A seletividade do Sistema Penal e a construção histórica da 'vulnerabilidade' da população negra ao encarceramento em massa

AutorThaisa Maria Rocha Lemos
Ocupação do AutorMestranda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista CAPES
Páginas244-261
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O sistema penal, entendido por Eugenio Zaaroni como o
“controle social punitivo institucionalizado” (2010, p. 65), quer apre-
sentar-se como equânime, atingindo de maneira igualitária as pesso-
as em função das condutas porventura praticadas, porém, na práti-
ca, sustenta uma contradição entre igualdade formal dos sujeitos de
direito e desigualdade substancial dos indivíduos, uma vez que seu
“funcionamento é seletivo, atingindo apenas determinadas pessoas,
integrantes de determinados grupos sociais, a pretexto de suas con-
dutas” (BATISTA, 1999, pp. 25-26).
De acordo com Alessandro Baratta os “processos de crimi-
nalização secundária acentuam o caráter seletivo do sistema penal
abstrato”. Diante disto, neste trabalho pretende- se enfocar a maneira
pela qual a “raça”, como critério criminalizante, foi acoplada às leis
do second code – um conjunto de regras extra-ociais construídas de
maneira sócio histórica e que regulam de maneira fantasmática a apli-
cação das normas penais em abstrato por parte dos órgãos judicantes.
A hipótese de existência deste second code signica a refutação do ca-
ráter fortuito da desigual distribuição das denições criminais”, e nos
fornece um “novo princípio condutor” para buscarmos explicações
para os alarmantes dados fornecidos tanto pelo documento “Mapa
do Encarceramento: os jovens do Brasil” (2015)2 – que apontou ter
havido uma progressão assustadora no número de presos: de 2005
a 2012 o número de encarcerados aumentou 74% – , quanto pelo 8o
Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2014)3 – que assinala ser
1
Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista CA-
PES.
2
Disponível em: ud.org.br/arquivos/encarceramento_WEB.pdf>.
Acesso em: 03/10/2017.
3
Disponível em: .forumseguranca.org.br/produtos/anuario-brasileiro-
-de-seguranca-publica/8o- anuario-brasileiro-de-seguranca-publica>. Acesso em:
!"#$%&"'!(')&(!*+,!('+&"'-.'+*&"'%&',/$0&'1+"+'2!/%!'3'?5:
a população negra 18,4% mais encarcerada em comparação com a
branca. Tais informações, se conjugadas, nos sugerem a inclusão do
Brasil enquanto um dos palcos do fenômeno do encarceramento em
massa.
O jurista e sociólogo David Garland aponta que o encarce-
ramento em massa possui duas características essenciais. A primei-
ra delas é o número absoluto de presos: “encarceramento em massa
implica uma taxa de encarceramento e um tamanho de população
prisional que é marcadamente acima da norma histórica e compara-
tiva para as sociedades deste tipo” (2001, p. 01, tradução nossa)4. As
prisões brasileiras claramente preenchem esse critério, anal, se con-
siderarmos para ns de análise o período compreendido de 2006 a
2010, temos que a população prisional saltou de 336.775 presos para
445.705, o que nos dá uma taxa de aumento de 32%. Comparando
este índice com os provenientes de países da América Latina, como
Argentina e Chile, ambos com histórico de dominação/exploração
colonial, temos que aquele foi o maior, uma vez que na Argentina,
segundo análise feita a partir de dados constantes do sítio virtual
“World Prison Brief”5, houve um aumento de apenas 7,38% e no Chi-
le de 20,09% no mesmo período6.
O segundo elemento caracterizador do fenômeno do encar-
ceramento em massa se revela quando “ela deixa de ser o encarcera-
mento de criminosos individuais e torna-se a prisão sistemática de
grupos inteiros da população” (GARLAND, 2001, p. 02, tradução
nossa)7. No caso brasileiro, a população sistematicamente atingida
pelo jus puniendi estatal é a negra, tendo em vista que, conforme já
exposto, a mesma é 18,4% mais encarcerada do que a branca. Em face
03/10/2017.
4
No original: “[...] mass imprisonment implies a rate of imprisonment and a size of
prison population that is markedly above the historical and comparative norm for
societies of this type.”
5
Disponível em: studies.org/world-prison-brief>. Acesso em:
04/10/2017.
6
Chegamos às porcentagens apresentadas da seguinte forma: se houvesse um au-
mento de exatamente do número de encarcerados no ano inicial, este aumento seria
de 100%; diminuindo da quantidade de presos no ano nal o número daqueles do
ano inicial, teremos a variação real, a qual equivalerá a “x”; o resultado de “x”, por
sua vez, é obtido mediante regra de três simples.
7
No original: “[...] it ceases to be the incarceration of individual oenders and beco-
mes the systematic imprisonment of whole groups of the population”.
