Trabalho Infantojuvenil Ilícito: Crimes em Espécie e Estratégias de Repressão em Juízo
Autor | Eliana dos Santos Alves Nogueira, Gabriela Marcassa Thomaz de Aquino, João Batista Martins César |
Páginas | 105-121 |
TRABALHO INFANTOJUVENIL ILÍCITO: CRIMES EM ESPÉCIE E ESTRATÉGIAS DE REPRESSÃO EM JUÍZO | 105
TRABALHO INFANTOJUVENIL ILÍCITO: CRIMES EM
ESPÉCIE E ESTRATÉGIAS DE REPRESSÃO EM JUÍZO(1)
Eliana dos Santos Alves Nogueira(2)
Gab riela Marcassa Thomaz de Aquino(3)
João Batista Martins César(4)
APONTAMENTOS INICIAIS
Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), disponibilizados no
relatório Global Estimates of Child Labour: results and trends 2012-2016, existem, no mundo,
cerca de 152 milhões de crianças e adolescentes, entre 5 e 17 anos, trabalhando em situação
irregular, sendo que 73 milhões estão inseridas em condições de piores formas de trabalho
infantil. Estima-se ainda que 5,3% dessas crianças e adolescentes estão trabalhando no conti-
nente americano.(5)
Quanto aos números de trabalho infantil no Brasil, a Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (PNAD), em 2013, estimou que havia 3,2 milhões de crianças e adolescentes traba-
lhando, dos quais meio milhão encontrava-se na faixa de 5 a 13 anos e 2,6 milhões na faixa dos
14 aos 17 anos.(6) Já quando se analisam os dados da PNAD de 2014(7), houve um signifi cativo
(1) O presente artigo constitui-se em uma versão atualizada do artigo de mesmo nome publicado na Revista
Jurisdição Trabalhista e Criminalidade: conteúdos penais e afi ns para as rotinas do juiz do trabalho.
(2) Juíza do Trabalho Titular da 2ª Vara do Trabalho de Franca. Coordenadora do Juizado Especial da Infância e
Adolescência de Franca/SP — JEIA. Membro do Fórum Municipal para Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção
do Adolescente de Franca/SP. Membro do Comitê de Erradicação do Trabalho Infantil do TRT15. Gestora Regional
do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil e de Estímulo à Aprendizagem da Justiça do Trabalho (TST-CSJT).
Bacharel e Mestre em Direito do Trabalho pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp — Franca/SP.
Doutora em Direito do Trabalho pela Università La Sapienza — Roma — Italia.
(3) Mestranda em Direito do Trabalho e Seguridade Social pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
(FDUSP). Bacharel em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista
(UNESP). Advogada.
(4) Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região — Campinas, presidente do Comitê de
Erradicação do Trabalho Infantil do TRT-15 e gestor nacional do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil e
de Estímulo à Aprendizagem da Justiça do Trabalho (TST-CSJT), mestre em Direito pela Universidade Metodista de
Piracicaba, especialista pelo Instituto Europeu de Relações Industriais (Sevilha-Espanha) e professor na Faculdade
de Direito de Sorocaba.
(5) OIT. Global estimates of child labour: results and trends 2012-2016. p. 5. Disponível em: .ilo.org/
wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/documents/publication/wcms_575499.pdf>. Acesso em: ago. 2019.
(6) FNPETI, Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil. Dados do PNAD de 2013
revelam tímida redução do trabalho infantil. Disponível em: .fnpeti.org.br/noticia/1416-dados-da-
-pnad-de-2013-revelam-timida-reducao-do-trabalho-infantil.html>. Acesso em: maio 2019.
(7) IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: síntese de indicadores de 2014. Disponível em:
biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv94935.pdf>. Acesso em: maio 2019, p. 57-58.
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aumento e foram contabilizados 3,3 milhões de brasileiros de 5 a 17 anos trabalhando, dos
quais 554 mil eram crianças de 5 a 13 anos (idade em que o trabalho é proibido), um aumen-
to de 9,3% em relação aos dados do ano anterior nessa mesma faixa etária, sendo o primeiro
aumento registrado no país desde 2005. A PNAD de 2015(8) concluiu que havia 2,7 milhões de
crianças e adolescentes de 5 a 17 anos trabalhando, uma redução de 19,8% em relação a 2014.
No entanto, quando analisada a faixa etária de 5 a 9 anos (idade em que há proibição total do
trabalho), havia 79 mil casos em 2015, aumento de 12,3% em relação a 2014, quando havia 70
mil crianças trabalhando, o que demonstra uma situação preocupante.
É preciso fazer uma ressalva quanto aos dados de trabalho infantil relativos a 2016. A
PNAD Contínua de 2016 apresentou dados de 1,8 milhão de crianças e adolescentes de 5 a 17
anos trabalhando, o que indicava uma grande redução comparada aos anos anteriores da pes-
quisa.(9) Ocorre, no entanto, que houve uma mudança na metodologia da análise que excluiu,
desses dados, as crianças e adolescentes que trabalhavam para o próprio consumo.
Em nota sobre essa mudança de metodologia, o Fórum Nacional de Prevenção e Erradi-
cação do Trabalho Infantil (FNPETI) afi rmou que a exclusão dos dados ofi ciais das crianças
e adolescentes que laboram nessa situação é uma violência por parte do Estado brasileiro.(10)
Segundo o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI),
716 mil crianças e adolescentes trabalham para o próprio consumo, quando há maior incidência
desse tipo de trabalho entre as pessoas com idade inferior a 13 anos. Assim, segundo o FNPETI,
ainda haveria no Brasil 2,5 milhões de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos trabalhando.
Outros dados importantes de serem mencionados são os relativos aos acidentes de tra-
balho. Segundo dados do Observatório da Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, que
tem como base os repositórios públicos e ofi ciais que integram o Sistema Estatístico Nacional,
ocorreram, entre 2012 e 2018, 17,2 mil acidentes de trabalho envolvendo crianças e adoles-
centes, resultando em 42 óbitos, sendo que o Estado de São Paulo era o que apresentava o
maior número de ocorrências com 7.337 notifi cações.(11)
No direito brasileiro, a Constituição da República de 1988 representa um marco na prote-
ção dos cidadãos com idade inferior a 18 anos, vez que, por meio de emenda popular subscrita
por um milhão e meio de cidadãos, que foi meramente referendada pela Assembleia Consti-
tuinte, adotou-se, em seu art. 227, a doutrina internacional da proteção integral das crianças
e adolescentes.(12)/(13)
Somente então, crianças e adolescentes passaram a ser considerados sujeitos de direito.
Antes disso, adotava-se a doutrina do Direito Penal do Menor, posteriormente substituída
pela Doutrina da Situação Irregular, prevista no Código de Menores de 1979 (Lei n. 6.697, de
(8) IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: síntese de indicadores de 2015. Disponível em:
biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv98887.pdf>. Acesso em: maio 2019, p. 62.
(9) IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: 2016. Disponível em:
gov.br/visualizacao/livros/liv101388_informativo.pdf>. Acesso em: maio 2019, p.2.
(10) FNPETI, Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil. Nota explicativa sobre os dados de
trabalho infantil da PNAD Contínua 2016. Disponível em: g.br/noticia/1840-nota-explicati-
va-sobre-os-dados-de-trabalho-infantil-da-pnad-continua-2016.html>. Acesso em: maio 2019.
(11) SMARTLAB. Acidentes de trabalho com crianças e adolescentes. Disponível em: g/traba-
lhoinfantil/localidade/0?dimensao=acidentesTrabalho>. Acesso em: ago. 2019.
(12) FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. As formas de aprendizagem no Brasil: questões emergentes. Disponível
em: .
Acesso em: mar. 2016.
(13) A Doutrina da Proteção Integral teve como embrião a Declaração de Genebra de 1924, quando ainda prevalecia
no Brasil a doutrina do Direito Penal. A Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas (1948)
igualmente proclamou que as crianças e adolescentes devem ter cuidados e assistências especiais (artigo XXV).
