Compliance digital e a proteção do consumidor: accountability e abertura regulatória como novas fro nteiras do comércio eletrônico nos mercados ricos em dados

AutorJosé Luiz de Moura Faleiros Júnior
Páginas135-169
COMPLIANCE DIGITAL E A PROTEÇÃO DO
CONSUMIDOR: ACCOUNTABILITY E ABERTURA
REGULATÓRIA COMO NOVAS FRONTEIRAS DO
COMÉRCIO ELETRÔNICO NOS MERCADOS
RICOS EM DADOS
José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo – USP. Mestre em Direito pela
Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Especialista em Direito Processual Civil,
Direito Civil e Empresarial, Direito Digital e Compliance. Participou de curso de exten-
são em direito digital da University of Chicago. Bacharel em Direito pela Universidade
Federal de Uberlândia – UFU. Associado Fundador do Instituto Avançado de Proteção
de Dados – IAPD. Membro do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade
Civil – IBERC. Advogado.
Sumário: 1. Introdução – 2. Novas tecnologias e os mercados ricos em dados – 3. A proteção
do consumidor para além dos limites regulatórios: políticas de integridade e governança como
estruturas complementares aos deveres de proteção; 3.1 O comércio eletrônico, sua regulação
e o alvorecer da ‘web 5.0’; 3.2 Perlização (proling) e proteção do ciberconsumidor: como
conciliar?; 3.3 Práticas comerciais abusivas baseadas em algoritmos preditivos: uma nova fron-
teira? – 4. Accountability e responsabilidade civil nas relações de consumo – 5. Considerações
nais – 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Novos usos e aplicações para a tecnologia disruptiva propiciam modelos inova-
dores para a exploração de atividades econômicas na Internet, desaf‌iando a dogmática
tradicional, que rege as relações de consumo, ao enfrentamento de contingências
igualmente inovadoras. Nesse contexto, o fenômeno da ‘datif‌icação’, identif‌icado
em volumes massivos de dados (Big Data) que são destinados a f‌inalidades variadas,
permitiu, no apogeu da Quarta Revolução Industrial, que fossem desenvolvidas
novas estruturas de mercado – os mercados ricos em dados, ou data-rich markets
– entrelaçadas e potencializadas por algoritmos capazes de apresentar respostas
praticamente instantâneas a partir de inferências que desaf‌iam a Ciência do Direito
para além da regulação.
O chamado compliance, entendido em sentido amplo como a estruturação dessas
inovadoras e disruptivas atividades em torno da mais ampla governança corporativa
e por programas de integridade aliados à devida diligência, representa um dos cami-
nhos profícuos para o f‌lorescimento de estruturas complementares aos deveres de
proteção já def‌inidos pela legislação estrita.
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A despeito da pretensa facultatividade, identif‌icada pela presença do verbo
“poder” (no plural, “poderão), na dicção do caput de seu artigo 50, a Lei Geral de
Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709, de 14 de agosto de 2018) parece indicar
adesão a essa tendência, pois trata expressamente dos programas de governança e
integridade no capítulo que, de forma mais ampla, se reporta à segurança de dados.
Trata-se do que a doutrina vem designando compliance digital, em reconhecimen-
to à necessidade de tutela das relações jurídicas para além da regulação hermética e
dependente do labor legislativo. Para os f‌ins desse breve ensaio, analisar-se-á o papel
do assim chamado compliance digital para a estruturação de deveres no comércio
eletrônico, para a prevenção às práticas abusivas relacionadas à perf‌ilização (prof‌iling)
e para o controle de abusos relacionados ao implemento de algoritmos preditivos,
nem sempre f‌iscalizáveis e auditáveis.
2. NOVAS TECNOLOGIAS E OS MERCADOS RICOS EM DADOS
Uma lei ref‌letirá as conjunturas sociais de seu tempo, tutelando contingências
que correspondam à realidade e aos desaf‌ios da época. Entretanto, não há precedentes
para o ritmo exponencial da evolução tecnológica que marcou o século XX, aceleran-
do processos de transformação social em todas as áreas e propiciando mudanças no
modo de condução da economia, da política, da cultura, das interações, do trabalho,
dos negócios e dos mercados1.
Todo tipo de novo aparato desenvolvido a partir da eletrônica contribuiu para a
transformação da sociedade, da ciência, do tempo e dos modos para a difusão de novas
culturas, o que ampliou o leque de possibilidades para a reformulação de bases da
estrutura social do novo século2. O que não se tinha como dimensionar era o impacto
que a invenção dos microchips teria na formação de uma sociedade “pós-industrial”3,
marcando o início da Terceira Revolução Industrial: a revolução da informática.4
O incremento da capacidade computacional dos microprocessadores a cada dois
anos, dando origem à hoje intitulada ‘Primeira Lei de Moore’5, se tornou mecanismo
1. Em resumo, pode-se “[a] gênese do direito do consumidor remonta às sociedades capitalistas centrais,
visualizadas em países como Estados Unidos da América, Inglaterra, Alemanha e França”. ROSA, Luiz
Carlos Goiabeira; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; VERSIANI, Rodrigo Luiz da Silva. A proteção do
consumidor diante das práticas publicitárias abusivas do comércio eletrônico. Revista da Faculdade Mineira
de Direito, Belo Horizonte, v. 23, n. 45, p. 235-255, jan./jun. 2020, p. 238. No entanto, seu recrudescimento
se deu em compasso com os anseios por justiça social que simbolizaram o século XX, tendo na mensagem
proferida por John F. Kennedy ao Congresso norte-americano, em 15 de março de 1962. MIRAGEM, Bruno.
