Direito de retenção: subsídios para o delineamento de uma teoria geral

AutorRodrigo da Guia Silva
Páginas411-455
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DIREITO DE RETENÇÃO: SUBSÍDIOS PARA O
DELINEAMENTO DE UMA TEORIA GERAL
Rodrigo da Guia Silva
Sumário: 1. Introdução: o percurso rumo a uma disciplina comum dos
mecanismos passivos de autotutela privada; 2. Sequelas do tratamento
assistemático do direito de retenção; 3. Por uma disciplina unitária do
direito de retenção: aspectos relevantes e questões controvertidas; 4.
Crítica à suposta taxatividade do direito de retenção; 5. Aproximação
funcional entre o direito de retenção e a exceção de contrato não cumprido;
6. Considerações finais; Referências bibliográficas.
Resumo: O presente estudo almeja destacar pontos relevantes para o
delineamento de uma teoria geral do direito de retenção no sistema jurídico
brasileiro. Destacam-se, inicialmente, algumas das principais
consequências negativas decorrentes do tratamento assistemático da
matéria. Analisam-se, então, questões de particular interesse para a
definição de um regime jurídico possivelmente unitário a propósito do
direito de retenção. Ainda no esforço de sistematização, passa-se em revista
o tradicionalmente entendimento sobre a suposta taxatividade do remédio
em comento. Por fim, aventam-se perspectivas de aproximação entre o
direito de retenção e a exceção de contrato não cumprido, remédios com
função potencialmente similar no âmbito dos mecanismos defensivos de
autotutela privada.
Palavras-chave: 1 Direito de retenção; 2 Autotutela; 3 Taxatividade;
4 Exceção de contrato não cumprido; 5 Remédios.
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1. INTRODUÇÃO: O PERCURSO RUMO A UMA DISCIPLINA
COMUM DOS MECANISMOS PASSIVOS DE AUTOTUTELA
PRIVADA
A doutrina brasileira tem dedicado escassa atenção à temática do
direito de retenção. Tal circunstância justifica que se advirta, de antemão,
para o fato de que nem toda alusão pelo Código Civil ao termo retenção
corresponde ao conteúdo técnico do direito de retenção propriamente dito.
Em noções meramente introdutórias, e sem descuidar-se das variadas
proposições teóricas que buscaram elucidar-lhe o conceito, o direito de
retenção pode ser entendido como a prerrogativa conferida a alguém dito
retentor de conservar em seu poder um ou mais bens do devedor até que
este lhe satisfaça certa obrigação.1 Destaca-se, nesse sentido, o caráter de
exceção dilatória do direito de retenção, em razão da sua vocação à coerção
indireta do devedor ao pagamento.2
Não basta, para que se configure o direito de retenção, a mera
apreensão física sobre coisa alheia; faz-se imprescindível, em realidade, que
haja uma especial vinculação da coisa ao pagamento de determinado
1 Nesse sentido, v. SARMENTO, Aécio Lacerda et alii. Retenção [verbete]. In: FRANÇA,
Rubens Limongi (Coord.). Enciclopédia Sara iva do Direito, vol. 26. São Paulo: Saraiva,
1977, p. 327. Arnoldo Medeiros da Fonseca identifica o direito de retenção como a “(...)
faculdade assegurada ao credor, independente de qualquer convenção, de continuar a deter
a coisa a outrem devida até ser satisfeita, ou ficar extinta, uma obrigação existente para com
ele” (FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Direito de retenção. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1957, p. 105). Em formulação sintética, Clovis Bevilaqua afirma que o direito de retenção
“(...) consiste em o possuidor conservar a coisa em seu poder, até ser embolsado das
despesas, a que tem direito” (BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do
Brasil, vol. I. Rio de Janeiro: Rio, 1976, p. 995). Em trabalho monográfico a propósito do
direito espanhol, Ínigo Mateo y Villa afirma: “Pode-se definir o direito de retenção como a
conservação em nosso poder de um bem até que aquele que tem direito a retirá-lo de nossas
mãos tenha satisfeito o que nos deve” (VILLA, Íñigo Mateo y. El der echo de r etención.