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10.10.1979). A primeira, voltava-se, basicamente, ao caráter punitivo, ou seja, esses seres eram
vistos apenas para efeitos punitivos, sofriam medidas coercitivas quando se envolviam em ati-
vidades ilícitas. A segunda, preocupava-se com a situação irregular de crianças e adolescentes,
somente a estes eram garantidas assistência e proteção.(14)
O viés do Código de Menores foi, durante muito tempo, a tônica que regia o olhar da
sociedade para as crianças e adolescentes.
Por essa razão, a Constituição Federal de 1988 representa um avanço signifi cativo dentro
do nosso panorama legal contemporâneo, ao prever, em seu art. 227, que crianças e adoles-
centes merecem proteção integral e prioritária, cuja responsabilidade pertence à família, à
sociedade e ao Estado.
Assim, crianças e adolescentes passaram a ter garantidos os direitos fundamentais básicos,
e tal não se deu apenas quanto ao estabelecimento de princípios, mas de direitos constitu-
cionalmente garantidos e, para os quais, exige-se a adoção de políticas públicas que possam
cumprir essa fi nalidade. Exige-se que os órgãos responsáveis pela realização de tais direitos
atuem de modo a tornar efetiva a proteção constitucional.
É a partir desta constatação que será abordado o tema proposto, ou seja: analisar a ilicitu-
de do trabalho infantojuvenil, identifi car alguns crimes em espécie e, sobretudo, quais são as
estratégias que podem ser adotadas em juízo para buscar a efetiva repressão de tais iniciativas.
1. PANORAMA LEGAL DE PROTEÇÃO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE NO MUNDO
DO TRABALHO
Do ponto de vista legislativo, o Brasil conta com uma ampla gama de direitos e garantias
para crianças e adolescentes no que diz respeito ao direito ao trabalho.
Os arts. 7º, inciso XXXIII, 227, § 3º, incisos I e II, Constituição Federal, e os arts. 403 e
da idade mínima de 16 anos, salvo a aprendizagem a partir dos 14 anos, sempre se observando
os direitos trabalhistas e previdenciários.
Oris de Oliveira, um dos maiores estudiosos do tema, ao concluir a obra de maior impor-
tância sobre trabalho e profi ssionalização de adolescente, já publicada entre nós, afi rma que:
Não se pode abordar o trabalho infantojuvenil fora de uma perspectiva de direitos
humanos em conformidade com a Declaração dos Direitos da Criança que afi rma
que Partes reconhecem o direito da criança de estar protegida contra a exploração
econômica e contra o desempenho de qualquer trabalho que possa ser perigoso ou
interferir em sua educação, ou que seja nocivo para sua saúde e para seu desenvol-
vimento físico, mental, espiritual, moral ou social. Não há, pois, contradição em
afi rmar que há um direito ao trabalho, um dever de trabalhar e concomitantemente
um direito de não trabalhar. O trabalho é direito, nunca, porém, antes da idade
mínima, fi xada pelo próprio direito exatamente para preservação de outros valores:
— desenvolvimento físico, psíquico, moral e social, a pré-escolaridade, a escola-
ridade, o folguedo, o brincar, enfi m, o valor ‘SER CRIANÇA’ e, oportunamente,
preparar-se para trabalho futuro mediante prévia formação profi ssional.(15)
(14) BANDEIRA, Marcos. Do direito penal do menor à doutrina da proteção integral. Disponível em:
cosbandeirablog.blogspot.com.br/2010/09/do-direito-penal-do-menor-doutrina-da.html>. Acesso em: mar. 2016.
(15) OLIVEIRA, Oris de. Trabalho e profi ssionalização de adolescente. São Paulo: LTr, 2009. p. 318.
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Uma das consequências da teoria da proteção integral é exatamente o reconhecimento de
que o trabalho de adolescentes, em idade adequada, somente pode ocorrer de forma protegida,
ou seja, respeitando-se seus direitos trabalhistas e previdenciários.
É sempre bom ressaltar que a proibição do trabalho infantil tem matiz internacional,
do Conselho das Nações, que prioriza a educação e o desenvolvimento físico e mental(16) das
crianças e adolescentes, com o propósito de bem preparar os futuros trabalhadores para o
mundo globalizado, com foco na alta produtividade.
Nessa senda, inexiste outra hipótese legal para o trabalho dos adolescentes a não ser o
trabalho protegido. Portanto, não se pode falar em trabalho eventual ou autônomo quando se
trata de crianças e adolescentes. O empregador sempre deverá contratá-los com a observância
dos direitos trabalhistas e previdenciários, bem como conceder o tempo necessário para fre-
quentar a escola (art. 427, CLT).
Dessa forma, o não preenchimento de todos os requisitos da autêntica relação de em-
prego (habitualidade, onerosidade, pessoalidade e subordinação) não pode justifi car a não
aplicação do princípio da proteção integral, pois, constatada a irregular utilização de mão de
obra de crianças ou adolescentes, incidirão as normas que lhe atribuem o trabalho protegido,
ou seja, garantia dos direitos trabalhistas e previdenciários.
Nesse sentido, a jurisprudência trabalhista vem se fi xando, conforme percebe-se da se-
guinte ementa:
TRABALHO INFANTIL. REPRESSÃO. INDIFERENÇA DA NATUREZA DA RELAÇÃO E DA HABITUA-
LIDADE DO SERVIÇO. A proibição do trabalho infantil integra a política mundial de proteção da infância e
da juventude, em que se dá prioridade à educação e ao desenvolvimento físico e mental, de molde a formar
futuros trabalhadores sadios e bem preparados. Mesmo quando se trate de aprendiz (com mais de catorze
anos) ou de trabalhador com mais de dezesseis anos, a quem a lei permite o trabalho, o empregador deve
conceder tempo necessário para frequência às aulas. É irrelevante que não se confi gurem os requisitos de
autêntica relação de emprego, como habitualidade, onerosidade, pessoalidade e subordinação; basta que se
constate a utilização indevida da mão-de-obra de menores para que incidam os instrumentos repressivos
previstos em lei. Recurso a que se nega provimento para manter a aplicação de penalidade administrativa
pelo uso de mão-de-obra infantil. TRT-PR-80056-2005-659-09-40-0-ACO-29175-2006, Pub. 10.10.2006,
Rel. Marlene T. Fuverki Suguimatsu.
PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO INTEGRAL. ADOLESCENTE APRENDIZ. CONDIÇÃO PECULIAR DE
PESSOA EM DESENVOLVIMENTO. RESTRIÇÕES AO DIREITO POTESTATIVO DE RESCINDIR O
CONTRATO. 1. Tratando-se de adolescente aprendiz, devemos ter em mente que a CR/88 adotou o princí-
pio da proteção integral (art. 227), que concebe crianças e adolescentes como cidadãos plenos, sujeitos de
direitos e obrigações, a quem o Estado, a família e a sociedade devem atender prioritariamente. 2. O art. 69 da
Lei n. 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), assegura ao adolescente o direito à profi ssionalização
e à proteção no trabalho, desde que respeitada a sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento físico,
psicológico e moral e a capacitação profi ssional adequada ao mercado de trabalho. 3. O direito potestativo de
dispensar o empregado sem justa causa não pode se sobrepor às regras de proteção às crianças e adolescen-
tes. Recurso provido para condenar a reclamada ao pagamento da indenização prevista no art. 479 da CLT.
PROCESSO N. 0011039-68.2014.5.15.0031. 6ª Turma, Pub. 18.1.2016, Rel. João Batista Martins César.”
Frise-se, a proteção constitucional e infraconstitucional abrange todo tipo de trabalho do
adolescente, que somente pode trabalhar protegido, com a anotação do contrato de trabalho
em sua Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), seja por meio do contrato de apren-
dizagem, a partir dos 14 anos de idade, ou como empregado regular, a partir dos 16 anos de
idade, excetuando-se as piores formas de trabalho infantil (Lista TIP – Decreto 6481/2008)
para as quais apenas será permitido o trabalho após os 18 anos de idade.