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de tais dado, é preciso reconhecer, primeiramente, na esteira do que
preleciona Loïc Wacquant, “que a prisão não é uma mera aplicação
técnica do Leviatã, desenhada para reter os agressores, mas uma for-
ma do Estado central se dedicar à gestão das populações desprovidas
e desonradas” (2009, p. 04). Inversamente ao apregoado por Nelson
Hungria, ao analisar dados de 1940, de que “o coeciente de crimina-
lidade dos homens de cor (negros e mulatos, isto é, mestiços de indo-
-europeu e negro) é, no Brasil, comparativamente, muito maior que
o da população branca” (1978, p. 273), estatisticamente, hoje, não há
dados que ratiquem tal armação. Muito pelo contrário. De acordo
com o 8o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2013), a popula-
ção negra é 30,5% mais vítima de homicídio no Brasil8. Deste modo,
percebe-se que a criminalidade não é seletiva mas a criminalização o
é, pois todos cometem crimes, mas nem todos são punidos por eles.
Nas palavras de Zaaroni, “los presos no están presos por el delito que
han cometido, sino por su vulnerabilidad, es decir, que el sistema penal
opera como una epidemia, que afecta a quienes tienen sus defensas ba-
jas” (1993, p. 42).
A pergunta que se coloca então e que norteia a consecução
deste trabalho é: como a população negra se tornou vulnerável às
garras do sistema penal? Entendemos como horizonte profícuo para
compreendermos este processo situá-lo em sua historicidade. A par-
tir de proposições suscitadas pelo movimento descolonial que nos
adverte quanto ao perigo de importar, a título de crítica avançada,
elementos que em nossa realidade possam gerar efeitos contrários
aos desejados, consideramos instigante a análise formulada pelo so-
ciólogo Loïc Wacquant, no texto “Da Escravidão Ao Encarceramento
em Massa”, acerca das “‘instituições peculiares’ que agiram suces-
sivamente para denir, connar e controlar os afro-americanos na
história dos Estados Unidos”. Tal estudo, muito embora tenha sido
desenvolvido em realidade distinta, nos incita a pensar a realidade
brasileira e o modo pelo qual “a escravidão e o encarceramento em
massa estão genealogicamente ligados” (2006, p. 12).
No Brasil, desde meados do século XIX até a segunda meta-
de do século XX, prevaleceram diferentes concepções acerca da es-
8
O Programa Jovem negro vivo, da Anistia internacional aponta que em 2012,
56.000 pessoas foram assassinadas no Brasil. Destas, 30.000 são jovens entre 15 e 29
anos, e deste total, 77% são negros. A maioria dos homicídios é praticada por arma
de fogo, e menos de 8% dos casos chegam a ser julgados.
ESTUDOS EM HOMENAGEM AOS 10 ANOS DO GRUPO CASA VERDE • 247
cravização negro-africana. Primeiramente, houve aqueles que, como
Silvio Romero, Nina Rodrigues e Oliveira Vianna, premidos por con-
cepções explicitamente racistas, pretendiam conduzir os destinos da
Nação à modernidade; a partir de 1930, Gilberto Freyre iria defender
o caráter benigno da escravização e disseminar o mito da democracia
racial; já na década de 1960, sociólogos uspianos como Florestan Fer-
nandes, Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, iriam criticar a
democracia racial e cunhar a chamada “teoria do escravo-coisa”. Em
que pese as referidas tendências de interpretação estarem inseridas
em diferentes temporalidades, as mesmas mantiveram um traço em
comum: dispensar aos africanos e afro-descentes a condição de des-
providos das prerrogativas fundantes da agência humana.
Até a década de 1960, vigorou o discurso difundido a partir
de representações oriundas da obra “Casa Grande-Senzala” (1930),
a qual, dentre outros aspectos, discorre acerca do caráter ameno do
sistema escravocrata brasileiro. A este respeito, conforme aponta
Freyre, ao comparar a realidade autóctone com outras sociedades
escravistas, “a doçura na relações de senhores com escravos domésti-
cos” seria “talvez maior no Brasil do que em qualquer outra parte da
América” (1963, p. 393). Em seus devaneios, Freyre chega ao extremo
de armar que, em virtude do caráter paternalista das relações se-
nhor-escravizado, calcadas na “tolerância” e “amenidade”, os negros
africanos, ainda que na condição de cativos, fossem “talvez mais fe-
lizes no Brasil patriarcal do que, quando na África negra, oprimidos
por sobas e, sobretudo, maltratados nas próprias tribos: vítimas, por
vezes, de tirânicas opressões tribais sob o aspecto de ritos compresso-
res” (FREYRE, 1979, p. 12).
