica da ocupação
dos particulares em bens públicos: O descompasso das decisões judiciais
frente ao regime jurídico da posse funcionalizada Posse x Detenção - 5.
Teorias possessórias: Uma releitura necessária - 6. A teoria econômica da
posse de Raymond Saleilles - 7. Conclusão - Referências bibliográficas.
Resumo: A propriedade está positivada no ordenamento jurídico brasileiro
como direito real pleno, absoluto e perpétuo. O referido instituto não deve
ser observado apenas na sua perspectiva estrutural, mas também na sua
acepção funcional. É o que pretende o presente trabalho, especialmente no
que tange aos embates entre a situação jurídica proprietária e a situação
jurídica possessória. Com objetivo de demonstrar a autonomia da posse
frente a propriedade e estabelecer parâmetros para solucionar os conflitos
existentes entre as situações proprietárias e possessórias, analisar-se-á o
tratamento dado a posse nas teorias de Frederick Karl Von Savigny, Rudolf
Von Ihering e Raymond Saleilles e a evolução desse instituto no
ordenamento jurídico brasileiro. A vinculação do instituto da posse ao
estatuto proprietário inviabiliza o cumprimento de sua função social,
priorizando situações jurídicas patrimoniais em face de situações
existenciais. Para superar essa perspectiva, o artigo sugere uma releitura da
teoria possessória positivada no Código Civil, buscando uma maior
aderência aos pilares constitucionais na resolução dos conflitos concretos
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entre a situação jurídica possessória e a proprietária.
Palavras-chave: Posse. Propriedade. Função Social. Bem Público.
1. INTRODUÇÃO
Os conflitos urbanos no Brasil ganham protagonismo no campo
jurídico no momento em que alcançam nível constitucional (Título VII,
Capítulo II, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988).
Embora esta problemática tenha causas históricas nos processos de
industrialização e desindustrialização, acompanhados de um êxodo rural
desordenado, a mesma nunca foi enfrentada como um tema estrutural na
pauta política do país. A partir de 1988 com a promulgação da Constituição
e posterior produção legislativa infraconstitucional, a questão urbana é
levada ao centro das discussões.
De acordo com dados do Ministério das Cidades, com base no censo
realizado em 2010, o déficit habitacional no Município do RJ é de 220.774
domicílios, no Estado do RJ de 515.067 domicílios (9,8% da população) e
no Brasil de 6,940 milhões de unidades (85% na área urbana). Os dados
apontados não representam exclusivamente pessoas sem moradia, mas
também pessoas que vivem em moradias precárias, informais ou sem
estrutura urbana básica.1
1 Dados divulgados pelo Centro de Estatística e Informações da Fundação João Pinheiro e
pela Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das Cidades, em 19 de dezembro de
2013. Disponível em http://www.fjp.mg.gov.br/index.php/noticias-em-destaque/2680-
fundacao-joao-pinheiro-e-ministerio-das-cidades-divulgam-os-resultados-do-deficit-
habitacional-municipal-no-brasil. Acesso em 10 de dezembro de 2015. A metodologia
utilizada considera como integrante do déficit habitacional qualquer domicílio amostrado
em que ocorre uma das quatro situações: habitação precária (domicílios improvisados ou
rústicos - A carência de infraestrutura urbana foi o componente de inadequação que mais
afetou os domicílios urbanos brasileiros. No total, 13 milhões de habitações (26,4%)
careciam de pelo menos um item de infraestrutura básica: água, ener gia elétrica,
esgotamento sanitário ou coleta de lixo.), coabitação familiar (soma dos cômodos e das
famílias conviventes com intenção de construir um domicílio exclusivo), ônus excessivo de
aluguel (superior a 30% da renda familiar) ou adensamento excessivo de moradores em
imóveis alugados (mais de três moradores por dormitório).
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A situação de informalidade dos diversos assentamentos urbanos
tem conexão direta com a natureza jurídica da relação desses ocupantes com
o bem ocupado. A proteção que o ordenamento jurídico outorga a esses
ocupantes está no centro da problemática, tornando relevante para a
compreensão geral do tema a análise dos institutos da detenção, posse e
propriedade. Para um recorte mais detalhado da controvérsia apresentada,
dever-se compreender como esses institutos estão positivados no
ordenamento jurídico brasileiro e os reflexos que a axiologia constitucional
trouxe para cada um deles.
A análise do processo de formação da legislação brasileira
relacionada à tutela dos institutos da posse e da propriedade, especialmente
no bem público, permite identificar a construção de um aparato jurídico de
proteção que inviabiliza o acesso de terceiros não proprietários à terra
urbana e rural. Desta forma, identifica-se uma verdadeira relação de
causalidade entre o tratamento jurídico relacionado à ocupação dos bens
públicos por particular e a situação de informalidade dessas ocupações.
Para comprovação dessa causalidade, será apresentada a evolução
do tratamento jurídico dado à propriedade, que a partir da vigência da
Constituição e do Código Civil de 2002, deixa de ser apenas um direito real
absoluto e passa à situação jurídica complexa, em que são outorgados ao
titular desse direito inúmeros deveres, levando em conta a situação não
proprietária. Dentre outros instrumentos, a função social é o elemento
necessário para compatibilizar os diversos centros de interesses
antagônicos, solucionando a dialética representada pela situação
proprietária x situação não proprietária.
Continuando com a percepção dos institutos a partir do seu aspecto
funcional, deve ser observada a relevância e o próprio papel da posse no
ordenamento jurídico brasileiro, a partir da busca de soluções coerentes para
o conflito apresentado. Assim, embora inicialmente a posse tenha sido
positivada como mero sucedâneo da propriedade, especialmente nas teorias
de Savigny e Ihering, esta lógica é insuficiente para atender as demandas
concretas da contemporaneidade. Desta forma, a posse deve ser estudada
como instituto autônomo ao direito de propriedade, consagrando a sua
imanente densidade social, sendo inclusive através dela que a propriedade
alcança a sua funcionalidade plena.

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