(16) CAPELATTO, Ivan. Danos à saúde física e mental: prejuízo irrecuperável. Revista do Tribunal Superior do Tra-
balho, São Paulo: Magister, v. 81, n. 1, p. 45, jan./mar. 2015.
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A aprendizagem é contrato de trabalho cuja fi nalidade é a educação profi ssional e visa à
inserção adequada e de modo protegido do adolescente no mercado de trabalho. O legislador
brasileiro, a fi m de garantir o acesso dos adolescentes aos contratos de aprendizagem, exige
que os estabelecimentos de qualquer natureza contratem aprendizes na proporção entre 5% e
15% dos trabalhadores existentes em cada estabelecimento cujas funções demandem forma-
ção profi ssional. A exigência de qualifi cação profi ssional pode ser aferida por meio do CBO
(Código Brasileiro de Ocupações). Uma vez escolhido o adolescente que ocupará a vaga dispo-
nibilizada, a empresa deve, antes de fi rmar o contrato de trabalho com o adolescente, procurar
um dos entes de aprendizagem do chamado Sistema S, do qual fazem parte: Serviço Nacional
de Aprendizagem Industrial (Senai); Serviço Nacional de Aprendizagem do Comércio (Se-
nac); Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar); Serviço Nacional de Aprendizagem
do Cooperativismo (Sescoop); e Serviço Nacional de Aprendizagem nos Transportes (Senat).
Além destes, outros entes podem dedicar-se a fornecer a aprendizagem, tais quais o Centro de
Integração Empresa Escola (CIEE).
Para que o contrato de aprendizagem seja válido, o adolescente deve estar matriculado
em programa de aprendizagem, ser contratado pela empresa com a devida anotação em CTPS,
bem como matriculado no sistema de ensino regular até a conclusão do Ensino Médio, que
corresponde à escolarização mínima obrigatória no Brasil (art. 208, I da Constituição Federal).
O trabalho do adolescente desenvolve-se em duas etapas concomitantes: ele recebe o conheci-
mento teórico a respeito da profi ssão que vai desenvolver dentro do sistema de aprendizagem
e, ao mesmo tempo, atua no âmbito da empresa enriquecendo seu conhecimento teórico com
a prática laboral. Toda empresa deve contar com um tutor, que é devidamente treinado pelo
ente de aprendizagem e que faz o elo entre este e a empresa. Além disso, a família é chama-
da a acompanhar o processo de aprendizagem do adolescente, e, sempre que necessário, é
orientada à necessária intervenção a fi m de adequação da conduta do adolescente para o meio
profi ssional.
É importante ressaltar que o contrato de aprendizagem tem como foco a aprendizagem e
não o trabalho em si. O adolescente não pode ser contratado pela empresa para substituir um
empregado. É exatamente por isso que a legislação prevê para o adolescente a remuneração de
suas horas (de estudo e de trabalho) apenas à razão equivalente ao salário mínimo hora traba-
lhada e reduz o depósito de FGTS para apenas 2% sobre o total da remuneração. Além disso, a
aprendizagem pode ser realizada dentro da faixa etária de 14 a 24 anos e o pacto não pode du-
rar mais do que dois anos, caracterizado como contrato por prazo determinado. A pactuação
apenas pode exceder o período previsto se o aprendiz for pessoa com defi ciência, para o qual
não se aplica o limite de idade máximo acima indicado.
A proteção legal destinada às crianças e adolescentes no Brasil também evoluiu para
enumerar em uma lista detalhada quais são as piores formas de trabalho infantil, proibindo
todas elas àqueles que possuam idade inferior a 18 (dezoito) anos de idade. A Lista TIP está
anexa ao Decreto n. 6.481/2008 e elenca 89 atividades prejudiciais à saúde e segurança, além
de 04 atividades prejudiciais à moralidade, que são proibidas para quem não completou a
idade indicada.
Releva pontuar a questão que envolve a participação de crianças e adolescentes em
apresentações artísticas(17). Neste caso, em razão da excepcionalidade, a lei determina que o
contratante obtenha, judicialmente, autorização para a participação da criança ou adolescen-
te em referida apresentação ou manifestação artística, entendidas como eventos únicos, não
(17) Exceção prevista no art. 2, item 1 da Convenção n. 138 da OIT.
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contínuos e cuja autorização deve ser obtida para cada evento em separado. Não há permissão
legal para contratação a longo prazo de crianças e adolescentes para trabalharem em nenhuma
atividade, nem mesmo na artística. A autorização a ser obtida deve ser clausulada, ou seja,
além de específi ca para determinada atividade, deve indicar de modo pormenorizado quais as
atividades a criança ou adolescente realizará, deve ser apresentado o conteúdo do programa e
o roteiro da atividade, indicando-se o tempo destinado à atividade, que não pode prejudicar
o acesso à escola ou pretender manter a criança ou o adolescente confi nado em estúdios ou
locais semelhantes por longos períodos. Além disso, deve prever a presença de um dos respon-
sáveis pela criança ou adolescente no local da atividade e determinar abertura de caderneta de
poupança para depósito do valor auferido, que poderá ser levantado pela criança ou adolescen-
te apenas após completar a idade de 18 (dezoito) anos ou, antes disso, se provada necessidade
de suprir as necessidades do mesmo, com a devida autorização judicial.
Ressalte-se que, mesmo no trabalho infantil em atividades artísticas, permitido pela Con-
venção n. 138, da OIT, não são incomuns casos de adoecimento e acidentes com crianças e
adolescentes(18)/(19). O mesmo ocorre em alguns esportes de alto rendimento, até no futebol,
que é considerado a paixão nacional, são inúmeras as denúncias sobre os alojamentos precá-
rios nas categorias de base, sendo a tragédia mais recente a ocorrida no “Ninho do Urubu”, do
CR Flamengo(20), o clube mais rico e de maior torcida do Brasil, em que 10 adolescentes mor-
reram asfi xiados pela fumaça e/ou queimados vivos em razão de incêndio nos contêineres nos
quais foram instalados para morar.
Deste breve panorama podemos concluir que:
a) todo trabalho antes da idade mínima para aprendizagem, de 14 anos de idade, é proi-
bido;
b) o trabalho entre 14 e 16 anos apenas é permitido se exercido por meio da contratação
do adolescente como aprendiz, devendo o mesmo ser matriculado em sistema de apren-
dizagem, seja via Sistema S, seja por meio de entidades de aprendizagem e obrigatória
matrícula em rede regular de ensino até que conclua o ensino médio;
c) o adolescente, antes da idade de 18 anos, não pode ser contratado, nem como aprendiz,
para desenvolver quaisquer das atividades relacionadas na Lista TIP (Decreto 6481/2008);
d) a participação artística da criança ou do adolescente depende de autorização clau-
sulada, específi ca e que, além de defi nir pormenorizadamente a atividade que a criança
ou adolescente desenvolverá, deve ater-se para o evento específi co para o qual se busca
a respectiva autorização, já que, por sua excepcionalidade, não pode transformar-se em
contrato de trabalho com a característica da continuidade.
2. CRIMES EM ESPÉCIE
A legislação protetiva da criança e do adolescente prevê situações nas quais determinadas
atividades no mundo do trabalho podem ser consideradas criminosas.
(18) R7. Bebê de três meses é internado com hipotermia após gravar novela. Disponível em:
r7.com/tv-e-entretenimento/bebe-de-tres-meses-e-internado-com-hipotermia-apos-gravar-novela-da-globo-diz-
-jornal-10072017>. Acesso em: 8 jul. 2019.
(19) YOUTUBE. Maísa chora, bate cabeça na câmera e sai chorando do programa. Disponível em: .
youtube.com/watch?v=ujtfJmY3e9I>. Acesso em: 8 jul. 2019.
