Hermenêutica jurídica e interpretação

AutorCleyson de Moraes Mello
Ocupação do AutorVice-Diretor da Faculdade de Direito da UERJ. Professor do PPGD da UERJ e UVA. Coordenador do Curso de Direito do UniFAA. Professor Adjunto do Departamento de Teorias e Fundamentos do Direito (UERJ). Advogado
Páginas335-366
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Capítulo 14
HERMENÊUTICA JURÍDICA E INTERPRETAÇÃO
DO DIREITO
Não poderia iniciar este capítulo sem destacar de pronto os
ensinamentos dos maiores expoentes e pesquisadores de Hermenêutica
Jurídica do Brasil:
Na realidade, não se trata de subsumir um fato a uma idéia geral, uma vez que, a
nosso ver, a idéia da norma já nasce, para o intérprete, concreta, e concreta,
justamente, porque adstrita ao fato que se compreende. A compreensão não é, então,
propriamente um método, na qualidade de condição técnica de um fazer, mas um
processo que verificamos no seu acontecer e que tem como pressuposto o estar aí, ou
seja, o particular de uma tradição.479
(Margarida Maria Lacombe Camargo)
A compreensão é condição de possibilidade para a interpretação. Compreend er
não é um modo de conhecer, mas um modo de ser. Definitivamente co mpreender
(e, portanto, interpretar não depende de um método; por isso, com a
hermenêutica da faticidade (fenomenologia hermenêutica), salta-se da
epistemologia da interpretação para a ontologia da compreensão.480
(Lenio Luiz Streck)
14.1 RACIOCÍNIO APODÍCTICO E RACIOCÍNIO DIALÉTICO
A ciência do direito foi envolvida pelo formalismo lógico
(predominância dos padrões matematizantes das ciências naturais) cuja
onda do cartesianismo481 e a manifesta preferência dada aos métodos
479 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação Uma
Contribuição ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 39.
480 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica . 2. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2004. p. 250.
481 Fundado na doutrina de Descartes.
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matemáticos remonta ao século XVII e primeira metade do século XVIII.
O pensamento sistemático cuja estrutura formal do direito está
impregnada pode ser entendido, grosso modo, como um processo
silogísitico lógico-dedutivo (princípio da dedutibilidade) que através de
um simples movimento mecanicista de subsunção do fato a norma
obtemos a conclusão necessária.482
Ocorre que a lógica formal mais adequada às ciências naturais
ou exatas, normalmente é utilizada no processo silogístico (premissa
maior, premissa menor e conclusão) de decisões judiciais e muitas vezes
não é capaz de fornecer fundamentos e resultados satisfatórios as
referidas soluções.
Para compreendermos os diversos pensamentos jurídicos
devemos remontar a Aristóteles que apresenta os seguintes tipos de
raciocínio: (Top. I. 1.2)
1) Uma apodexis, que existe quando se obtém um raciocínio
partindo de proposições primeiras ou verdadeiras ou
daquelas cujo conhecimento procede, por sua vez, de
proposições primeiras ou verdadeiras; Este pertence ao
domínio particular da filosofia.
2) Um raciocínio dialético, que é o que se obtém partido de
proposições conforme as opiniões aceitas (Top. I 1.4). Este
pertence ao campo da arte da argumentação (topoi)
3) Um raciocínio erístico (ou sofístico) é o que se funda em
proposições que parecem estar conforme as opiniões aceitas,
mas não o estão de fato, ou aquele que infere na aparência de
proposições conforme as opiniões aceitas ou que parecem
conforme às opiniões aceitas (Top. I 1.6)
4) Pseudo-raciocínios que se formam com base em
proposições especiais de determinadas ciências (Top. I 1.8)
482 Vale destacar que a ciência jurídica (ciências do e spírito) é muito mais consentânea
com a lógica dialética que trabalha com o princípio da contradição (a concepção e
percepção do mundo é sempre contraditória). Neste caso a contradição é imanente e
provoca o processo de mudança através da TESE (ordem-afirmação), ANTÍTESE
(negação da ordem) e SÍNTESE (Superação da antítese).
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A ciência apodítica (demonstrativa) foi estudada por Aristóteles
em sua obra chamada Segundos Analíticos, onde a demonstração, isto é, o
silogismo científico, tem lugar de destaque através das premissas
(verdadeiras e primeiras) que são as causas necessárias e suficientes da
conclusão. O modelo dessa ciência é a geometria razão pela qual a
modelagem matematizante se destaca com a lógica formal.
Descartes, Leibniz e Espinoza, filósofos racionalistas, propunham
que para uma racionalidade fazer sentido e se justificar, dever-se-ia
utilizar uma linguagem matematizante. Buscava-se uma filosofia segura e
inabalável com verdades imutáveis. Espinoza pôs em prática o projeto
cartesiano de uma filosofia more geométrico (ambicionava elaborar uma
ciência onde todas as teses seriam evidentes). Predominaram, no
pensamento filosófico, a partir de Kant, a exatidão e a certeza científica,
que foram reduzidas à pura epistemologia. A física era o paradigma da
ciência, a base de nossa sociedade e da nossa imagem do homem. Contra
essa forma de pensar, puramente cientificista, que muitos filósofos se
insurgiram dos quais podemos citar: Nietzsche, Freud e Marx.
A lógica formal constitui um meio demonstrativo utilizado pelos
matemáticos, limitando o domínio do valor (axiologia). A pretensão de
construir um sistema científico ou filosófico neutro (neutralidade
axiológica kelseniana) constitui o sonho positivista. Vale destacar que o
espírito filosófico matemático é, por princípio, a-histórico. Daí, a
importância de ultrapassarmos o mito da infalibilidade da racionalidade
técnica-cartesiana e utilizarmos a racionalidade prática, onde o conceito
de temporalidade é inserido no conceito de ciência.
Segundo Enrico Berti,483 professor de História da Filosofia na
Universidade de Pádua, Aristóteles ao teorizar a ciência apodítica484 o faz
conforme um cientista cultor da geometria que, já estando de posse da
ciência em questão, se propõe a expô-la a outros, isto é, ensiná-la. A
essência do discurso é um monólogo, eis que os ouvintes permanecem
passivos somente apreendendo a verdade de determinado teorema.
Assim, vejamos as espécies de saber, segundo Aristóteles:
483 BERTI, Enrico. As Razões de Aristóteles. São Paulo: Loyola, 1998. p. 11.
484 Parte da lógica que tem por objeto a demonstração.

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