Curso de direito do consumidor. 5. ed. São Paulo: Ed. RT, 2014, p. 38.
2. Para maiores detalhes, ver: SERRES, Michel; LATOUR, Bruno. Conversations on Science, culture, and time.
Tradução do francês para o inglês de Roxanne Lapidus. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1995.
3. Cf. BELL, Daniel. The coming of the post-industrial society: a venture in social forecasting. Nova York: Basic
Books, 1976.
4. VENERIS, Yannis. Modelling the transition from the industrial to the informational revolution. Environment
and Planning A: Economy and Space, Londres, v. 22, n. 3, p. 399-416, mar. 1990, p. 310.
5. Em 1965, Gordon Moore identif‌icou uma tendência de duplicação do potencial de processamento e arma-
zenamento dos microchips, que ocorre até os dias atuais em função da nanotecnologia, a cada dois anos.
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de regulação econômica e controle do ritmo da evolução tecnológica6 e elemento
precursor de temas fundamentais da disciplina consumerista hodierna, como a ob-
solescência programada.
Erik Jayme, por exemplo, destaca a extinção das fronteiras na sociedade da
informação, na medida em que “qualquer um pode facilmente se libertar das amar-
ras de sua existência limitada: velocidade, ubiquidade, liberdade; o espaço, para a
comunicação, não existe mais.”7
Essa transformação foi analisada por Pérez Luño, inclusive, quanto a seus
impactos sobre o direito, citando os seguintes modelos: (i) a ‘informática jurídica
documental’ (ou ‘teledocumentação jurídica’), relativa ao tratamento automatizado
das fontes de conhecimento jurídico (legislação, doutrina e jurisprudência); (ii) a
‘informática jurídica decisional’ (ou ‘sistemas de expertise jurídica’), que se refere às
fontes de produção jurídica por meio da elaboração informática de fatores lógico-for-
mais que conf‌luem ao processo legislativo e às formação das decisões judiciais; (iii)
a ‘informática jurídica de gestão’ (também ‘of‌imática’ ou ‘burótica’), que diz respeito
aos processos de organização da infraestrutura ou dos meios instrumentais pelos
quais se gerencia o direito.8 Porém, a mudança de paradigma vislumbrada desde o
início deste novo período decorre de outro elemento essencial: a informação.
A constatação de que a informação se tornaria o substrato mais importante (e de
maior valor) da sociedade foi resultado de ref‌lexões que a Sociologia e a Economia
apontaram muito antes que a evolução disruptiva se materializasse.
Escritos da década de 1960 já apontavam, em um momento no qual a eletrônica
se desenvolvia aceleradamente, uma mudança de paradigma que se concretizou no
f‌inal do século XX. Foram os trabalhos pioneiros de Yoneji Masuda, no Japão, e de Fritz
Machlup, nos Estados Unidos da América, que consagraram o conceito sociológico de
‘sociedade da informação’9. Foram necessárias mais de três décadas, porém, para que
Para mais detalhes, consultar seu famoso artigo: MOORE, Gordon E. Cramming more components onto
integrated circuits. Electronics, Nova York, v. 38, n. 8, p. 1-4, abr. 1965. Porém, cumpre mencionar que uma
outra proposta, chamada por muitos de ‘Segunda Lei de Moore’ ou de ‘Lei de Moore/Rock’ (em menção
a Gordon Moore e Arthur Rock), já indicava que os custos para esse incremento computacional também
dobrariam, mas a cada três ou quatro anos. Em algum momento, esses valores haverão de se equivaler, e a
previsão é de que isso ocorra em 2023, tornando fundamental a disseminação do processamento descen-
tralizado, viabilizado pela tecnologia 5G. Para mais detalhes, ver ROSS, Philip E. 5 Commandments. IEEE
Spectrum, 2003. Disponível em: https://spectrum.ieee.org/semiconductors/materials/5-commandments.
Acesso em: 20 dez. 2020.
6. KEEN, Andrew. How to f‌ix the future. Nova York: Atlantic, 2018, p. 11.
7. JAYME, Erik. O direito internacional privado do novo milênio: a proteção da pessoa humana face à globa-
lização. Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGDir./UFRGS, Porto Alegre, v. 1, n. 1, p.
133-146, mar. 2003, p. 134.
8. PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Manual de informática y derecho. Barcelona: Ariel, 1996, p. 22.
9. Há certa controvérsia sobre as origens da expressão, havendo quem defenda que autores norte-americanos
foram os primeiros a tratar de uma futura “sociedade da informação” em trabalhos dos anos 1960 e 1970,
especialmente Fritz Machlup, em sua obra The production and distribution of knowledge in the United Sta-
tes, de 1962. Porém, há quem sustente que a expressão foi primeiramente utilizada pelos doutrinadores
japoneses Kisho Kurokawa e Tudao Umesao, na década de 1960, mas com efetiva conceituação a partir dos
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