O agente de execução no PL 6.204/19: por que somente o tabelião de protestos?

AutorJoel Dias Figueira Júnior
Páginas653-673
O AGENTE DE EXECUÇÃO NO PL 6.204/19:
POR QUE SOMENTE O TABELIÃO DE PROTESTOS?1
Joel Dias Figueira Júnior
Pós-doutor pela Università degli Studi di Firenze, Doutor e Mestre pela PUC/SP.
Membro da Academia Brasileira de Direito Civil e do IBDP; Professor de Cursos de
Pós-graduação do CESUSC; foi Presidente da Comissão de Juristas que elaborou o
anteprojeto de lei que deu origem ao PL 6.204/19; integrou a Comissão Especial de
Assessoria da Relatoria-Geral do Código Civil na Câmara dos Deputados. Membro do
Comitê Brasileiro de Arbitragem-CBAr. Desembargador aposentado do TJSC. Advogado,
Consultor Jurídico e Parecerista.
1. INTRODUÇÃO: BREVE ACENO À CRISE DA JURISDIÇÃO ESTATAL
BRASILEIRA E A AGENDA 2030/ONU-ODS
Há décadas a jurisdição pública brasileira encontra-se mergulhada em crise que
se agrava a cada ano, beirando ao colapso com o consequente risco de desestabilização
do Estado Democrático de Direito, na medida em que, paulatinamente, vem deixando
de corresponder aos anseios da população que, para resolver seus conf‌litos, precisa
acessar o Estado-juiz sem a perspectiva de obter em tempo razoável a satisfação de
suas pretensões resistidas ou insatisfeitas.
Mesmo antes da criação do Conselho Nacional de Justiça, quando ainda não dis-
púnhamos de dados estatísticos indicadores do funcionamento do Poder Judiciário,
todos nós, prof‌issionais do foro, já tínhamos a nítida impressão de que o principal
ponto de estrangulamento residia nos processos de execução – como diriam os ita-
lianos, il collo di botiglia (“o gargalo da garrafa”).
Não foi por menos que o Conselho Nacional de Justiça após instituir o anuário
“Justiça em Números” e identif‌icar este ponto, passou a denominar o problema
que assombra os jurisdicionados e atormenta os juízes e advogados e demais pro-
f‌issionais do direito como sendo o gargalo do Poder Judiciário, assim representado
pelas execuções civis e f‌iscais, responsáveis por aproximadamente 54% de todas
as demandas que tramitam na jurisdição estatal (77 milhões). Signif‌ica dizer que,
em torno de 42 milhões de processos são execuções de títulos extrajudiciais e ju-
diciais, dos quais, aproximadamente, 13 milhões são execuções civis e 29 milhões
execuções f‌iscais.
1. Dedico este modesto estudo ao eterno Mestre e Amigo Arruda Alvim, jurisconsulto de escol que esteve
sempre, com sabedoria e humildade, avante de seu tempo, um visionário que não se continha em pensar e
escrever as novas linhas da ciência do Direito, pois as transformava em prática cotidiana. Talvez uma das
últimas e maiores lições do Mestre tenha sido a desjudicialização, e, com isso, o reforço ao desfazimento
do mito de que a Justiça deva ser administrada somente pelos seus juízes. A prova do que af‌irmo – se é
que precisa - está em sua doutrina sobre a jurisdição privada, no apoio incondicional ao PL 6.204/19 e nas
atuações f‌irmes, por mais de uma década, junto ao Supremo Tribunal Federal, no que concerne a defesa da
constitucionalidade da execução hipotecária e da alienação f‌iduciária de imóveis. Tempus fugit...
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Pois bem: esse é o quadro patológico crônico em que se encontra seriamente
mergulhado o Poder Judiciário e que se agrava a cada ano – em estado quase terminal...
Urge, portanto, a tomada de providências que, no menor espaço de tempo
possível, minimizem a crise da jurisdição estatal; para atingirmos este desiderato,
mister afrontar o problema do processo de execução com seriedade e coragem, mo-
dif‌icando paradigmas, superando mitos e dogmas que não mais se sustentam em
pleno século XXI.2
Esperava-se com otimismo exacerbado3 – quase ingênuo – diminuir essa crise
gigantesca com reformas legislativas e pontuais durante a vigência do Código de 1973
e, mais recentemente, com o Diploma de 2015, que trouxe consigo algumas boas
inovações e manteve os melhoramentos normativos, que se mostraram factíveis e que
foram inseridos no Código revogado, frutos colhidos do “movimento reformista”,
então liderado pelos saudosos Ada Pellegrini Grinover, Athos Gusmão Carneiro e
Sálvio de Figueiredo Teixeira.
Por outro lado, os dados estatísticos levantados pelo Conselho Nacional de
Justiça revelam boa produtividade dos magistrados4 que, sabidamente, empreendem
esforços hercúleos para tentar reduzir o acervo de processos, contudo, sem jamais
vencer a avalanche de demandas represadas, às quais se somam as novas ações que
aportam diuturnamente em seus gabinetes – numa espécie de Don Quixote lutando
contra moinhos de vento.
Este cenário dantesco tem origem em fatores diversos, tais como culturais,
sociais, políticos e econômicos; vejamos num breve aceno alguns desses pontos: a)
está arraigada em nosso povo a cultura do litígio fundada em sistema adversarial,
enquanto forjados os advogados sob égide da ultrapassada f‌ilosof‌ia Iheringhiana
do século 19 da “Luta pelo Direito”5, em absoluto descompenso com os métodos
autocompositivos de resolução de controvérsias e equivalentes jurisdicionais; b)
soma-se a cultura difusa da desobediência às leis e ao comando de ordens ou exor-
2. Tal superação já se verif‌icou em diversos países de common e civil law – um deles é o mito de que a execução
deva ser administrada exclusivamente pelo Estado-juiz.
3. Ao discorrer sobre o “viés de otimismo (optimism bias), Erik Navarro Wolkart em sua instigante obra (Tese
de Doutoramento – PUC/SP) intitulada Análise Econômica do Processo Civil observa que, “... na média, as
pessoas são otimistas. Elas superestimam as probabilidades de acontecimentos positivos e diminuem as
probabilidades reais de um evento negativo. Em cenários de incerteza, e desde que as consequências negativas
não possuam grande saliência, tendemos a distorcer as probabilidades de modo a acreditar que resultados
positivos são mais prováveis do que realmente são e que consequências negativas são menos prováveis do
que na realidade. É interessante notar que as pessoas, mesmo quando detém uma concepção correta da
média de ocorrência de eventos negativos, via de regra, julgam-se abaixo dessa média” (p. 597/598, 2. ed.).
4. Depreende-se do Justiça em Números 2020 que em 2019 a produtividade média dos julgadores foi a maior dos
últimos 11 anos (elevando-se em 13%), com média de 2.017 processos baixados por magistrado, terminando
o ano com 77,1 milhões de processos em tramitação, número semelhante ao verif‌icado em 2015.
5. Sem dúvida, trata-se de um clássico da literatura jurídica que não pode deixar de ser lido por nenhum
estudante de direito, porém, com os olhos e as ideias de um leitor do terceiro milênio em que os meios não
adversariais de resolução de controvérsias se sobrepõe em valores e resultados no comparativo com os
adversariais.
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