Dignidade da pessoa humana

AutorCleyson de Moraes Mello
Ocupação do AutorVice-Diretor da Faculdade de Direito da UERJ. Professor do PPGD da UERJ e UVA. Coordenador do Curso de Direito do UniFAA. Professor Adjunto do Departamento de Teorias e Fundamentos do Direito (UERJ). Advogado
Páginas411-459
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Capítulo 19
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
19.1 CONSTRUÇÃO HISTÓRICA
A análise da construção histórica da dignidade humana se impõe
como necessário, pois existe uma distinção entre dignidade (a dignitas
romana ou expressões gregas) como valor, honra e apreço e a expressão
dignidade da pessoa humana como inerente à própria condição humana.
Aquela é condicional, transitória, inigualitária e contingente; esta é
universal e incondicional. A dignidade como valor, honra e apreço se
refere a uma postura pessoal objetivamente apreciada pela sociedade; já a
dignidade referida a condição humana possui caráter polissêmico e aberto
encontrando-se em estado permanente de mutação e desenvolvimento ao
longo do tempo e do espaço que está em constante concretização e
delimitação pela práxis constitucional.615 Daí a importância da distinção,
pois ambas andam de mãos dadas nos dias atuais: ora a expressão
dignidade pode ser utilizada como qualidade, apreço ou status social; ora
pode ser entendida como ideia de igual dignidade inerente a todo e
qualquer ser humano, especialmente, incorporada nos diplomas jurídico-
constitucionais do segundo pós-guerra.
Na Roma antiga, a expressão dignitas estava relacionada ao
status social do indivíduo na sociedade, tais como honra, respeito,
deferência e consideração social até mesmo pela função pública que o
sujeito exercia na comunidade. Era uma espécie de status privilegiado
particular que o indivíduo ostentava no seio da sua comunidade.
De acordo com Ingo Sarlet, “no pensamento filosófico e político
da antiguidade clássica, verificava-se que a dignidade (dignitas) da
pessoa humana dizia, em regra, com a posição social ocupada pelo
indivíduo e o seu grau de reconhecimento pelos demais membros da
615 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O p rincípio da dignidade da pessoa humana e a
exclusão social. In: Revista interesse público. Belo Horizonte. n. 4. 1999. p. 24.
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comunidade, daí poder falar-se em uma quantificação e modulação da
dignidade, no sentido de se admitir a existência pessoas mais dignas ou
menos dignas. Por outro lado, já no pensamento estóico, a dignidade era
tida como a qualidade que, por ser inerente ao ser humano, o distinguia
das demais criaturas, no sentido de que todos os seres humanos são
dotados da mesma dignidade, noção esta que se encontra, por sua vez,
intimamente ligada à noção de liberdade pessoal de cada indivíduo (o
homem como ser livre e responsável por seus atos e seu destino), bem
como a ideia de que todos os seres humanos, no que diz com a sua
natureza, são iguais em dignidade. Com efeito, de acordo com o
jurisconsulto político e filósofo romano Marco Túlio Cícero, é a natureza
quem descreve que o homem deve levar em conta os interesses de seus
semelhantes, pelo simples fato de também serem homens, razão pela qual
todos estão sujeitos às mesmas leis naturais, de acordo com as quais é
proibido que uns prejudiquem aos outros, passagem na qual (como, de
resto, encontrada em outros autores da época) se percebe a vinculação da
noção de dignidade com a pretensão de respeito e consideração a que faz
jus todo ser humano. Assim, especialmente em relação a Roma
notadamente a partir das formulações de Cícero, que desenvolveu um
compreensão da dignidade desvinculada do cargo ou posição social é
possível reconhecer a coexistência de um sentido moral (seja no que diz
às virtudes pessoais do mérito, integridade, lealdade, entre outras, seja na
acepção estóica referida) e o sociopolítico de dignidade (aqui no sentido
da posição social e política ocupada pelo indivíduo).”616
Dessa maneira, é possível afirmar que os primórdios da dignidade
da pessoa humana encontram-se na antiguidade clássica e o seu sentido e
alcance estava relacionado à posição que cada indivíduo ocupava na
sociedade. Como dito acima, a palavra dignidade provém do latim dignus
que representa aquela pessoa que merece estima e honra, ou seja, aquela
pessoa que é importante em um grupo social.
No período medieval, a dignida de da pessoa humana passou a
entrelaçar-se aos valores inerentes à filosofia cristã. Melhor dizendo: a
ideia de dignidade passa a ficar vinculada a cada individuo, lastreada no
616 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos
direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria dos
Advogados; 2011, p. 34-36.
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pensamento cristão em que o homem é criação de Deus sendo salvo de
sua natureza originária por Ele e possuindo livre arbítrio para a tomada de
suas decisões. Severino Boécio (480-524) é o divisor de águas de dois
tempos: a antiguidade e o medievo. Boécio é, pois, o precursor da
definição filosófica de pessoa (humana), embora seu desenvolvimento
pleno tenha se dado na metade do século XIII. O seu contributo foi situar
a pessoa humana no horizonte da racionalidade a partir de sua condição
de singularidade. A partir de Boécio, a noção de pessoa como substância
individual e racional elevou o ser humano a uma nova esfera de
dignidade e responsabilidade, implicando em nova perspectiva de ser e
estar no mundo.
De acordo com Savian Filho617 e Ricardo Antonio Rodrigues618,
“Boécio elabora no capítulo III, do texto Contra Eutychen et Nestorium a
definição de Persona que se tornará clássica no pensamento medieval e
moderno. Já presente no contexto das controvérsias teológicas dos
primeiros séculos, em oposição com natura (physis) e essentia (ousia),
persona torno-se palavra central também para a antropologia filosófica e
teológica. Para um breve histórico dos principais passos da evolução do
conceito convém considerar quesempre controvérsias em torno dessa
palavra, mas que passou por seu significado ligado ao teatro; sentido de
máscara, inclusive ligada a antiguidade Greco-romana do culto à
divindade Perséfone, onde a tal objeto se chamava phersu, e era usado
nos rituais religiosos; depois o próprio sentido do teatro, inclusive é essa
conotação mais aproximada se considerarmos a língua grega. O sentido
geral dos romanos é que persona não era apenas o objeto em si, mas
também o papel desempenhado por cada ator e ligando ao Direito e ao
sentido político, tal máscara não caracterizava algo de essencial, pois era
a expressão do papel mutável e não-essencial exercido por quem a usava.
Tinha como uma conotação de personalidade no sentido do não essencial.
Isso em se tratando do século I. Já para os gregos prosopón tinha uma
conotação que transcendia o aspecto gramatical, jurídico, religioso, e
fundava-se num caráter mais filosófico de insurreição contra o trágico da
617 BOÉCIO. Escritos (OPUSCULA SACRA). Tradução, introdução, estudos
introdutórios e notas Juvenal Savian Filho. Prefácio de Marilena Chauí. São P aulo:
Martins Fontes, 2005, p.225-227.
618 RODRIGUES, Ricardo Antonio. Severino Boécio e a Invenção F ilosófica da
Dignidade Humana. In: Seara Filosófica. N. 5, Verão, 2012, p. 3-20.

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