Sidney Chalhoub, em sua tese de doutorado “Visões da Li-
berdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte”,
aponta que a teoria da “coisicação do escravo”, formulada a partir
de 1960 pelos membros da Escola de São Paulo, teve mérito em “de-
nunciar e desmontar o mito da democracia racial no Brasil” (1989,
p.51) , a o apontar o car áter violen to da escrav idão. No entant o, as-
sentou na historiograa uma proposição igualmente perniciosa de
que a denição de “coisa” dada aos escravizados pelo direito positivo
se transformou igualmente em uma condição social, na medida em
que “os escravos se auto-representavam como seres incapazes de ação
autonômica”, ou seja, “seriam incapazes de produzir valores e normas
248 • CRIMINOLOGIA CRÍTICA E CRÍTICA CRIMINOLÓGICA
próprias que orientassem sua conduta social” (p. 45).
Não se pode negar certo aspecto bem intencionado, apon-
tado pelo brasilianista omas Skidmore, em encampar um projeto
de investigação das “realidades que se entendiam (normalmente por
meio da obra de Gilberto Freyre) por democracia racial brasileira
(1991, p. 10). Porém, não nos é cabível ignorar que do ponto de vista
epistemológico, o arcabouço teórico destes críticos se manteve rigo-
rosamente imerso em pressupostos concernentes à lógica da raciona-
lidade europeia-ocidental. Muito embora situados no campo da teo-
ria crítica marxista, o que certamente favoreceu o seu acolhimento e
retardou a percepção da necessidade de serem denunciados os seus
limites interpretativos, temos que “o marxismo, assim como “la teo-
ría crítica de la escuela de Francfurt, el posestructuralismo, el psicoaná-
lisis, etc., son modalidades de pensamiento crítico producidos desde la
posición epistémica del ‘outro’ dentro de la zona del ser” (2012, p. 97)9.
O marxismo, ao ser transplantado como instrumental analí-
tico por pensadores da zona do não-ser, acarretou um contundente
equívoco, qual seja, o de reduzir o entendimento do conceito de clas-
se à uma condição a-histórica. No tocante ao processo em que ocor-
re a transição das relações do trabalho escravo para o assalariado, a
inexistência de uma classe trabalhadora nos moldes da sociedade in-
dustrial europeia, induziu os pensadores uspianos a elaborarem uma
classicação dos negros escravizados como meros “gurantes mu-
dos”, atribuindo-lhes incapacidade de agência história. Isto eviden-
cia que, apesar do teor crítico do pensamento marxista se dedicar à
emancipação humana, acabou por colocar os atores sócio-históricos
situados na zona do não-ser naquilo que, nos termos de Boaventura
de Souza Santos, constituir-se-ia em uma “sala de espera da história”
(2004, p. 15).
Mais recentemente nos deparamos com um enfretamento a
essas correntes. Historiadores vinculados à perspectiva da chamada
“História Social”, dentre eles, Robert Slenes, Sidney Chalhoub, Sil-
via Hunoud Lara, Celia Marinho de Azevedo, demarcaram posições
9
Segundo o entendimento fanoniano, o racismo é uma hierarquização constituída a
partir da localização dos sujeitos acima ou abaixo de uma linha do humano. Aque-
les que se localizam acima da referida linha têm sua humanidade reconhecida por
não serem sujeitos racia lizados – zona do ser, enquanto aqueles que são inseridos
abaixo dela têm sua humanidade constantemente colocada em suspeita em virtude
da marcação racial dos seus corpos – zona do não ser (cf. FANON, 2008).
ESTUDOS EM HOMENAGEM AOS 10 ANOS DO GRUPO CASA VERDE • 249
acerca do papel efetivo exercido pelos homens e mulheres negros/
as nos processos de conquista da liberdade. Em contraposição às
correntes tradicionais, que buscaram ora representar a abolição da
escravidão como uma “empresa curta e pacíca, dirigida por elites
humanitárias, ora demonstrar que os escravizados, apesar de comu-
mente se rebelarem, estavam impossibilitados de conferir “um senti-
do político às suas ações, dadas as próprias condições objetivas de um
modo de produção que os reduziria irremediavelmente à alienação
ou à incapacidade de assumir por si sós uma consciência de classe”
(AZEVEDO, 1987, p. 175), esta nova vertente historiográca voltou-
-se ao cotidiano e às relações intersubjetivas nas quais os negros gu-
ravam e procurou elaborar uma história a partir da perspectiva dos
escravizados.
Célia Marinho de Azevedo aponta a tendência em se reco-
nhecer como resistência à escravização apenas as lutas explícitas, as
revoltas coletivas ocorridas a partir de meados do século XIX, confe-
rindo aos brancos abolicionistas os “louros da vitória e aos escravos,
cumprimentos parciais por sua capacidade de acompanhar o branco
redentor e lutar ao seu lado, sob sua direção” (1987, pp. 175-176).
As lutas implícitas, ocorridas no dia-a-dia, foram comumente consi-
deradas desenfreamentos criminosos, e, portanto, não foram objeto
de apreciação histórica. No entanto, ao analisar relatórios da década
de 1870, elaborados por chefes de polícia no que hoje é o interior
paulista, Azevedo constatou que a criminalidade crescente por parte
dos negros escravizados, que ao invés de fugirem, como de costume,
passaram a roubar e matar seus senhores e feitores, consistia em uma
forma de resistência que nos demonstra que o espaço da produção
estava “tornando-se palco privilegiado das revoltas individuais e co-
letivas dos negros escravizados” (1987, p. 181).
