Impactos da Lei n. 13.103/2015 sobre a proteção jurídica ao motorista profissional

AutorPaulo Douglas Almeida de Moraes
Ocupação do AutorProcurador do Trabalho da 24ª Região; ex-Juiz do Trabalho da 15ª Região; ex-Auditor-Fiscal do Trabalho
Páginas169-198
169
Paulo Douglas Almeida de Moraes(**)
“Democracia é a forma de governo em que o povo imagina estar no poder.”
(Carlos Drummond de Andrade)
CAPÍTULO I
NOTAS INTRODUTÓRIAS
O Direito, como ciência social que é, experimenta momentos nos quais seus fundamentos e sua
f‌i nalidade última são postos à prova.
A despeito do Direito servir historicamente à pacif‌i cação dos conf‌l itos sociais por meio do
estabelecimento de regras abstratas previamente estabelecidas, hodiernamente ganha relevo o seu
caráter civilizatório, viés sob o qual ele se apresenta com uma missão muito mais ousada – a missão
não de meramente conformar a sociedade, mas sim de transformá-la e de torná-la mais justa e solidária.
É esta a literalidade da carta constitucional de 1988, norma ápice do sistema jurídico interno, verbis:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I — construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II — garantir o desenvolvimento nacional;
III — erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV — promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação.
No entanto, vivemos uma fase que desaf‌i a essa premissa libertária do Direito, sobretudo do
direito do trabalho, que vem sofrendo sucessivos ataques que colocam em questão sua capacidade
de prosseguir na trajetória de garantia da dignidade humana e de elevação do patamar civilizatório
da sociedade.
Em verdade, após o advento da Lei n. 13.467/2017, a chamada “reforma trabalhista”, dado o
impacto por ela gerado nos principais pilares principiológicos e axiológicos do direito do trabalho,
é inescapável perquirir se, conforme proposto pelo legislador reformista, esse ramo do direito ainda
tem razão de ser.
Todavia, o aspecto que se busca destacar nessa obra, é que a estrutura normativa da atividade
do motorista prof‌i ssional dada pela Lei n. 13.103/2015 formou, em grande medida, a base para a
reforma trabalhista.
(*) Texto originalmente publicado na Revista LTr, edição de junho/2015.
(**) Procurador do Trabalho da 24ª Região; ex-Juiz do Trabalho da 15ª Região; ex-Auditor-Fiscal do Trabalho. Presidente do
Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho — IPEATRA. Bacharel em
Direito e Administração de Empresas, pós-graduado em Administração de Sistemas e de Informações Gerenciais. Coautor
da ação civil pública que deu origem ao debate que redundou na edição da Lei n. 12.619/2012.
II
IMPACTOS DA LEI N. 13.103/2015 SOBRE A PROTEÇÃO
JURÍDICA AO MOTORISTA PROFISSIONAL(*)
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Com efeito, como já debatido e demonstrado nas edições anteriores, a concretização do poder
conferido aos sindicatos para negociarem condições especiais que esvaziam não apenas as proteções
garantidas em lei ordinária, mas até mesmo direitos fundamentais como a limitação da jornada de
trabalho, é marcante na Lei n. 13.103/2015 e essa, nada mais é, do que a gênese da fórmula nuclear da
reforma trabalhista: “o negociado sobre o legislado”.
Basta analisar a essência da reforma trabalhista para perceber que a regulamentação da atividade
do motorista prof‌i ssional serviu como um verdadeiro laboratório para experimentar formulações
f‌l exibilizatórias que vieram a ser aplicadas, por meio da reforma, a todos os trabalhadores brasileiros.
Essa umbilical relação entre a Lei n. 13.103/2015 e o então projeto de lei que veio a ser convertido
na Lei n. 13.467/2017, foi objeto de estudo publicado no volume 82, n. 4 da Revista do Tribunal
Superior do Trabalho, sob o título “Negociado sobre o legislado: uma proposta onde todos perdem.
Transporte rodoviário de cargas, um eloquente exemplo”.
O referido artigo visa, a partir da análise dos efeitos já observáveis da Lei n. 13.103/2015 sobre
motoristas prof‌i ssionais, prospectar a magnitude dos efeitos deletérios, sociais e econômicos,
decorrentes da aplicação generalizada da f‌l exibilização do regramento trabalhista a todos os setores
da economia.
É possível afirmar que a CLT está para a Reforma Trabalhista assim como Lei n. 12.619/2012 está
para a Lei n. 13.103/2015, as primeiras garantindo proteção e as últimas promovendo a desproteção
dos trabalhadores.
O dramático retrocesso social inicialmente experimentado no setor do transporte rodoviário
e agora aplicado a todos os setores econômicos brasileiros, com maior força, nos remete ao embate
doutrinário outrora travado entre Ferdinand Lassalle e Konrad Hesse, no qual se discutia a magnitude
e caráter determinístico dos chamados fatores reais de poder, seja sobre a produção legislativa ou
mesmo sobre a aplicação da norma posta.
Ferdinand Lassalle, autor da célebre obra “Que é uma Constituição?”(1), af‌i rma que a Constituição
de um país é, em síntese, a soma dos fatores reais do poder que regem esse país, gizando que:
Reúnem-se os fatores reais do poder, dá-se-lhes expressão escrita e, a partir desse momento, não são simples fatores
reais do poder, mas verdadeiro direito. Quem contra eles atentar viola a lei e, por conseguinte, é punido. Conhecemos
ainda o processo utilizado para converter tais escritos em fatores reais do poder, transformando-se dessa forma em
fatores jurídicos.
Lassalle ensina, pois, que a “Constituição real” é aquela decorrente da síntese dos interesses dos
fatores reais de poder, enquanto o texto constitucional seria tão somente uma “folha de papel”.
Konrad Hesse, por seu turno, ex-presidente da Corte Constitucional Alemã e autor da clássica
obra “A força normativa da Constituição(2), contrapõe-se ao escólio de Lassalle sustentando que a
Constituição não é e não deve ser um subproduto mecanicamente derivado das relações de poder
dominantes, ou seja, sua força normativa não deriva unicamente de uma adaptação à realidade, mas,
antes, de uma vontade de constituição. Na concepção de Hesse, a Constituição seria, em si, um fator
real de poder.
A problemática sob exame se amolda com perfeição ao debate doutrinário travado entre Lassalle
e Hesse, na medida em que o agronegócio e a indústria representam importantes fatores reais de
poder, os quais empreenderam todo seu poder político para o f‌i m de moldar o Direito à realidade, de
modo a atender seus interesses econômicos.
A açodada revisão da Lei n. 12.619/2012, levada a efeito com f‌l agrante violência a garantias
constitucionais pétreas já era suf‌i ciente para admitir que Lassalle e Drummond tinham mesmo razão
– a Constituição não passa de uma folha de papel e o povo é mesmo tolo.
(1) LASSALLE, Ferdinand. Que é uma Constituição? Edições e Publicações Brasil, São Paulo, 1933. Tradução de Walter Stönner
(2) HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: safE, 1991. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes

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