(20) EL PAÍS. Incêndio no CT do Flamengo, as últimas notícias. Disponível em:
sil/2019/02/08/deportes/1549628820_314191.html>. Acesso em: 7 jul. 2019.
TRABALHO INFANTOJUVENIL ILÍCITO: CRIMES EM ESPÉCIE E ESTRATÉGIAS DE REPRESSÃO EM JUÍZO | 111
É importante, já neste início, esclarecer que o trabalho infantojuvenil não possui tipo
penal em nosso Código Penal. Isso signifi ca que o legislador brasileiro ainda não tipifi cou a
conduta de exploração de “trabalho infantil” dentro das hipóteses penais.(21) No entanto, essa
afi rmação não afasta a ilicitude do trabalho desenvolvido antes da idade mínima e, conforme
veremos a seguir, existem diversas atividades que podem caracterizar crimes, relacionadas ao
desenvolvimento de atividades laborais por crianças e adolescentes.
Antes, porém, é relevante mencionar que o art. 13 do Código Penal, preceitua que o
crime deve ser imputado a quem lhe deu causa e que ela é considerada como toda ação ou
omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. Já seu § 2º preceitua que a omissão é penal-
mente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. Atribuindo-se a
incumbência de agir a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b)
de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamen-
to anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.
Assim, a leitura deste dispositivo penal deixa claro que, não obstante não se tenha o
tipo penal “exploração de trabalho infantil”, o princípio da proteção integral também deve ter
refl exos na seara penal, pois, como a Constituição Federal de 1988, em seu art. 227, impõe à
família, à sociedade e ao Estado o dever de proteger e garantir prioridade absoluta às crianças
e adolescentes, toda e qualquer pessoa que, olvidando do dever de cuidar e proteger, vier a
causar danos aos mesmos, certamente deverá ser penalizada em razão de sua omissão, notada-
mente no que diz respeito ao zelo pela saúde e segurança desses seres em formação.
2.1. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
A Lei n. 8.069/1990, que instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece,
em seu art. 4º, que cabe à família, à comunidade, à sociedade em geral e ao poder público
assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos das crianças e dos adolescentes.
Estabelece ainda que esta prioridade compreende: (i) primazia de receber proteção e socorro
em quaisquer circunstâncias; (ii) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de re-
levância pública; (iii) preferência na formulação e execução das políticas sociais públicas; (iv)
destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância
e à juventude.
Com o objetivo de garantir a proteção integral, o art. 5o deixa claro que nenhuma criança
ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus
direitos fundamentais.”
conta os fi ns sociais aos quais a legislação se destina, bem como os direitos e deveres indivi-
duais e coletivos e, por fi m, a condição peculiar da criança e do adolescente, como pessoas
em desenvolvimento.
O respeito que deve ser destinado às crianças e adolescentes é defi nido pelo ECA como
sendo aquele que abrange a inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral desses seres
em desenvolvimento, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos
valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais (art. 17).
(21) O Projeto de Lei n. 6.895/17 encontra-se em tramitação na Câmara dos Deputados e prevê pena de reclusão de
2 a 4 anos para a contratação e exploração de trabalho de pessoas com idade inferior à 14 anos.
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E, por fi m, na parte introdutória, afi rma que é dever de todos zelar pela dignidade da
criança e do adolescente, os quais devem ser mantidos a salvo de qualquer tratamento desuma-
no, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor (art. 18). O art. 18-A ainda estabelece
que crianças e adolescentes têm o direito de serem educados e cuidados sem o uso de castigos
físicos e de tratamento cruel ou degradante. O parágrafo único deste dispositivo legal consi-
dera tratamento cruel ou degradante qualquer conduta relativa à criança ou adolescente que,
dentre outras, a ameace gravemente.
Essas disposições do ECA são trazidas à luz para uma refl exão inicial, qual seja, a de que
a criança e o adolescente possuem como direitos inalienáveis, dentre outros, a garantia do di-
reito à vida, à educação, à profi ssionalização e devem ser mantidos a salvo de qualquer forma
de negligência, exploração, violência e garante-se a punição de qualquer atentado, por ação ou
omissão, aos seus direitos fundamentais. Observa-se, ainda, que crianças e adolescentes pos-
suem o direito de serem educados sem uso de tratamento cruel ou degradante e, por isso, toda
e qualquer pessoa encarregada de seus cuidados pode ser responsabilizada pela inobservância
desses direitos.
Referidos dispositivos possuem um duplo viés. Se por um lado visam garantir os direitos
fundamentais de crianças e adolescentes, por outro, evidenciam que os autores de tais viola-
ções devem ser punidos, a fi m de impedir que tais violações se perpetuem. A relação entre tais
constatações e o trabalho ilícito de crianças e adolescentes é estabelecida de imediato.
A proibição de trabalho antes da idade mínima, a previsão de contrato de aprendizagem
como meio adequado e protegido de inserção no mercado de trabalho e a proibição de trabalho
de adolescentes em atividades que possam ser prejudiciais à sua saúde, segurança e integri-
dade física e moral, inserem-se dentro das iniciativas adotadas pelo Brasil a fi m de garantir os
direitos fundamentais de crianças e adolescentes, dentre eles o direito à vida e à proteção inte-
gral. Assim, o direito ao não trabalho está intimamente relacionado à proibição deste mesmo
trabalho.
Neste sentido, todos os entes responsáveis pela garantia de tais direitos fundamentais, a
saber: família, Estado e sociedade podem ser responsabilizados quando, por ação ou omissão,
violarem referidos direitos. Dentre eles incluem-se pais, familiares, empregadores, membros de
poderes públicos, organizações criadas com a fi nalidade de auxílio na proteção de tais direitos
e todos os que, direta ou indiretamente, zelam por tais direitos e deixem de cumprir referido
papel.
E qual seria a responsabilização a eles atribuída? Acreditamos que, já de início, toda lesão
a quaisquer dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes gera, no mínimo, o direito à
indenização pelos danos causados, na forma do art. 186 do Código Civil em vigor, pelo qual,
qualquer ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, que violar direito e causar
dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete um ato ilícito.
Desta feita, quando a criança ou o adolescente é inserido precocemente no mercado de
trabalho, contrariando a legislação protetiva, todos aqueles que contribuíram para referida
lesão devem ser responsabilizados. Neste rol temos, em primeiro lugar, o empregador ou o
tomador de serviços que explora o trabalho dos mesmos. Aqui a responsabilidade é estendida
quando o trabalho se desenvolve de modo ilícito, em violação a qualquer das regras protetivas.
A mesma responsabilidade, agravada, deve ser atribuída quando o trabalho provoca lesão de
maior profundidade, a exemplo do desenvolvimento de doenças ocupacionais, profi ssionais
ou acidentes de trabalho.
Do ponto de vista da responsabilização dos entes públicos, temos a questão que envolve a
necessária fi scalização dos locais de trabalho, a cargo da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT)
TRABALHO INFANTOJUVENIL ILÍCITO: CRIMES EM ESPÉCIE E ESTRATÉGIAS DE REPRESSÃO EM JUÍZO | 113
Emprego que, no caso do trabalho infantil, é responsável pela retirada imediata da criança ou
do adolescente do local, bem como por atuar de modo fi scalizatório, impondo ao empregador
as sanções devidas, além de comunicar o fato ao Ministério Público do Trabalho para a neces-
sária ação administrativa que vise ao ajustamento da conduta e, caso infrutífera, deverá dar
ensejo à propositura da Ação Civil Pública, com a mesma fi nalidade.
Os familiares da criança e do adolescente também podem ser responsabilizados, quando,
por ação ou omissão, violarem os mesmos direitos fundamentais. O art. 1.638 do Código Civil
prevê a possibilidade de perda do poder familiar do pai ou mãe quando, dentre outras ações,
ocorrer situação de abandono. A exploração do trabalho de crianças e adolescentes por seus
pais caracteriza abandono, do ponto de vista da obrigação que possuem de protegê-los dos
riscos que o ambiente de trabalho envolve e, também em razão do evidente prejuízo que o
trabalho precoce ocasiona à formação escolar.(22)
Neste ponto, é importante destacar que nem mesmo a vulnerabilidade econômica jus-
tifi ca o trabalho infantil ou a inserção inadequada dos adolescentes ao mercado de trabalho.