As exposições de Azevedo evidenciam a existência de uma
verdadeira “onda negra”, que gerou um “medo branco”. No entanto,
foi veiculado sistematicamente no cenário do pós-abolição a imagem
de uma Princesa Isabel redentora dos escravos, contribuindo para as
representaçõ es de que “nos sa históri a foi escrita sem de rramamen-
to de sangue” (CHAUÍ, 2001, p. 03). A consolidação desta imagem
acerca de Isabel permitiu a materialização no imaginário da socieda-
de à época, de que os negros não poderiam ser considerados agentes
sociais e políticos, pois foram meros expectadores de sua própria his-
250 • CRIMINOLOGIA CRÍTICA E CRÍTICA CRIMINOLÓGICA
tória, símbolos do atraso da espoliação escravista e lembranças de um
passado a ser superado. Deste modo, resta claro a pertinência da tese
VI “Sobre o Conceito de história” de Walter Benjamin, que ao diag-
nosticar os processos de manipulação do passado ao ser apropriado
convenientemente nos moldes dos interesses daqueles que têm tido a
prerrogativa de escrever a história, denegam agência aos grupos que
predominantemente se mantiveram em um “instante de perigo”. No
dizer de Benjamin, “articular o passado historicamente não signica
conhecê-lo tal como realmente foi. Signica apoderar-se de uma lem-
brança tal como ela lampeja num instante de perigo” (apud LÖWY,
2005, p. 65).
A manutenção da ordem escravocrata s e tornava insusten-
tável. A este respeito é possível dizer, que os negros estavam diante
do que Walter Benjamin denomina “instante de perigo”, tanto pela
possibilidade de suas ações alterarem o rumo da história, como pela
probabilidade de intervenção das classes dominantes em lhes invia-
bilizar o direito de terem sua própria história. Efetivamente esta situ-
ação perdurou na historiograa por mais de um século. No entanto,
como o passado não é algo morto, a intervenção de historiadores é
capaz de revirar e revigorar as forças daqueles que tiveram suas his-
tórias negadas.
Sidney Chalhoub aponta que a partir de 1860 uma enorme
quantidade de negros escravizados obteve de seus senhores autoriza-
ções para que vivessem “sobre si”, expressão utilizada à época para de-
signar aqueles que viviam longe dos domínios senhoriais, geralmente
em habitações populares (cortiços) nas cidades. Tal concessão, que
permitia aos escravizados a realização de jornadas extras de trabalho
com vistas a arrecadar dinheiro suciente para comprarem suas alfor-
rias, também pareceu, à primeira vista, vantajosa aos senhores, pois
não teriam gastos com a manutenção de suas “propriedades”. C ontu-
do, em longo prazo, acabou se convertendo em importante elemento
desagregador do regime escravocrata, pois um dos seus elementos
basilares, a “sujeição e dependência pessoal” do escravizado em re-
lação ao seu senhor, que dependia da proximidade espacial entre os
mesmos, deixou de existir (1996, p. 27).
Com o advento da República em 1889, houve um período de
intensa europeização do Brasil, no qual se deu o surgimento da cren-
ça de que “uma cidade pode ser apenas ‘administrada’, isto é, gerida
ESTUDOS EM HOMENAGEM AOS 10 ANOS DO GRUPO CASA VERDE • 251
de acordo com critérios unicamente técnicos ou cientícos” (CHA-
LHOUB, 1996, pp. 19-20). Era a Belle Époque brasileira: a ciência eu-
ropeia da época passou a ser vista como premissa organizadora das
sociedades civilizadas e foi paulatinamente sendo incorporada às po-
líticas públicas. Dentre as teorias elaboradas pelas ciências europeias,
seria a “teoria da evolução”, em suas diferentes vertentes interpreta-
tivas, difundidas a partir de 1859 com a publicação e divulgação de
A origem das espécies”, por Charles Darwin, que iria “constituir-se
como paradigma de época” (SCHWARCZ, 1995, p. 54).
Uma das apropriações da teoria formulada por Darwin diz
respeito ao chamado “darwinismo social” ou “teoria das raças”, que
passou a considerar a miscigenação de raças no Brasil uma degene-
ração social, anal, “se as raças constituiriam fenômenos nais, todo
cruzamento entre “tipos puros” diversos, deveria ser considerado um
erro (SCHWARCZ, 1995, p. 58). Diante dessas exposições, é interes-
sante perceber que nos primórdios da República brasileira, os debates
existentes à época do abolicionismo acerca da inserção dos negros na
sociedade por vir, foram praticamente esquecidos. No contexto desta
reexão, faz- se pertinente então, trazer à baila a seguinte indagação
de Célia Marinho de Azevedo:
Até que po nto a image m de uma mas sa iner te, des a-
gregada, inculta, sem grande importância histórica
naquele momento, na medida em que já teria saído
marginal da escravidão, não surgiu do âmago de for-
mulações de teor étnico-racista que justamente procu-
rariam com isso justicar a necessidade de imigração
europeia em substituição do negro? (1987, p. 23).