Navarra: Aranzadi, 2014, p. 59. Tradução livre do original).
2 V. ESPINOLA, Eduardo. Garantia e extinção das obr igações: obrigações solidárias e
indivisíveis. Atual. Francisco José Galvão Bruno. Campinas: Bookseller, 2005, p. 273. O
autor assevera: “Na exposição do direito Civil positivo, cumpre considerar o direito de
retenção como garantia aplicável a determinadas categorias jurídicas; como meio legal de
ilidir o princípio do exato cumprimento da obrigação; como garantia para assegurar o
cumprimento de certas prestações, em determinados contratos sinalagmáticos; como
exceção dilataria que se oponha a ações reais” (Ibid., p. 275).
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crédito.3 O objeto precípuo do presente estudo consiste justamente, então,
na investigação da possibilidade de sistematização do direito de retenção no
direito brasileiro, em meio ao tratamento tantas vezes inconsistente
conferido ao tema pelo legislador pátrio.4
Subjaz a esta empreitada metodológica a assunção de que a diminuta
atenção dispensada pela civilística nacional ao estudo do direito de retenção
não condiz com a relevância prática e teórica do instituto. Destaca-se, a
propósito, a atualidade da afirmação de Arnoldo Medeiros da Fonseca, autor
de monografia seminal na matéria, segundo o qual, “(E)ntre os diversos
institutos jurídicos, do campo do direito privado, nenhum talvez haja sido
objeto de maiores controvérsias do que o direito de retenção”.5
A questão assume particular relevância em razão da íntima relação
do direito de retenção com a temática de fundo atinente aos limites de
legitimidade da autotutela no direito privado.6 Reter coisa alheia como
instrumento de coerção à satisfação do crédito traduz, com efeito, postura
de promoção autônoma e particular da tutela do próprio direito, em exceção
à regra geral de imprescindibilidade do controle jurisdicional para o
equacionamento de litígios entre os particulares.7 Sem qualquer pretensão
3 A título meramente ilustrativo de hipóteses que não traduzem autêntico exercício de direito
de retenção, pense-se na retenção para consignar em pagamento e na retenção para
promover compensação obrigacional. Para um desenvolvimento da presente distinção
preliminar, v. VILLA, Íñigo Mateo y. El derecho de r etención, cit., pp. 27-40.
4 Advirta-se, de antemão, que o presente estudo tem por parâmetro de análise o direito
brasileiro contemporâneo e, a título exemplificativo, a experiência normativa estrangeira
, sem pretensão de investigação de matriz histórica. Para um aprofundamento do
desenvolvimento histórico do direito de retenção, v. FONSECA, Arnoldo Medeiros da.
Direito de retençã o, cit., pp. 35-59 e 91-102.
5 FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Direito de retenção, cit., p. 11. O autor prossegue:
“Apesar de uma evolução milenária, ainda hoje tal instituto se nos apresenta incerto nos
seus limites, variadamente disciplinado, dando lugar às maiores divergências sobre a sua
natureza específica e os seus efeitos” (Ibid., p. 11).
6 Para um aprofundamento de todo incabível nesta sede da relação entre o direito de
retenção e a problemática de fundo referente à legitimidade da autotutela no direito privado,
v. BETTI, Emilio. Autotutela (diritto privato) [verbete]. Enciclopedia del diritto, vol. IV.
Milano: Giuffrè, 1959, pp. 529-537; e BARBA, Angelo. Ritenzione (diritto privato)
[verbete]. Enciclopedia del dir itto, vol. XL. Milano: Giuffrè, 1989, pp. 1.373-1.377.
7 A relevância do quanto exposto não se reduz pelo caráter passivo da autotutela exercida
mediante direito de retenção. Trata-se, aliás, de característica comum à exceção de contrato
não cumprido, o que permite afirmar que “(...) participam juntos na mais ampla categoria
dos ‘remédios acauteladores em autotutela’” (BENEDETTI, Alberto Maria. Le autodifese

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