É dever dos pais, da sociedade e do Estado garantir-lhes a subsistência, seja diretamente pela
relação familiar, seja pela atenção da sociedade por meio de organizações criadas para essa
fi nalidade específi ca, com implantação de políticas públicas voltadas para proteção integral
de crianças e adolescentes. A omissão do poder público, como já dito, também implica sua
responsabilização, quando, por sua ausência, forem encontradas violações aos direitos funda-
mentais retroindicados.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) também dedica um título aos crimes e
infrações administrativas de modo que tipifi ca algumas condutas que caracterizam crimes en-
volvendo crianças e adolescentes. Nos arts. 240 e 241 encontramos um vasto rol de situações
que envolvem as mais diversas hipóteses de violências sexuais.
Observa-se, pela leitura dos dispositivos, que a violência sexual contra crianças e adoles-
centes pode ocorrer em situações de trabalho. O art. 240, inciso III, menciona especifi camente
a situação em que o crime ali tipifi cado pode ser cometido com a prevalência da relação de
emprego com a criança ou adolescente. É importante ressaltar, neste ponto, os riscos dos
trabalhos artísticos quando, sob o manto da liberdade de expressão, encontram-se crianças e
adolescentes envolvidos em cenas eróticas, para não dizer pornográfi cas ou com referida cono-
tação. É exatamente por isso que as autorizações para participação de crianças e adolescentes
em espetáculos artísticos ou apresentações nesta área precisam ser criteriosamente analisadas
antes de sua concessão. Mesmo se concedida a autorização, não está imune o contratante dos
efeitos penais de sua conduta.
A lista TIP, anexa ao Decreto n. 6.481/2008, já estabelece como atividade proibida a
adolescentes em idade inferior a 18 anos o trabalho em locais onde haja venda de bebidas al-
coólicas. O art. 243 do ECA tipifi ca como crime o ato de vender, fornecer, servir, ministrar ou
entregar, ainda que de forma gratuita, a criança ou a adolescente, bebida alcoólica ou outros
produtos cujos componentes podem causar dependência física ou psíquica, prevendo pena de
detenção de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa, se o fato não constitui crime mais grave.
Já o art. 244-A, ECA, tipifi ca a conduta específi ca da submissão de criança ou adolescente à
exploração sexual, com pena de reclusão variável entre quatro e dez anos, além de multa. A pena
(22) É sempre bom lembrar que aos pais cabe a responsabilidade do sustento de seus fi lhos, e não a estes, pois isso
é uma completa inversão da ordem natural das coisas. Caso os pais não tenham condições de garantir a subsistência
dos fi lhos, cabe à sociedade e ao Estado ajudá-los nessa tarefa.
114 | ELIANA DOS SANTOS ALVES NOGUEIRA, GABRIELA MARCASSA THOMAZ DE AQUINO E JOÃO BATISTA MARTINS CÉSAR
é estendida ao proprietário, gerente ou responsável pelo local em que se verifi que a submissão
de criança ou adolescente às práticas referidas e, por fi m, estabelece como efeito obrigatório da
condenação a cassação da licença de localização e de funcionamento do estabelecimento.
2.2. Código Penal
Por sua vez, o Código Penal, no art. 132, prevê o crime de expor a vida ou a saúde de
outrem a perigo direto e iminente, com a pena de detenção, de três meses a um ano, se o fato
não constitui crime mais grave. A pessoa que se utiliza do trabalho de crianças e adolescentes
pode responder pela prática desse delito.
O Código Penal ainda prevê, em seu art. 111, que a prescrição, antes de transitar em
julgado a sentença, nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, previstos
tanto no Código Penal quanto em legislação especial (como o ECA), começa a correr apenas
da data em que a vítima completar 18 (dezoito) anos, salvo se a esse tempo já houver sido
proposta a ação penal.
Já o art. 149 do Código Penal trata das situações de trabalho escravo, tipifi cando a condu-
ta de reduzir alguém à condição análoga à de escravo, seja pela submissão a trabalhos forçados
ou a jornada exaustiva, seja sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, ou mesmo
restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empre-
gador ou preposto. A pena prevista é de reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena
correspondente à violência. Prevê o aumento pela metade da pena quando o crime é cometido
contra criança ou adolescente.
Lembre-se que no mundo todo, e de forma acentuada no Brasil, ainda se encontra um
grande número de crianças e adolescentes que são retirados de seus lares para trabalharem
como domésticos, até mesmo com o subterfúgio de “fi lho de criação”, que de fi lhos nada têm,
pois trabalham em atividades domésticas, não frequentam a mesma escola dos fi lhos legítimos,
não comem a mesma comida e, tampouco, têm tempo para brincar e para o lazer.
Estas crianças e adolescentes fi cam vulneráveis à exploração já que o trabalho infantil
doméstico ocorre de maneira invisível aos olhos do público, estando as crianças e adolescentes
longe de suas famílias, muitas vezes isoladas do convívio com outras pessoas. São inúmeros os
casos de maus-tratos e abuso de crianças no trabalho doméstico(23), confi gurando a prática dos
crimes de tortura previstos na Lei n. 9.455/1997, e de cárcere privado tipifi cado no art. 148 do
CP, e no caso de vítima com menos de 18 anos, a pena é de reclusão de dois a cinco anos, na
forma prevista no § 1º, inciso IV, do referido artigo.
Importante citar ainda que a Lei das Contravenções Penais, quando trata da questão dos
jogos de azar (art. 50), menciona expressamente o agravamento da pena se envolvidos adoles-
centes em idade inferior a 18 anos, estabelece também o agravamento quando o fato ocorrer
em local de trabalho.
3. VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Como dito anteriormente, a Constituição Federal de 1988 constituiu uma transição
importante em relação às crianças e adolescentes, já que concedeu a essas pessoas em de-
(23) Exemplo disso foi o caso, amplamente divulgado pela mídia, de uma adolescente de 12 anos, contratada como
empregada doméstica, que sofreu maus-tratos por parte de sua patroa. Esta foi condenada a 14 anos, 11 meses
e cinco dias de prisão. Disponível em:
A+E+CONDENADA+A+QUASE+ANOS+POR+TORTURAR+MENINA+EM+GOIAS.html>. Acesso em: ago. 2019.
TRABALHO INFANTOJUVENIL ILÍCITO: CRIMES EM ESPÉCIE E ESTRATÉGIAS DE REPRESSÃO EM JUÍZO | 115
senvolvimento o status de sujeitos de direitos, status anteriormente negado pelos Códigos de
Menores regidos pela Doutrina Penal do Menor e pela Doutrina da Situação Irregular.
É importante compreender que esse fenômeno de transição com mudança de ênfase dos
direitos não é encontrada apenas no campo do direito das crianças e dos adolescentes. É pos-
sível perceber também essa mudança de perspectiva jurídica na transição do Código Penal de
1890 para o Código Penal de 1940, no que se refere às ofensas sexuais.
O Código Penal de 1890 dispunha sobre as ofensas sexuais no título “Dos crimes con-
tra a segurança da honra e honestidade das famílias e ultraje público ao pudor”. Já o Código
Penal de 1940 inseriu as ofensas sexuais no título “Dos crimes contra os costumes”, alterado
pela Lei n. 12.015/2009 para o título atual “Dos crimes contra a dignidade sexual”. Segundo a
antropóloga Laura Lowenkron, essa mudança dos títulos legais evidencia um deslocamento na
defi nição do delito, que antes considerava o status social da pessoa ofendida e passou a consi-
derar a questão da presença ou ausência de consentimento.(24)
A antropóloga ainda identifi ca que, paralelamente a esse deslocamento legal, houve o
deslocamento dos efeitos das ofensas sexuais que passaram da vergonha ao sofrimento psíqui-
co. Sofrimento este que é ampliado quando se trata de crianças e adolescentes na medida em
que ameaça o desenvolvimento sexual e psíquico de um sujeito ainda em formação.