A vertente ideológica assumida pelos “homens de sciencia
da Belle Époque tornou-se, no início do p eríodo republicano, no bojo
do projeto de modernização da nação, um ideal de branqueamento,
que nos remete à transmutação do darwinismo social à sua “prática
avançada”: a eugenia (SCHWARCZ, 1995, p. 60). Nesta conjuntura, a
imigração europeia surgiu como forma de viabilizar o embranqueci-
mento populacional.
Se o imigrantismo foi o o condutor que deveria favorecer
a regeneração da sociedade brasileira em termos de raça, seria tam-
bém necessário implementar um conjunto de medidas visando a mo-
252 • CRIMINOLOGIA CRÍTICA E CRÍTICA CRIMINOLÓGICA
dernização dos espaços urbanos. Se o embargo à puricação da raça
era antes o negro, o inimigo imediato à modernização era agora os
cortiços, tradicionalmente habitados por negros. Tendo em vista que
os cortiços, além de constituírem-se como espaços que permitiram
a desestabilização do elemento espacial necessário à manutenção da
escravização, como já visto, serviram ainda, nas últimas décadas do
regime escravocrata, devido às relações de sociabilidade ali experen-
ciadas, como uma rede de proteção aos escravos que fugiam das fa-
zendas onde eram mantidos cativos. Deste modo a decisão política
de exterminá-los podia estar também “associada a uma tentativa de
desarticulação da memória recente dos movimentos sociais urbanos”
(CHALHOUB, 1996, p. 26).
Nicolau Sevcenko, analisando as transformações da capital
da República no início do século XX, assinala que a cidade do Rio
de Janeiro contava com uma população um pouco inferior a um mi-
lhão de habitantes, dos quais, a “maioria era de negros remanescentes
dos escravos, ex-escravos, libertos e seus descendentes”. Esse contin-
gente populacional se concentrava em antigos casarões, que haviam
sido divididos em diversos cubículos para serem alugados a famílias
inteiras, que ali residiam submetidas às mais precárias condições de
existência (1999, p. 20). Neste contexto histórico, deu-se o surgimen-
to da noção de que o pauperismo de um indivíduo implicaria neces-
sariamente em uma condição de malfeitor, como se a pobreza fosse
uma condicionante sem exceções para atuação à margem da lei. Era
a adoção do ideário das “classes perigosas”, que permitiu que as agên-
cias policiais da época operassem com base no princípio da suspeição
generalizada, que parte da “premissa de que todo cidadão é suspeito
de alguma coisa até prova em contrário e, é lógico, alguns cidadãos
são mais suspeitos que outros” (CHALHOUB, 1996, p. 23).
Com o m do regime escravocrata e da propriedade sobre a
mão de obra, a teoria da suspeição generalizada torna-se substituta
das formas de dominação inerentes ao cativeiro, na medida em que
permitiria o controle do ócio e dos costumes dos negros libertos que
supostamente ameaçava a ordem, a segurança e a moralidade públi-
ca. Desta feita, foram cunhados tipos penais como os constantes dos
capítulos XII e XIII do Código Penal da República (1890). Dentre o
rol das tipicações ali existentes, chamam a atenção o art. 391, que
considera crime “mendigar, tendo saude e aptidão para trabalhar”;
ESTUDOS EM HOMENAGEM AOS 10 ANOS DO GRUPO CASA VERDE • 253
o art. 399, que expõe que “deixar de exercitar prossão, ocio, ou
qualquer mister em que ganhe a vida, não p ossuindo meios de sub-
sistencia e domicilio certo em que habite” ensejará apenamento; o
art. 402, que veda a capoeira ao proibir que seja feito “nas ruas e pra-
ças publicas exercicios de agilidade e destreza corporal conhecidos
pela denominação capoeiragem”. No capítulo III, que trata dos crimes
contra a saúde pública, há ainda o art. 157, que aponta ser crime a
prática do espiritismo, da magia e seus sortilégios.
Do acima exposto, se apreende que o aparato legislativo re-
pressivo estatal buscava, além de organizar as relações de trabalho
demandadas pelas novas formas de organização social e econômica,
promover o controle das manifestações culturais do povo negro, “de-
sagregando as suas instituições e modos de vida e aplicando-lhes os
modelos de convívio jurídico e político do ocidente, o que, de acordo
Antônio Manuel Hespanha, “não tem a ver apenas com as diferenças
culturais originais, mas também com a conformação da mentalida-
de ocidental e nativa e por séculos de experiência colonial europeia
(2009, p. 296). Mas somente este controle de “corpos e corporalida-
des” não bastava às agências políticas para adequar a sociedade au-
tóctone aos pressupostos da modernidade. Os velhos casarões con-
vertidos em cortiços, nos quais habitavam a população negra do Rio
de Janeiro constituíam-se enquanto verdadeiros empecilhos à cons-
trução idealizada de uma cidade moderna.
