A pessoa jurídica no contexto da criminalidade organizada, o compliance penal e a correspondente insuficiência legislativa brasileira

AutorJúlia Flores Schütt
Ocupação do AutorMestre e Doutoranda em Direito pela Universidade de Salamanca/ESP. Promotora de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.
Páginas243-266
A PESSOA JURÍDICA NO CONTEXTO
DA CRIMINALIDADE ORGANIZADA, O
COMPLIANCE PENAL E A CORRESPONDENTE
INSUFICIÊNCIA LEGISLATIVA BRASILEIRA
Júlia Flores Schütt
Mestre e Doutoranda em Direito pela Universidade de Salamanca/ESP. Promo-
tora de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.
Sumário: 1. Uma “nova” realidade que demanda evolução no uso de ferramentas voltadas ao
combate à impunidade no âmbito criminal – 2. Direito premial e compliance penal – 3. Aná-
lise crítica: por que a preferência pela tutela do bem jurídico meio ambiente ecologicamente
equilibrado? – 4. Conclusão.
1. UMA “NOVA” REALIDADE QUE DEMANDA EVOLUÇÃO NO USO
DE FERRAMENTAS VOLTADAS AO COMBATE À IMPUNIDADE NO
ÂMBITO CRIMINAL
A impunidade de um culpado corresponde à punição de um inocente: a
sociedade que não pune o agente criminoso termina por sancionar inocentes.1
Somente a adoção de uma política de tolerância zero com a delinquência é
capaz de inibir/reduzir a banalização das práticas criminosas. Os tipos penais são
legislados não para servir de enfeite,2 mas para concretizar uma política estatal
1. Mário Ferreira dos Santos já destacava que a “benevolência crescente vai cercando o criminoso, e há
uma tendência para considerá-lo apenas como um doente mental”. Tende-se “a transformar o homem
num feixe de reexos, numa coisa que reage a outras coisas, e não num ser que dispõe de inteligência e
de vontade”. SANTOS, Mário Ferreira dos. A inversão vertical dos bárbaros. São Paulo: É Realizações,
2012. p. 86.
2. Direito penal simbólico ou “de enfeite” consiste na utilização demagógica da ciência penal. É quando o
direito penal serve de instrumento para aprovar leis mais severas – geralmente após fatos que causam
comoção social – não em razão necessariamente da sua gravidade intrínseca, mas, especialmente, para
ns de divulgação midiática, que, na prática, acabam sendo inócuas porque o sistema penal como um
todo é incapaz de lidar de forma ecaz com a crescente criminalidade sem evolucionar em termos de
técnicas processuais que lhe possam alcançar garantias. Sobre o tema, Queiróz: “Digo simbólico porque
a mim me parece claro que o legislador, ao submeter determinados comportamentos à normatização
penal, não pretende, propriamente, preveni-los ou mesmo reprimi-los, mas tão só infundir e difundir,
na comunidade, uma só impressão – e uma falsa impressão – de segurança jurídica. Quer-se, enm,
por meio de uma repressão puramente retórica, produzir, na opinião pública, uma só impressão tran-
quilizadora de um legislador atento decidido” (QUEIROZ, Paulo. Sobre a função do juiz criminal na
vigência de um direito penal simbólico. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n. 74, p. 09, jan. 1999).
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de segurança pública, ou seja, são criados para serem, na prática usados, quando
identicado o ato criminoso que a eles corresponda; não podem fazer as vezes
de um cenário.3 Relevar o responsável por um ato criminoso equivale punir o
cidadão honesto (ou, ainda, a pessoa jurídica que honra com seus deveres legais)
e, ao mesmo tempo, aquele dizer: do it again.4
Em extremo oposto daquilo a que visa o Estado, ou seja, combater a crimi-
nalidade valendo-se dos métodos o mais ecientes possível – sempre atentando,
evidentemente, aos direitos e às garantias dos cidadãos, aqueles que se dedicam
ao crime objetivam identicar instrumentos capazes de lhes outorgar maiores
lucros advindos da atividade criminosa com a menor chance de revelação e da
consequente punição. Assim, pode-se armar que a busca por instrumentos/
meios mais ecazes tanto pelo lado de quem objetiva a segurança pública como
por quem almeja a impunidade com a prática criminosa é incessante. São forças
empenhadas em sentidos diametralmente opostos: a do Estado por meio de seus
agentes responsáveis pela manutenção da segurança pública5 e a dos delinquentes,
que atuam de forma individual ou por meio de conjugação de esforços, ou melhor,
por meio de organizações6 criminosas.
A criminalidade organizada, nestas últimas décadas, objetivando, portanto,
apurar suas “técnicas” delituosas, identicou na pessoa jurídica7 uma excelente
3. Sobre a insuciência daquilo que se concebe como direito penal simbólico, Dipp: “A questão do crime,
efetivamente, não é quantitativa: não se solve pelo número de leis nem pelo esmero descritivo quanto
às ações incrimináveis. (...)”. E, continua o autor: “[uma lei simbólica] promete a paz pública com a só
visão de letrinhas imperatórias estampadas ritualmente na imprensa ocial (...)”. (DIP, Ricardo. Crime
e castigo. Campinas: Millenium, 2002, p. 221).
4. A impunidade é um incentivo à delinquência. Sobre o tema, Volney Corrêa Leite de Moraes Jr. pontua,
ao reconhecer-se o criminoso como vítima da sociedade, “não apenas se lhe confere estatuto de isen-
ção penal, porque não faz sentido punir a vítima, como – o que é aterrador! – dá-se-lhe amplíssimo
salvo-conduto e outorga-se-lhe o direito de viver à margem da Lei”. MORAES JÚNIOR, Volney Corrêa
Leite de; DIP, Ricardo. Crime e castigo: reexões politicamente incorretas. São Paulo: Leopanto, 2018.
p. 140.
5. Diego Pessi, Promotor de Justiça brasileiro, ao abordar a necessidade de que o Estado crie instrumentos
capazes de dissuadir condutas delitivas de potenciais criminosos, pondera “‘Si vis pacem, para bellum’.
Em discurso memorável, proferido na Câmara dos Comuns no longínquo ano de 1938, Winston
Churchill reverberava o provérbio latino, ao alertar para o fato de que ‘a manutenção da paz depende
da acumulação de instrumentos de dissuasão contra o agressor’”.Em http://www.puggina.org/artigo/
convidados/violencia-associal-e-pacismo-suicida/12200 Acesso em: 06 nov. 2022.
6. Usa-se, neste momento, o termo “organizações criminosas” de forma genérica, ou seja, não se está a
referir ao conceito trazido pela Lei Federal brasileira 12.850/13, que, em seu § 1º do art. 1º, pontua:
“Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente
ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter,
direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais
cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional”.
7. “El debate político-criminal contemporáneo sobre la consideración de las personas jurídicas como
sujeto activo del delito se construye sobre el consenso de que los colectivos societarios deben ser objeto
de atención especíca por parte del derecho penal: Se han convertido en un sujeto autónomo, cotidiano
y protagonista en las interacciones sociales de las sociedades capitalistas avanzadas, por lo que están

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