Aplicação da teoria do domínio do fato às persecuções penais que envolvem organizações criminosas

AutorOlavo Evangelista Pezzotti
Ocupação do AutorDoutorando e Mestre em Direito Processual Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo (2012). Foi Visiting Scholar na Stanford Law School ? EUA. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo. Membro Auxiliar da ...
Páginas103-132
APLICAÇÃO DA TEORIA DO DOMÍNIO
DO FATO ÀS PERSECUÇÕES PENAIS QUE
ENVOLVEM ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS
Olavo Evangelista Pezzotti
Doutorando e Mestre em Direito Processual Penal pela Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Direito Penal pela Escola Supe-
rior do Ministério Público de São Paulo (2012). Foi Visiting Scholar na Stanford
Law School – EUA. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São
Paulo. Membro Auxiliar da Procuradoria-Geral da República junto ao Superior
Tribunal de Justiça, com atribuição em crimes de competência originária (Corte
Especial). Foi integrante do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime
Organizado (GAECO) do MPSP. Integrou a assessoria criminal da Procuradoria-
-Geral de Justiça de São Paulo (CAOCrim).
Sumário: 1. Introdução – 2. Pressupostos teóricos e posição dogmática da teoria do domínio
do fato no direito penal – 3. Possíveis expressões do domínio do fato – 4. Domínio da vontade:
“autoria mediata” e o controle de “aparatos organizados de poder” – 5. Pressupostos da autoria
mediata pelo domínio de um aparato organizado de poder – 6. Conclusão – 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Organizações criminosas se constituem pela associação de indivíduos
que, com animus de estabilidade e permanência, visam à obtenção de vantagens
indevidas, por meio da prática sistemática de delitos graves. É usual, embora
não indispensável, que o arranjo desses grupos ilícitos apresente uma estrutura
hierarquizada, com disposição vertical de funções, em rígida cadeia de comando
sustentada por normas internas de autoridade informal.1
1. Conceitual e empiricamente, nas organizações criminosas violentas, segundo Kai Ambos, a estrutura
hierárquica, amparada por normas de disciplina, leva ao desenvolvimento de uma “cultura de mando
e de obediência cega”. Não obstante, para caracterização de um “aparato organizado de poder”, que
interessa à aplicação da teoria do domínio do fato, o essencial é que a estrutura organizativa viabilize
o controle sobre os executores materiais dos crimes, ainda que por meio diverso da hierarquização
de posições. (AMBOS, Kai. Sobre la “organización” en el domínio de la organización. Revista para
el Análisis del Derecho. Barcelona, Julho de 2011, p. 15-16). Ainda sobre o caráter ideal, porém não
indispensável, da hierarquia para a conguração de um “aparato organizado de poder” e para o “do-
mínio da organização”: “Es verdad que el escenario ideal para que exista dominio de la organización
es una organización jerárquica, pero ello no signica que no pueda existir fuera de ella” (MEINI, Iván.
La autoría mediata por dominio de la organización en el caso Fujimori: comentario a la sentencia de
fecha 7.4.2009 (Exp. a.v. 19 – 2001) emitida por la Sala Penal especial de la Corte Suprema. Zeitschri
für Internationale Strafrechtsdogmatik, 11/2009, p. 604).
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Para além do vínculo subjetivo estável entre os associados e da estrutura
hierárquica, as organizações criminosas mais complexas segmentam suas ativi-
dades em núcleos de atuação, os quais apresentam nalidades e objetivos parti-
culares, mas que devem funcionar em sinergia, convergindo para a consecução
dos objetivos comuns e superiores do agrupamento delinquencial. É justamente
essa estruturação funcional que confere a uma associação ilícita a característica
de organização.2
Enquanto a distribuição de poderes decisórios e de funções executivas entre
diferentes células dá origem a núcleos relativamente estáveis, estes são majoritaria-
mente compostos por indivíduos fungíveis, responsáveis por apenas uma fração
das ações necessárias ao sucesso da organização. Some-se a tal fato a constatação
empírica, já consolidada no senso comum, de que os líderes das facções crimi-
nosas apenas raramente praticam com as próprias mãos os crimes perpetrados
em favor da organização.
Esses dois fatores – ausência de envolvimento dos líderes na execução mate-
rial dos delitos e fragmentação das infrações entre múltiplos autores e partícipes
– dão causa a problemas de ordem prática, dicultando a incidência do direito
penal aos casos que envolvem criminalidade organizada. Mais especicamente,
pode haver equívocos na aplicação das normas de concurso de pessoas, no reco-
nhecimento de nexo causal entre conduta e resultado, bem como na aferição de
critérios de individualização da pena, que devem sempre levar a um sanciona-
mento que corresponda à “medida de culpabilidade” do agente.
Como ponto de partida, deve-se afastar o entendimento de que a prática
do crime previsto no artigo 2º da Lei 12.850/13 (pertencimento à organização
criminosa) autoriza a automática imputação de delitos praticados em favor do
grupo. A inserção do indivíduo na estrutura hierárquico-piramidal da facção
não implica necessariamente sua responsabilização por crimes perpetrados por
outros integrantes. Se assim fosse, haveria indevida responsabilização objetiva.
Por outro lado, a interpretação das ações individuais de quem integra orga-
nização criminosa pressupõe uma leitura contextualizada pelo funcionamento
global da entidade ilícita. Denir as margens de responsabilização penal do in-
divíduo por sua atuação junto à organização demanda prévio conhecimento da
composição estrutural da facção.
2. É característico que as células das organizações criminosas tenham um caráter de impessoalidade, de
sorte que os indivíduos que se associam ao grupo passam a ter uma relação preponderante com o ente
ilícito, abstratamente considerado, e independente de uma relação individual com membros deter-
minados da facção, de importância secundária: “no se da aún una organización cuando los distintos
delincuentes solo están vinculados por relaciones personales. La organización, pues, debe alcanzar
cierta dimensión y no depender de determinados miembros concretos” (ROXIN, Claus. Autoría y
dominio del hecho en derecho penal. Madrid: Marcial Pons, 2016, p. 692).

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