As classes dominantes empreenderam uma verdadeira cru-
zada contra os cortiços e seus moradores. Se em um primeiro instante
suas ações se pautaram pela necessidade de desarticular as territo-
rialidades de memórias e lutas dos afrodescendentes pela liberdade,
após o “golpe republicano de 1889”, esta empreitada justicar-se-ia
como uma das medidas de defesa da saúde pública, uma vez que, na
concepção dos arautos do projeto cienticista que conduziria a nação
à modernidade nos moldes civilizatórios da ocidentalidade europeia,
os cortiços eram considerados os lugares por excelência de prolifera-
ção de miasmas, de tal modo que as “classes perigosas”, conforme res-
salta Sidney Chalhoub, não representavam ameaça apenas pelos atos
que pudessem cometer ou praticar: agora, ofereciam também perigo
de contágio, no sentido literal do termo, porque “suas habitações co-
letivas seriam focos de irradiação de epidemias” (1996, p. 29).
Com o intuito de não perdermos o foco da proposição cen-
254 • CRIMINOLOGIA CRÍTICA E CRÍTICA CRIMINOLÓGICA
tral deste trabalho, consideramos necessário ressaltar que os apon-
tamentos anteriormente expostos, tratam de demonstrar a maneira
pela qual o Estado buscou controlar a população negra não apenas
por meio de seu aparato legislativo repressivo, mas que suas ações in-
seriram-se também no âmbito da realpolitik, esta entendida como um
método pragmático que, supostamente desvinculado de pressupostos
ideológicos, buscou alcançar os objetivos estatais sem se preocupar
com os meios empregados para atingi-los. Ao recorremos ao conceito
de realpolitik, o que temos em mente é evidenciar a maneira mediante
a qual o Estado, amparado pela suposta neutralidade das ciências,
buscou conferir legitimidade às suas ações coercitivas, que, premidas
por um vetor discriminatório ostensivo, voltaram-se prioritariamen-
te à população afrodescendente, de modo extensivo – atingindo não
somente os indivíduos pertencentes a este grupo social, mas tudo
aquilo que direta ou indiretamente guardasse alguma relação com sua
existência, práticas e expressões –, como se estas fossem desprovidas
de intencionalidade ideológica, o que congura uma “misticação
ideológica, que é ainda mais ardilosa do que os processos denuncia-
dos como “ideológicos por excelência” (Cf. ZIZEK, 1999, pp. 09-10).
As frentes de ação das políticas de governo abrangiam os
mais variados aspectos da realidade brasileira, o que se pode infe-
rir nas medidas higienistas de combate às diferentes epidemias que
grassavam nos primeiros anos da República. Embora as mesmas se
autorepresentassem como uma necessidade geral ao trato dos “a-
gelos humanos”, apresentavam certa seletividade, se dirigiam àquelas
que afetavam majoritariamente a população branca. Doenças como a
tuberculose, que atacavam indistintamente brancos e negros e que os
próprios médicos da época apontaram estar associada à má nutrição
e às precárias condições de vida e trabalho da população, tiveram seu
combate preterido em face de enfermidades como a febre amarela,
que tinha como seus principais destinatários a população de imigran-
tes (CHALHOUB, 1996). Sidney Chalhoub, analisando esta seletivi-
dade, menciona Rui Barbosa, que assim se referia à febre amarela:
É um mal, de que só a raça negra logra imunidade,
raro desmentida apenas no curso das mais violentas
epidemias, e em cujo obituário, nos centros onde
avultava a imigração europeia, a contribuição das
ESTUDOS EM HOMENAGEM AOS 10 ANOS DO GRUPO CASA VERDE • 255
colônias estrangeiras subia a 92 por cento sobre o
total de mortos. Conservadora do elemento africano,
exterminadora do elemento europeu, a praga amarela,
negreira e xenófoba, atacava a existência da nação em
sua medula, na seiva regeneratriz do bom sangue
africano, com que a corrente imigratória nos vem
depurar as veias da mestiçagem primitiva, e nos
dava, aos olhos do mundo civilizado, os ares de
um matadouro da raça branca (BARBOSA apud
CHALHOUB, 1996, p. 57).
Era necessário extirpar a imagem consolidada a respeito da
capital da República, como “túmulo de estrangeiro”, anal, para cami-
nhar rumo à civilidade era necessário “depurar as veias da mestiça-
gem primitiva” mediante a promoção da imigração de europeus. Do
excerto acima elencado, resta demonstrado com clareza que:
[...] ao combater a febre amarela e negligenciar doen-
ças que agelavam a população negra, os doutores na
realidade, procuravam mudar o ambiente com o in-
tuito de auxiliar a natureza. E o trabalho de natureza,
coadjuvada pela imigração e pela miscigenação, era
a eliminação paulatina da herança africana – isto é,
a herança de “raça inferior” – presente na sociedade
brasileira (CHALHOUB, 1996, p. 95).