Além dessas mudanças de panorama no que se refere ao aspecto legal e social envolvendo
as ofensas sexuais e considerando a doutrina de proteção integral e prioridade absoluta das
crianças e dos adolescentes, é importante compreender o que constitui a exploração sexual
infantil e em que aspecto ela se diferencia do abuso e da pedofi lia.
O abuso sexual infantil pode ser caracterizado por interações sexuais com crianças e ado-
lescentes. Segundo a rede de organizações ECPAT International (End Child Prostitution and
Traffi cking) essas interações sexuais não envolvem necessariamente contato corporal entre a
criança e o abusador. As ações abusivas podem incluir exibicionismo ou voyeurismo(25) e são
cometidas por pessoas que têm alguma responsabilidade sobre a criança ou o adolescente, de
modo que é desenvolvida, ao mesmo tempo, uma relação de confi ança e de poder.(26)
Assim, duas características marcantes do abuso sexual são a assimetria de poder e o fato
de que a criança e o adolescente são vistos como objeto de satisfação e não como um sujeito
da relação sexual. Essa conduta vem abarcada pelos instrumentos legislativos previstos no
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) na medida em que preveem como crime a produ-
ção, reprodução, direção e registro de cenas de sexo explícito ou pornográfi ca entre crianças
e adolescentes, acrescida de pena se cometida no âmbito das relações de parentesco (art. 240,
III), bem como o aliciamento, por qualquer meio de comunicação, de criança, com o fi m de
com ela praticar ato libidinoso (art.241-D).
Já a exploração sexual infantil é entendida a partir da lógica de mercantilização do corpo
e alienação da pessoa e substitui os termos “prostituição”(27) e “pornografi a” para enfatizar a
(24) LOWENKRON, Laura. Abuso sexual infantil, exploração sexual de crianças, pedofi lia: diferentes nomes, diferen-
tes problemas? Disponível em: .e-publicacoes.uerj.br/index.php/SexualidadSaludySociedad/article/
view/394/805>. Acesso em: ago. 2019.
(25) Desordem sexual que consiste na observação de uma pessoa no ato de se despir, nua ou realizando atos sexuais
e que não se sabe observada.
(26) ECPAT. Questions & Answers about the Commercial Sexual Explotation of Children. p.18. Disponível em:
(27) Ressalte-se a impropriedade do termo “prostituição infantil”, vez que crianças e adolescentes não se prostituem,
são explorados sexualmente.
116 | ELIANA DOS SANTOS ALVES NOGUEIRA, GABRIELA MARCASSA THOMAZ DE AQUINO E JOÃO BATISTA MARTINS CÉSAR
condição passiva das crianças e adolescentes. Em geral a exploração sexual infantil está rela-
cionada à exploração comercial e ao crime organizado.(28)
As crianças e adolescentes não são vistos como objetos, mas sim como mercadorias e é
um fenômeno complexo que envolve diversos agentes: aliciadores, “clientes”, estabelecimen-
tos comerciais, agências de viagens, hotéis, bares, boates etc.(29)
Segundo dados do Observatório da Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, ba-
seados nas ações do Projeto MAPEAR — mapeamento de pontos vulneráveis à exploração
sexual de crianças e adolescentes nas rodovias e estradas federais — há, no país, 2.487 pontos
de vulnerabilidade, sendo que em 227 já foram constatadas explorações sexuais de crianças e
adolescentes, 235 constituíam-se em pontos vulneráveis com atuação dos Conselhos Tutelares
e 2.252 ainda estavam sem atuação de Conselhos Tutelares, apesar de se caracterizarem como
áreas vulneráveis.(30)
Quanto às características dos pontos vulneráveis a esse tipo de exploração constatou-
-se que 64% constituíam-se em pontos de abastecimento, parada, carga/descarga, comércio,
hospedagem e alimentação, enquanto 15% se dava em bares, em geral com comércio formal e
informal e 11% em casas de massagem, show, boate ou prostíbulos.
A conduta de exploração sexual de crianças e adolescentes também vem abarcada pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), conforme já dito anteriormente, no art. 244-A.
O crime de favorecimento da prostituição e de outra forma de exploração sexual de criança ou
adolescente ou de vulnerável também foi incluído no Código Penal, no art. 218-B, nos mes-
mos moldes do dispositivo do ECA, incluindo, na responsabilidade penal, aquele que pratica
conjunção carnal ou outro ato libidinoso com alguém menor de 18 (dezoito) e maior de 14
(catorze) anos, de modo a responsabilizar criminalmente o “cliente”.
Essa criminalização do “cliente” é importante tendo em vista decisão do Superior Tribu-
nal de Justiça (STJ), que considerou que o art. 244-A, ECA não abrangia a conduta do cliente
ocasional:
PENAL. EXPLORAÇÃO SEXUAL. ART. 244-A DO ECA. RÉUS QUE SE APROVEITAM DOS SERVIÇOS
PRESTADOS. VÍTIMAS JÁ INICIADAS NA PROSTITUIÇÃO. NÃO-ENQUADRAMENTO NO TIPO PENAL.
EXPLORAÇÃO POR PARTE DOS AGENTES NÃO-CONFIGURADA. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO.
1. O Superior Tribunal de Justiça tem entendimento no sentido de que o crime previsto no art. 244-A do ECA
não abrange a fi gura do cliente ocasional, diante da ausência de exploração sexual nos termos da defi nição
legal. Exige-se a submissão do infante à prostituição ou à exploração sexual, o que não ocorreu no presente
feito. REsp 884.333/SC, Rel. Min. GILSON DIPP, Quinta Turma, DJ 29.06.07. 2. Recurso especial improvido
(STJ — REsp: 820018 MS 2006/0028401-0, Relator: Ministro Arnaldo Esteves Lima, Data de Julgamento:
05.05.2009, T5 — QUINTA TURMA, Data de Publicação: 20090615 --> DJe 15.06.2009)
A inserção da fi gura do “cliente” no art. 218-B do Código Penal, dessa forma, foi impor-
tante para efetivar os princípios protetivos elencados no art. 227 da Constituição Federal.
(28) LOWENKRON, Laura. Abuso sexual infantil, exploração sexual de crianças, pedofi lia: diferentes nomes, diferen-
tes problemas? Disponível em: .e-publicacoes.uerj.br/index.php/SexualidadSaludySociedad/article/
view/394/805>. Acesso em: ago. 2019.
(29) LOWENKRON, Laura. Abuso sexual infantil, exploração sexual de crianças, pedofi lia: diferentes nomes, diferen-
tes problemas? Disponível em: .e-publicacoes.uerj.br/index.php/SexualidadSaludySociedad/article/
view/394/805>. Acesso em: ago. 2019.
(30) SMARTLAB. Riscos de exploração sexual comercial em rodovias e estradas federais (Projeto MAPEAR- PRF). Dis-
ponível em: . Acesso em: ago.
2019.
TRABALHO INFANTOJUVENIL ILÍCITO: CRIMES EM ESPÉCIE E ESTRATÉGIAS DE REPRESSÃO EM JUÍZO | 117
Por fi m, o termo pedofi lia está relacionado à ênfase das características psicológicas do
adulto que se relaciona sexualmente com crianças e adolescentes ou daquele que produz,
divulga ou consome imagens de pornografi a infantil, é o deslocamento do foco para o sujeito
violador das normas.(31)
O que se percebe, portanto, é que tanto as condutas caracterizadas como abuso se-
xual quanto as de exploração sexual de crianças e adolescentes, estas últimas diretamente
relacionadas com o trabalho, encontram proteção jurídica tanto no Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) quanto no Código Penal (CP) que se regem considerando a doutrina de
proteção integral e prioridade absoluta inaugurada com a Constituição de 1988.
