A Posição dos Tribunais Quanto às Irregularidades no Consumo de Energia Elétrica e o Dano Moral: A Necessidade de uma Mudança de Paradigma

AutorMatheus Vieira de Almeida Ferreira
Ocupação do AutorAdvogado da Eletrobras
Páginas24-66
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1 INTRODUÇÃO
O trabalho visa criticar o tratamento atualmente dispensado pelo Poder
Judiciário aos casos de irregularidades praticadas pelo usuário de energia
elétrica que uma vez lagrado pela concessionária de distribuição ingressa
em juízo requerendo a anulação dos atos iscalizatórios e a repa ração por
eventuais danos materiais e morais
Os objetivos do presente artigo são identiicar qual o tratamento dado
pelo Judiciário a este tipo de demanda e suas razões apontar as conse
quências deste posicionamento para a distribuidora e para a sociedade
demonstrar o cabimento e a necessidade de se utilizar o dano moral como
instrumento idôneo para desincentivar a conduta ilícita dos usuários
Para alcançar esses objetivos foram consultados livros da doutrina
artigos leis resoluções e também a jurisprudência relativa à matéria
Esperase demonstrar com este estudo a necessidade de uma modii
cação da jurisprudência sobre o assunto
O presente trabalho foi então estruturado em duas partes
A primeira parte trata da inluência que o senso comum segundo o qual
os ilícitos perpetrados por usuários no âmbito do fornecimento de energia
elétrica podem ser considerados de menor gravidade tem sobre as decisões
judiciais Procura também demonstrar como a jurisprudência pautada por
este paradigma inlui na reprodução do comportamento ilícito o que acar
reta prejuízo para a concessionária para o serviço e para toda a sociedade
A segunda parte trata da possibilidade de se utilizar o dano moral como
ferramenta de desincentivo ao furto e à fraude cometidos no consumo de
energia elétrica
2 O SENSO COMUM E A JURISPRUDÊNCIA: UMA
BREVE ANÁLISE DE COMO A VISÃO SOCIAL SOBRE
O CONSUMO IRREGULAR DE ENERGIA REPERCUTE
NO ENTENDIMENTO DO PODER JUDICIÁRIO E
OS EFEITOS NEGATIVOS DESTA INFLUÊNCIA
No ano de  recémtransferido da Divisão de Contencioso para a Asses
soria Jurídica da Diretoria de Distribuição da Eletrobrás uma das primeiras
tarefas que me foi atribuída foi acompanhar a equipe que representaria as
distribuidoras do Grupo nas audiências p’blicas do segundo ciclo de revisão
Matheus Vieira de Almeida Ferreira 25
tarifária No decorrer de uma semana percorreríamos quatro Estados da
Região Norte do país com a missão de levar aos usuários e aos represen
tantes da ANEEL a visão das concessionárias sobre os critérios de ixação
da tarifa Tomado de grande excitação conquanto não somente teria meu
primeiro contato com a Agência Reguladora como teria a oportunidade de
participar de um debate amplo com a sociedade civil sobre a metodologia
tarifária a ser adotada nos próximos anos viajei até as cidades de Boa Vista
Manaus Rio Branco e Porto Velho na expectativa de acompanhar de perto
o processo de construção e legitimação da decisão regulatória
Já em Boa Vista transcorrendo a audiência p’blica abriuse o espaço
para as contribuições da sociedade Eis que sobe ao p’lpito um senhor já
de certa idade aparentando bem pouca instrução e começa a discursar
sobre como o serviço de fornecimento de energia era ruim e a conta era
cara Discorreu longamente sobre o absurdo que era pagar alguma coisa
por algo tão básico que deveria ser fornecido de graça )sto sempre com
a corroboração da plateia  composta por pessoas do povo mas também
por autoridades  que ora assentia com um movimento de cabeça ora com
efusivas palmas e manifestações verbais de apoio ao inlamado orador
Ao inal do discurso o homem fez um apelo aos representantes da
ANEEL que compunham a mesa para que izessem por onde obrigar a
concessionária a zelar melhor pela localidade onde morava e citou o nome
do lugar Neste momento uma representante da Agência interveio dizendo
mas senhor essa localidade ica na área de concessão da CERR Companhia
Energética de Roraima Esta é a audiência p’blica de revisão tarifária da
Boa Vista Energia Ao que o homem respondeu não importa minha ilha
O serviço é caro e ruim do mesmo jeito O mais espantoso é que longe de
constituir exceção aquela fala deu a tônica das contribuições naquela audi
ência e nas outras três que se seguiram
Naquela semana em meio a desconstrução de minha concepção do que
seria uma audiência p’blica dentre outras constatações foime possível
perceber empiricamente dois aspectos da visão geral dos usuários sobre o
serviço de fornecimento de energia
O primeiro é que o senso comum sobre o serviço de distribuição de
energia é de que se está pagando caro demais por um bem que custa muito
pouco e que a rigor deveria ser fornecido gratuitamente Logo quem paga
sua conta integralmente e em dia já está fazendo muito e na maioria das
vezes é injustiçado pela concessionária com uma prestação de má qualidade
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Sendo assim a conduta daquele que não paga em dia frauda a medição ou
até mesmo comete furto de energia não é de todo reprovável
O segundo é de que esta visão é bastante difundida em nossa sociedade
em todas as classes não apenas nas menos favorecidas Consequentemente
está também presente em nossas instituições que acabam sendo coniventes
com os comportamentos dela decorrentes e ajudam a reproduzila
Estas conclusões baseadas em minhas impressões pessoais já foram
corroboradas a partir de pesquisa cientiica sobre o tema A antropóloga
(ilaine Yaccoub a partir de trabalho etnográico realizado em determi
nado local da região metropolitana do Rio de Janeiro na área de concessão
da Ampla observou
Nesse trabalho de campo pude perceber que os moradores que tinham
faziam gato de energia elétrica possuíam justiicativas variadas que
endossavam suas ações Eram respostas conscientes que surgiam quando
o assunto chegava à conversa de forma espontânea ou percebida por mim
quando interpretava a partir do ponto de vista deles alguma ação ou
discurso e dessa forma chegava a alguma conclusão Eram representações
compartilhadas que exaltavam uma moralidade reconhecida
Quando perguntei o motivo responderam simplesmente que sempre
izeram que consideravam a tarifa da concessionária alta demais e que não
queriam deixar de se beneiciar do conforto que lutaram para conquistar
Dormir no ar condicionado por exemplo é um relexo dessa conquista e ao
instituir um novo hábito de consumo era árduo não dar continuidade a ele
não conseguiam dormir no calor Outro ponto levantado constantemente é
que não consideravam justo o valor cobrado e diziam que com o dinheiro
que poupavam com a conta de energia preferiam gastar comprando
outros bens como roupas shows trocando de carro eletroeletrônicos etc
)nsisti ainda sobre os meios coercitivos presentes e aplicados Não
demonstraram qualquer preocupação airmando que não queriam mudar
seu estilo de vida deixando de usar determinados eletrodomésticos por
exemplo Não pagariam caro por algo que os faziam sentiremse lesados
Apontavam a falta de qualidade do fornecimento e não consideravam
justo pagar uma conta alta Fazendo o gato pagavam aquilo que consi
deravam o certo Eles podiam pagar mas não conferiam valor à energia
elétrica como um produto e muito menos como um bom serviço respon
YACCOUB (ilaine O Gato de energia elétrica  status controvérsias e morali
dades )n ROC(A F Org Temas Relevantes no Direito de Energia Elétrica
– Tomo II Rio de Janeiro Synergia  p 

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