Desta forma, as políticas públicas assumiram uma pretensa
forma “‘cientíca’ – isto é, ‘neutra, supostamente acima dos interesses
particulares e dos conitos sociais em geral – de gestão dos proble-
mas da cidade e das diferenças sociais nela existentes” (CHALHOUB,
1996, p. 35). É importante salientar que a ocorrência destes aspectos,
na capital da nação, foi modelar para criar representações e uma cul-
tura política que de certo modo se disseminou em diferentes âmbitos
regionais, constituindo-se como uma espécie de mentalidade que se
impregnou na consciência histórica da sociedade brasileira.
Os elementos apresentados até aqui explicitam a recorrência
com que a “raça” serviu como parâmetro orientador do modus ope-
randi do establishment. Entretanto, tal postura governamental não se
restringiu ao período histórico da Primeira República, sendo ainda
256 • CRIMINOLOGIA CRÍTICA E CRÍTICA CRIMINOLÓGICA
encontrada durante a Era Vargas, conforme se depreende da expo-
sição contida no art. 138, da Constituição Federal de 1934, que esta-
belece ser incumbência da União, Estados e Municípios “estimular a
educação eugênica”. Tal disposição contida na Lei Maior nos sugere
que as ideias de Francis Galton de que o “bom desenvolvimento de
uma nação seria resultado, quase imediato, de sua conformação ra-
cial pura” ainda encontravam guarida, apesar da conotação positiva
do Brasil, como um país racial e culturalmente miscigenado, ter sido
propalada a partir da obra de Gilberto Freyre, Casa Grande & Senza-
la, desde de 1930 (SCHWARCZ, 1995, p. 62).
Se a eugenia vigente durante o chamado “Estado Novo” ex-
plicita a não adoção neste período da tese de uma democracia racial,
cabe-nos buscar entender quando e como a democracia racial se tor-
nou um mito fundador da sociedade nacional e uma ideologia não
ocial do Estado, o que será feito a seguir.
Ao longo deste trabalho procurou-se assinalar que a seletivi-
dade do sistema penal brasileiro e a utilização da raça como critério
criminalizante não se deu de maneira fortuita, mas foram ensejadas
por séculos de políticas ociais que buscaram por meio de uma sus-
peição generalizada denir, controlar e connar a população negra.
A plataforma eugênica brasileira vigorou durante a Primeira
República e a Era Vargas e considerava a população mestiça como um
empecilho vergonhoso a ser superado mediante a tese do embran-
quecimento, para que o Brasil se alçasse para o rol das nações moder-
nas. João Batista L acerda, médico e antropólogo diretor do Museu
Nacional do Rio de Janeiro, no I Congresso Internacional das Raças,
ocorrido em julho de 1911, apontava que “na entrada do novo século,
os mestiços terão desaparecido do Brasil, fato que coincidirá com a
extinção paralela da raça negra entre nós” (apud SCHWARCZ, 2000:
176). Já em 1929, o também médico e antropólogo, Roquete Pinto,
exporia no I Congresso Brasileiro de Eugenia a tendência do Brasil
em se tornar um país cada vez mais branco, “em 2012 teríamos uma
população composta de 80% de brancos e 20% de mestiços, nenhum
negro e nenhum índio” (idem, p. 77). Contrariando as teses anterior-
mente expostas, o sonho eugenista de uma civilização branca nunca
se concretizou.
Não constituí exagero discorrer sobre a inuência de Gilber-
to Freyre na construção de um teorema que se sobrepôs àqueles de
ESTUDOS EM HOMENAGEM AOS 10 ANOS DO GRUPO CASA VERDE • 257
caráter eugenista que predominaram no Brasil até então. Se “os pro-
ponentes do branqueamento tinham buscado europeizar o Brasil e
torná-lo branco; Freyre, em contraste, aceitou que o Brasil não era
nem branco nem europeu, e que nunca o seria” (ANDREWS, 1997:
98). Para entendermos a mudança da conotação conferida à miscige-
nação proporcionada pela análise de Freyre, temos de realizar uma
digressão biográca para buscarmos entender sua formação. Entre
1910-1920, Freyre foi para os Estados Unidos da América estudar
na Universidade de Baylor, Texas. Lá, pôde observar de perto o f un-
cionamento do regime segregacionista do Jim Crow, tendo inclusive
vivenciado um episódio de linchamento durante uma viagem pelos
estados sulistas. Certamente o que Freyre assistiu nos EUA o impeliu
a elaborar uma interpretação do Brasil que favorecesse um tratamen-
to diametralmente oposto ao conferido a questão até então. A opção
assumida pelo mesmo, diversamente do que vinha sendo propugna-
do em termos de intolerância à integração do negro à sociedade se
caracterizou fundamentalmente por conceber uma teoria da misci-
genação na qual o caráter mestiço da população deixou de ter um
sentido desabonador e passou a ser considerada uma peculiaridade à
construção de uma identidade nacional diversa das até então trans-
plantadas do modelo europeu.