4. ESTRATÉGIAS DE REPRESSÃO EM JUÍZO
Pontuadas as situações em que o trabalho da criança e do adolescente é ilícito, sobretudo
a questão da violência sexual contra crianças e adolescentes, bem como os crimes relacionados
previstos na legislação brasileira, lança-se o olhar sobre quais seriam as estratégias efi cazes de
repressão em juízo.
Conforme mencionado no início desta refl exão, a Constituição Federal estabelece a prio-
ridade absoluta para garantia dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes e, para isso,
conta-se com um Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente, composto por
organismos estatais e não estatais, bem como políticas públicas cuja fi nalidade é exatamente
tornar realidade a referida proteção absoluta e prioritária de que trata o art. 227 da Constitui-
ção Federal.
No âmbito da Justiça do Trabalho, a primeira estratégia deve ser a criação de órgãos
especializados dentro da sua estrutura(32) para apreciar as situações nas quais o trabalho em
idade inferior à mínima seja constatado. Tal decorre do fato de que é necessário um olhar
especial e específi co para diagnosticar tais situações e efetuar o correto enquadramento da
situação fático-jurídica. O trabalho da criança e do adolescente, normalmente, envolve casos
de vulnerabilidade social, já que, historicamente, o trabalho precoce é encontrado, de forma
mais intensa, na população de baixa renda.(33) Isso implica sensibilizar-se para a situação e
investigar, ainda que rapidamente, os motivos pelos quais a criança ou o adolescente exercia a
atividade laborativa. Mesmo que não existam os órgãos especializados, ao menos os juízes que
se dedicarem à análise de referidas situações devem ser sensibilizados para essa cruel realidade.
Encontrada a situação de trabalho infantil, deve ser colocada em atuação a rede de pro-
teção criada pelo Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente, que, a partir
(31) LOWENKRON, Laura. Abuso sexual infantil, exploração sexual de crianças, pedofi lia: diferentes nomes, diferen-
tes problemas? Disponível em: .e-publicacoes.uerj.br/index.php/SexualidadSaludySociedad/article/
view/394/805>. Acesso em: ago. 2019.
(32) Essa estrutura especializada deve existir no primeiro e no segundo graus.
(33) Nesse sentido, veja-se o artigo: “Trabalho infantil negro é o maior por herança da escravidão”: “Os dados de
trabalho infantil no Brasil mostram que as crianças negras representam 62,7% da mão de obra precoce no país.
Quando se trata de trabalho infantil doméstico, esse índice aumenta para 73,5%, sendo mais de 94% meninas.
Esses números só começaram a ser apresentados nas últimas pesquisas, mas podem ser explicados por um olhar
histórico, segundo especialistas que trabalham com o tema. “A questão é permeada por um racismo estrutural,
uma vez que pessoas negras, escravizadas e libertas, não tiveram inserção de trabalho, de forma digna, com direitos
assegurados, com estrutura mínima que permitisse acesso aos demais direitos”, afi rma Elisiane Santos, procuradora
e vice-Coordenadora de Combate à Discriminação no Ministério Público do Trabalho de São Paulo (MPT-SP).” Cf.
-escravidao/?fbclid=IwAR321-QgAQ0rQKxyvfemVGIdfc7TGV5yAnGArYixXaBJ0dEgrWld5yi6mD4>. Acesso em:
16 ago. 19.
118 | ELIANA DOS SANTOS ALVES NOGUEIRA, GABRIELA MARCASSA THOMAZ DE AQUINO E JOÃO BATISTA MARTINS CÉSAR
das atribuições específi cas de cada ente da rede de proteção, estrategicamente traçadas pela
Resolução 113 do CONANDA, devem atuar diretamente em cada situação. Neste sentido, as
primeiras ações a serem adotadas devem ser:
1. Ofi ciar a Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), órgão local responsável pela fi sca-
lização das relações de trabalho, para imediata fi scalização da empresa ou pessoas físicas
envolvidas, a fi m de verifi car se existem outras crianças e adolescentes no local, com
expressa determinação de retirada imediata de quem for encontrado em referida situa-
ção, solicitando-se retorno ao juízo ofi ciante do resultado da diligência. Caso a situação
ocorra em âmbito domiciliar, é importante que o ofício siga com expressa autorização
de ingresso na residência, afastando-se a previsão constitucional de inviolabilidade de
domicílio, ante a evidência de uso de trabalho infantil;
2. Ofi ciar imediatamente o Ministério Público do Trabalho para acompanhamento da
ação, visando, quando for o caso, iniciar o imediato procedimento administrativo para
ajustamento da conduta do empregador ou, caso infrutífera a proposta de solução admi-
nistrativa, a propositura da competente Ação Civil Pública;
3. Verifi cada situação de vulnerabilidade social, ofi ciar a Secretaria Municipal de Assistên-
cia Social, a fi m de que a família seja encaminhada para programas de políticas públicas
existentes no âmbito municipal ou mesmo em âmbito estadual ou federal e, dentre eles
o programa Pró-Jovem e o Bolsa-Família. Cabe ao Serviço Social da municipalidade cen-
tralizar todos os programas sociais, dentre eles o PETI (Programa de Erradicação do
Trabalho Infantil). Os municípios devem ter os seus Centros de Referência de Assistência
Social (CRAS) e os Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS),
cuja incumbência está diretamente relacionada a situações onde sejam encontradas vio-
lação de direitos e, dentre eles, o trabalho infantil.
4. Comunicar o Conselho Tutelar do município, quando, em razão da situação narrada,
possa ser verifi cada existência de lesões mais graves à criança ou ao adolescente, como, por
exemplo, a exploração de trabalho infantil que envolve exploração sexual ou mesmo casos
de risco familiares. Nesta hipótese, cabe ao Conselho Tutelar, por seus conselheiros, chamar
os responsáveis ou visitá-los para, dentro de suas atribuições, tomar as medidas cabíveis.
5. Em situações nas quais seja evidenciada lesão de maior relevância, como a prática
de crime que constitua tipo penal, encaminhar imediatamente ofício ao Promotor da
Infância e Juventude, a fi m de que promova a competente ação penal, solicitando encami-
nhamento da solução encontrada. O auditor fi scal ou o membro do Ministério Público do
Trabalho, percebendo que se trata de caso de fl agrante delito, poderá dar voz de prisão(34)
e encaminhar o autor para a Delegacia de Polícia.
6. Algumas situações também apontam para atendimento de maior abrangência quando,
por exemplo, observa-se ocorrência de acidente de trabalho envolvendo crianças ou ado-
lescentes. Nesses casos, é interessante perquirir sobre a necessidade de auxílio médico ou
psicológico, o que pode ser obtido por meio de requisição de tais serviços diretamente à
Secretaria Municipal de Saúde, por via judiciária, pelo próprio Juiz do Trabalho.
7. A fi m de garantir a proteção com maior profundidade, é interessante conhecer quais
são as ações do Conselho Municipal da Criança e do Adolescente (CMDCA) na cidade.
Todas as entidades sem fi ns lucrativos que desenvolvem projetos e programas voltados
para crianças e adolescentes, caso desejem obtenção de subvenção do Fundo Municipal
(34) Cf. Art. 301 e seguintes do Código de Processo Penal.
TRABALHO INFANTOJUVENIL ILÍCITO: CRIMES EM ESPÉCIE E ESTRATÉGIAS DE REPRESSÃO EM JUÍZO | 119
dos direitos da Criança e do Adolescente, deve estar cadastrada junto ao CMDCA. Desta
feita, ofi ciar a referido órgão e solicitar informação sobre todos os projetos em desenvolvi-
mento na localidade é, sem dúvida, uma importante ferramenta, inclusive para conhecer
quais podem ser os desdobramentos quando necessária a reinserção do adolescente, via
projetos que visem minorar os prejuízos do trabalho precoce.
