A perspectiva de gênero no contexto da criminalidade organizada
Autor | Silvia Chakian |
Ocupação do Autor | Mestre em Direito Penal PUC-SP. Especialista Violência de Gênero Universidade de Tor Vergata ? Roma. Promotora de Justiça do Ministério Público de São Paulo. Coordenadora Núcleo de Atendimento às Vítimas de Violência e Familiares ? NAVV. Coordenadora Ouvidoria das Mulheres. Autora da obra: A Construção dos Direitos das Mulheres (2. ed. Lumen... |
Páginas | 79-102 |
A PERSPECTIVA DE GÊNERO NO CONTEXTO
DA CRIMINALIDADE ORGANIZADA
Silvia Chakian
Mestre em Direito Penal PUC-SP. Especialista Violência de Gênero Universidade
de Tor Vergata – Roma. Promotora de Justiça do Ministério Público de São Paulo.
Coordenadora Núcleo de Atendimento às Vítimas de Violência e Familiares –
NAVV. Coordenadora Ouvidoria das Mulheres. Autora da obra: A Construção
dos Direitos das Mulheres (2. ed. LumenJuris); Coautora das obras: Crimes
contra Mulheres (5. ed. JusPodivm) e Crimes contra Crianças e Adolescentes
(ed. Juspodivm); Coordenadora da obra Ministério Público Estratégico – v. I,
Violência de Gênero (ed. Foco).
Sumário: 1. Introdução – 2. Construção histórico-social dos estereótipos de gênero – 3. An-
tropologia criminal e criminologia: breves apontamentos – 4. Alguns contextos de ingresso
das mulheres no crime – 5. Crimes mais comuns e a participação das mulheres no PCC – 6.
Julgamento e encarceramento – 7. Considerações nais – 8. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Este artigo é fruto de inquietações que me acompanham desde os início dos
meus estudos sobre as questões de gênero. Depois de anos atuando em promotorias
criminais por onde tramitam casos de homicídios, roubos, latrocínios, trácos de
entorpecentes, sequestros etc., me concentrei nos estudos de gênero ao assumir
a promotoria de enfrentamento à violência de gênero, doméstica e familiar con-
tra a mulher. E num paradoxo que é apenas aparente, muitas das pesquisas que
me orientaram na compreensão do fenômeno da violência contra as mulheres,
também me permitiram reetir de maneira crítica sobre as especicidades da
criminalidade feminina, assim como as diculdades que ainda temos em tratar do
tema da participação de mulheres nas organizações criminosas, quando assumem
a autoria de crimes graves, inclusive de natureza hedionda.
Prova disso é a carência de doutrina especíca sobre a temática. Ao contrário
do que acontece quando a vítima é mulher, quando proliferam obras, artigos e
jurisprudência sobre o assunto, pesquisar sobre a mulher autora de crime é um
mergulho no escuro. A doutrina majoritária especializada nos estudos do fenô-
meno criminológico em geral não o trata sob a perspectiva de gênero, enquanto
a produção doutrinária sobre gênero costuma se concentrar na mulher exclusi-
vamente sob o prisma da vitimização.
Os poucos estudos sobre criminalidade feminina até a metade do século
XX tiveram como base as teorias fundadas na escola positivista e na antropologia
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criminal, marcadas pelo determinismo biológico e preconceitos, uma vez que a
presença da mulher na sociedade era relacionada exclusivamente ao seu papel de
esposa e mãe. Até um passado recente a mulher na criminologia foi uma variável,
não aparecendo como sujeito, razão pela qual os estudos sempre estiveram muito
aquém daqueles direcionados à criminalidade masculina. A mudança começa a
aparecer em 60 e 70, exatamente com a contribuição do pensamento feminista.
Somente a partir daí os estudos sobre as mulheres em conito com a lei passam
a ser considerados um campo de pesquisa.
De que forma as mesmas construções histórico-sociais que criaram e refor-
çaram as relações assimétricas de poder entre homens e mulheres impactam a
maneira como elas se relacionam com o mundo do crime? Estereótipos de gênero
contribuem para uma visão mais condescendente ou mais incriminadora em
relação às mulheres autoras de crime? É possível dissociar a questão de gênero
dos contextos mais comuns de ingresso das mulheres no crime? E quanto à par-
ticipação delas na maior organização criminosa do país, o Primeiro Comando da
Capital? A questão de gênero impacta a forma de julgamento e encarceramento
de mulheres autoras de crime?
Estas são algumas das indagações que impulsionam o artigo, que não tem
evidentemente a pretensão de percorrer todos os aspectos que permeiam a crimi-
nalidade feminina ou a participação das mulheres em organizações criminosas,
mas se propõe a um início de diálogo sobre a importância de olhar para esse
fenômeno crescente.
Para tanto, necessário assumir o desao de lidar com as ambiguidades, afas-
tar-se dos preconceitos e estereótipos generalizantes, que restringem a análise da
gura feminina sempre sob a dicotomia de dois únicos prismas: o de monstro
irrecuperável ou de vítima indefesa. A realidade é innitamente mais complexa.
2. CONSTRUÇÃO HISTÓRICO-SOCIAL DOS ESTEREÓTIPOS DE
GÊNERO
Foi na idade média, mais precisamente na chamada “Era das Bruxas”, que
se construiu o primeiro discurso criminológico sobre as mulheres. Eugenio Raúl
Zaaroni ressalta a importância histórica do Malleus malecarum, diploma jurí-
dico dessa época, como primeiro discurso sosticado de criminologia etiológica,
de direito penal, processual penal e de criminalística.1
Nesse período, o cristianismo se sedimentou na Europa. Graças às guerras
constantes, os homens passaram a ter que se manter longe de casa por períodos
1. Apud MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. São Paulo: Saraiva, 2014,
p. 20-21.
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