A tese de Freyre não encontrou acolhimento imediato, posto
que no momento de sua formulação os interesses do Estado se con-
catenavam com o projeto nazi-facista em vigor na Europa. Andreas
Hoauer aponta que “foi apenas depois da segunda guerra mundial,
e principalmente na década de 1950, que, no Brasil, o discurso inte-
lectual – hegemônico – do branqueamento sofreu questionamentos
sérios”. O holocausto nazista se mostrou como um verdadeiro ponto
de inexão, na medida em que após as atrocidades cometidas em prol
do arianismo, que levou a cabo uma política eugênica, a UNESCO,
agência internacional recém criada, “se mostrou profundamente pre-
ocupada com o combate a políticas e ideologias que sustentavam a
discriminação de grupos raciais (étnicos, religiosos)” (2006, pp. 261,
262).
Neste contexto, a situação se tornou favorável à disseminação
da tese da democracia racial postulada por Freyre. Tal proposição,
num primeiro instante, pareceu responder aos mais diversos anseios,
por um lado o Estado se livraria do estigma de ser o condutor de
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uma política de cunho racista, bem como segmentos sociais como
o próprio movimento negro viu nesta teorização algo que satisfaria
seus anseios por inserção social igualitária. Contudo, a tese de Freyre,
ao contrário da expectativa dos movimentos sociais, conduziu a so-
ciedade brasileira a uma experiência perniciosa porque, ao contrário
dos regimes segregacionistas implantados nos EUA e na África do
Sul, na qual o inimigo na luta pela igualdade material estava posto (o
Estado), a democracia racial, segundo Kabengele Munanga, destruiu
“a consciência dos cidadãos brasileiros sobre a questão racial”, con-
substanciando-se, desta forma, como um “crime perfeito”10 .
A teoria da democracia racial serviu, conforme visto, como
resposta a uma determinação exógena, mediante a qual, o Estado en-
campou em termos de discurso político a tese da igualdade de direitos
dos indivíduos – genérica e meramente formal -, algo que na prática o
eximiu de assumir políticas públicas efetivas de combate ao racismo,
porém, este permaneceu presente, sendo apenas deslocado do espaço
público para as esferas da vida privada. Cabe perfeitamente, nesta li-
nha de reexão retomarmos o produto resultante da ritualística cum-
prida pelas agências de criminalização do sistema penal, qual seja,
a sentença penal. O jurista italiano Piero Calamendrei, aponta que:
[...] representa-se escolarmente a sentença como o
produto de um puro jogo lógico, friamente realizado
com base em conceitos abstratos, ligados por inexo-
rável concatenação de premissas e consequências;
mas, na realidade, no tabuleiro do juiz, as peças são
homens vivos, que irradiam invisíveis forças magnéti-
cas que encontram ressonâncias ou repulsões ilógicas,
mas humanas, nos sentimentos do judicante. Como
se pode considerar el uma fundamentação que não
reproduza os meandros subterrâneos dessas correntes
sentimentais, a cuja inuência mágica nenhum juiz,
mesmo o mais severo, consegue escapar? (1995, pp.
175-176).
Constatada a persistência do racismo nas malhas do tecido
10
Disponível em: .br/index.php/pt/noticias/185-o-racis-
mo-nao-acaba-so-com-discurso- garante-kabengele-munanga>. Acesso em:
04/10/2017.
ESTUDOS EM HOMENAGEM AOS 10 ANOS DO GRUPO CASA VERDE • 259
social, torna-se incontornável a necessidade de problematizarmos as
maneiras pelas quais este se encontra arraigado na mentalidade dos
juízes que, como seres sociais, não se desvencilham, como que por
alguma espécie de “mágica”, dos valores e ideologias adquiridos his-
toricamente como legado cultural.
Se nos é cabível pensar/defender/propor expectativa diversa
de tudo que parece pretender se perpetuar, inspiramo-nos nas teses
do lósofo Walter Benjamin, que ao enunciar sua contundente crítica
ao legado da modernidade, nos instiga a rompermos com o que nos
faz parecer pertencermos a um tempo marcado pela imutabilidade
do “agora”. Com a devida cautela, “viver o tempo-de-agora não sig-
nica apenas rememorar o passado, mas experimentá-lo enquanto
presente, entendendo que as lutas emancipatórias de ontem perma-
necem vigentes, já que todas foram irrealizadas, quer dizer, vencidas
(MATOS, 2014, p. 79), de modo que devemos depositar expectativa
na possibilidade de nos apropriarmos de maneira diferente do passa-
do e reinventarmos o futuro.
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