8. Do ponto de vista educacional, é importante perquirir se a criança ou adolescente
encontra-se matriculado no ensino regular ou se já concluiu o ensino médio obrigató-
rio. Caso não tenha concluído, é necessário instar o representante legal a matriculá-lo,
comprovando nos autos a referida matrícula e a frequência escolar. O Juiz do Trabalho
pode ofi ciar à Secretaria Municipal ou Estadual de Educação, dependendo do caso, requi-
sitando vaga para a criança ou adolescente. Nessa hipótese, é salutar informar a situação
diretamente ao Conselho Tutelar.
9. Outra medida efi caz corresponde à articulação entre Justiça do Trabalho, Secretaria de
Inspeção do Trabalho (SIT) e Ministério Público do Trabalho (MPT) a fi m de alavancar
as vagas para aprendizes, com o escopo de garantir, àqueles adolescentes que desejam
iniciar sua vida profi ssional a partir dos 14 anos, que o façam de modo adequado. Essa
articulação pode ser desenvolvida a partir do mapeamento a cargo da Secretaria de Ins-
peção do Trabalho das empresas que podem efetuar a contratação de aprendizes, já que
ainda hoje, muitas empresas não cumprem a cota mínima. Considerando a fi nalidade da
norma, de viés protetivo quanto ao adolescente, uma estratégia efi caz é o convite de tais
empresas para audiências públicas, com a participação dos três órgãos retroindicados,
para conscientização e proposta de assinatura de Termo de Ajustamento de Conduta,
com o MPT, pelo qual as mesmas se comprometem a cumprir a cota e, com isso, permitir
a adequada inserção dos adolescentes no mercado de trabalho.
10. Uma outra alternativa que pode ser viabilizada em cada município consiste no
desenvolvimento de cursos preparatórios para o mercado de trabalho, denominados pré-
-aprendizagem profi ssional. Tais cursos são voltados para preparação de adolescentes
para ingresso em cursos de aprendizagem profi ssional e visam desenvolver competên-
cias e habilidades dos adolescentes para conhecimento do mundo do trabalho. Podemo
citar como exemplo de desenvolvimento de tais cursos o SENAC (Sistema Nacional de
Aprendizagem Comercial), que possui curso denominado “Auxiliar de Escritório”, cuja
fi nalidade é exatamente a preparação do adolescente para o mercado de trabalho. O curso
é uma importante ferramenta de sondagem das capacidades e habilidades dos adoles-
centes e, principalmente para aqueles de maior vulnerabilidade social, como egressos de
medidas socioeducativas ou em grave situação de violação de direitos, atua como impor-
tante ferramenta para alavancar as capacidades individuais de cada adolescente.
Ao fi nal, é importante ressaltar que, das experiências conhecidas para efetiva proteção
de crianças e adolescentes no combate ao trabalho infantil, todas elas, sem exceção, têm como
primeiro lugar o município. É importante que as estratégias de repressão sejam desenvolvidas e
atuadas no âmbito municipal, que é o espaço mais próximo da ocorrência da lesão e, ali, devem
ser desenvolvidas as ações efetivas para extirpar a prática e criar alternativas para reparação das
lesões físicas, morais ou sociais de crianças e adolescentes vítimas do trabalho infantil.
A efetividade das medidas depende do conhecimento da realidade local e da sondagem
das possibilidades existentes para criação de alternativas efi cazes e, uma vez mais, frisa-se a im-
portância da especialização de cada órgão do Sistema de Garantia de Direitos e, sobretudo, dos
Juízes do Trabalho por meio da criação de órgãos específi cos para processar e julgar as lides que
decorram de violações ao sistema de proteção de crianças e adolescentes no mundo do trabalho.
120 | ELIANA DOS SANTOS ALVES NOGUEIRA, GABRIELA MARCASSA THOMAZ DE AQUINO E JOÃO BATISTA MARTINS CÉSAR
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sabe-se que impera no direito penal o princípio da intervenção mínima, ultima ratio, ou
seja, a criminalização da conduta somente será legitimada se constituir meio necessário para a
proteção de determinado bem jurídico. Caso os outros meios de controle social não se revelem
sufi cientes para a tutela de um bem, a criminalização será desnecessária.
No Brasil, a criminalização da utilização de mão de obra infantil é uma necessidade pre-
mente, pois, apesar da redução do trabalho infantil, ainda temos milhões de crianças ceifadas
do direito fundamental ao não trabalho.
A proteção efetiva das crianças e adolescentes, quanto ao mundo do trabalho, envolve
medidas que visem à efetiva implementação dos direitos fundamentais. As estratégias indica-
das têm por fi nalidade a atuação conjunta, em rede, de organismos que devem garantir referida
proteção. O trabalho infantojuvenil envolve muito mais que apenas questões jurídicas. Envolve
desde questões culturais como vários mitos ainda presentes em nosso cotidiano, que defendem
o trabalho em detrimento da educação, até a atuação parcimoniosa de vários entes, públicos e
privados, cujo dever é a erradicação plena dessa chaga social que é o trabalho infantil.
Apenas a intervenção efi caz dos agentes pode minorar a situação e alterá-la, garantindo-
-se a observância do princípio da proteção integral e do direito fundamental ao não trabalho
para nossas crianças e adolescentes.
Exatamente por isso, os casos mencionados neste artigo, o da tragédia no “Ninho do
Urubu” e o do bebê internado com hipotermia após gravar novela, devem ser muito bem in-
vestigados e processados, e punidos os culpados. É preciso dar um basta, não é possível ser
conivente com essas violências que vitimizam as nossas crianças e adolescentes.
O trabalho protegido é a única hipótese prevista em nosso ordenamento jurídico. Não há
que se falar em trabalho eventual do adolescente dentro de uma empresa ou de trabalho edu-
cativo dentro de uma residência, já que em tais situações e espaços não se encontram presentes
os pressupostos da aprendizagem profi ssional, que possui como viés a educação, que deve ser
prestada por ente devidamente capacitado para tal, visando ao desenvolvimento e aprimora-
mento das capacidades profi ssionais do adolescente.
A criança deve ter acesso a um sistema de proteção integral que seja capaz de ampará-la
sempre. Caso ela esteja em condição de vulnerabilidade social, a rede de proteção deve atuar
jamais o trabalho pode ser considerado como alternativa de sobrevivência, sequer como hipó-
tese. Assim fazendo, somos transformados nos carrascos dessas crianças, mantendo-as dentro
do perverso ciclo da pobreza.
A conjugação de fatores como: educação, conscientização e aplicação da legislação prote-
tiva específi ca é o único meio apropriado para o combate ao trabalho infantil.
A erradicação do trabalho infantil em nosso país estimulará um ciclo virtuoso de me-
lhoria contínua da sociedade brasileira, proporcionando às nossas crianças e adolescentes a
efetiva possibilidade de aquisição de patrimônio profi ssional por meio da aprendizagem, único
meio pelo qual será possível romper o ciclo da pobreza no qual, invariavelmente, as crianças e
adolescentes que trabalham estão inseridos.
O Estado brasileiro, por seus entes e instituições, tem o dever constitucional de garantir
iguais oportunidades a todos. E tal signifi ca garantir àqueles com maior vulnerabilidade social
e econômica o acesso à educação de qualidade, integral e em tempo integral. Não podemos
TRABALHO INFANTOJUVENIL ILÍCITO: CRIMES EM ESPÉCIE E ESTRATÉGIAS DE REPRESSÃO EM JUÍZO | 121
permitir que apenas aqueles de famílias em melhores condições sociais possam manter seus fi -
lhos fora do trabalho infantil. Este é um direito que precisa ser garantido a todos, sem exceção.
O desejo por um Brasil Sem Trabalho Infantil é partilhado, fervorosamente, por todos
aqueles que atuam dentro do Sistema de Garantia de Direitos, eis que temos absoluta certeza
de que, apenas sem trabalho infantil é que o país poderá crescer de modo sustentável a longo
prazo, gerando crescimento econômico e melhorando os indicadores sociais que poderão per-
mitir que nos transformemos em uma nação justa e solidária.
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