Direito fundamental de greve

AutorAugusto César Leite de Carvalho
Ocupação do AutorPossui mestrado em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará e doutorado em Direito das Relações Sociais
Páginas522-539

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13. 1 Conceito

Ao comentar a Constituição Italiana de 1947, ocorreu a Calamandrei traçar o modo como evoluiu o conceito de greve: inicialmente, a greve era um delito, transmudou-se em liberdade e, adiante, converteu-se em um direito. Como delito, era conduta descrita como crime, assim sucedendo no Código Penal brasileiro de 1890. Deixando de ser delito, foi concebida como a liberdade de não cumprir a obrigação contratual de trabalhar, sujeitando-se o empregado às consequências da mora, entre elas a dispensa por justa causa. Observa Mallet que a mudança é significativa quando passa a greve à categoria de direito:

O fato exterior não muda: há o não adimplemento. A qualificação jurídica é diversa, pois não há mora, nos termos do art. 476 do Código Civil. Segundo se escreveu, reconhecer a greve como direito é mais do que apenas proscrever sua tipificação penal. É ir muito além. Implica não a tratar como “desvalor civil e negocial”, ou seja, “como incumprimento do contrato”. A greve passa a ser tutelada e protegida, como um verdadeiro direito que se tem e cujo exercício o ordenamento jurídico ampara.1410

A greve, que nasceu como um fato social, interessa agora como um conceito jurídico, pois do contrá-rio não se a compreenderá como um direito. E se é certo que todo conceito remete a um significado, há conceitos cujos significados transbordam a mera ontologia dos fatos ou fenômenos a que se referem para revelar, além do que vemos no mundo sensível, a causa ou o im que a conduta humana assim retratada pretende alcançar. Quando o legislador deiniu a greve como a “suspensão coletiva, temporária ou pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de serviços a empregador”1411, não a autorizou por qualquer motivo nem a permitiu com vistas à cessação deinitiva da atividade empresarial.

A greve é um conceito que remete a um fato (a paralisação da atividade), a uma causa (a defesa de um interesse coletivo) e a um im (o retorno à normalidade com condições mais justas de trabalho). Trata-se, portanto, de conceito que tem conteúdo ontológico e teleológico.

Logo, a alusão, no conceito legal, à temporariedade da suspensão do trabalho deve ser associada à expectativa de que a atividade empresarial seja restabelecida, pois não há greve se os trabalhado-res desejam eliminar, de uma vez para sempre, os seus postos de trabalho, a empresa enim. Nessa digressão se aloja também o componente inalístico do conceito de greve, pois a greve (típica) deve visar à recomposição das condições de trabalho em um padrão mais justo ou equânime, impedindo assim a degeneração do ambiente laboral.

13. 2 A greve e o meio ambiente de trabalho

A identificação da greve com a causa ambiental se revela mais nitidamente quando não se a contempla para atender a um motivo idiossincrático de determinado trabalhador, a um anseio pessoal ou egoístico. Nada a estranhar quando se tem em mente que, regra geral, as necessidades do empregado não o incomodam isoladamente, mas a todos que compartilham a mesma experiência, no ambiente da empresa. Não obstante a Constituição1412 e a lei1413 predigam que compete aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercerem o direito de greve e igualmente “sobre os interesses que devam por meio dele defender”, a proposta de ruptura da rotina laboral atende, na ordem dos

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fatos, ao interesse coletivo, ou ao interesse do trabalhador que empolga ou contagia a coletividade dos trabalhadores. Por justa que parecesse ser, a interrupção do trabalho por um empregado específico, para reverter uma situação adversa que isoladamente o inquietasse, não se coniguraria greve1414.

Estamos a cuidar, portanto, de um meio de resistência coletiva que visa à pacificação do ambiente de trabalho, proporcionando-lhe condições que não seriam espontaneamente oferecidas pelo empresário.

13. 3 A interação com os sistemas político e econômico por ocasião da greve

Sob a perspectiva da teoria política, a greve faz emergir a importância do princípio democrático. Assim como se dá em outros setores da sociedade civil politicamente organizada, entrega-se a resolu-ção do conlito coletivo à própria coletividade, pondo-se freio ao poder social que se estaria exercendo em rota de colisão com o ideal de uma sociedade livre, justa e solidária. A ruptura da normalidade, no ambiente de empresa, serve para que ele se deixe contaminar pelo princípio maior da democracia, conjugando ainal liberdade e participação.

Sob o prisma puramente econômico, tem-se airmado que os provedores de todos os outros fato-res de produção (insumos ou matéria-prima, capital e tecnologia) barganham o preço do que fornecem para a constituição e desenvolvimento da empresa, revelando-se a greve como o momento único no qual a oferta de trabalho é represada para que seu custo seja também renegociado. O provedor de trabalho humano decide não mais se resignar ante a dominação do capital, expondo-se também aos riscos da negociação. Rompe-se com a lei da oferta e da procura com vistas ao reequilíbrio dos negócios jurídicos, ao menos daqueles que envolvem o trabalho humano.

13. 4 A decomposição do conceito de greve

Da greve se diz, portanto, que é ela um direito fundamental cujo exercício pressupõe a defesa de um interesse coletivo e a proposta de restabelecimento da normalidade com condições de trabalho mais justas, importando a suspensão temporária e pacífica do trabalho. Quando se submete esse conceito a decomposição ou análise, descerra-se a verdadeira face da greve, o seu instigante conteúdo jurídico. Tentemos desvendá-lo a partir de duas premissas: a de a greve ser direito fundamental e a de estar balizada, para cumprir o seu im social, pelo princípio da boa-fé objetiva.

Na sequência, será interessante analisar, à luz da fundamentalidade do direito de greve e de sua regência pelo princípio da boa-fé, o aspecto de a greve suspender o contrato de trabalho, especial-mente no que tange ao pagamento dos salários.

13.4. 1 A greve como direito fundamental – direito coletivo fundamental

Os direitos fundamentais se apresentam na forma mais evoluída do Estado de Direito, quando aqueles mesmos direitos naturais que mais adiante compuseram as pautas e declarações universais de direitos humanos se acomodam inalmente nas cartas constitucionais do século XX, exigindo dos estados nacionais o dever, mais que o compromisso, de atender a expectativas de abstenção ou de prestação indispensáveis à consecução dos valores e princípios mais caros da humanidade.

Os direitos humanos estão vocacionados ao desaio de serem universais em meio à diversidade cultural da era pós-moderna. Aparelham-se dos atributos da irrenunciabilidade, da incessibilidade e

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da imprescritibilidade pela singela mas sublime razão de serem positivados com a marca indelével da fundamentalidade. Em certa medida, os catálogos de direitos fundamentais seriam a contribuição mais valiosa da concepção positivista do direito – para ilustrar essa ideia, basta citar os arautos do garantismo jurídico e a preocupação de negarem o caráter meramente programático das constituições para nelas contemplarem princípios e regras aptos não apenas a emprestar validade ou invalidade ao regramento infraconstitucional, mas inclusive a suprir eventuais omissões normativas.

Há um ganho qualitativo inquestionável na caracterização da greve como direito fundamental, parecendo significativo dessa mudança de paradigma o aspecto de ela ter ocorrido por obra das constituições sociais que a partir da segunda década do século XX adicionaram aos direitos de liberdade civil e política os direitos sociais, nos catálogos de direitos fundamentais. O direito à greve, a exemplo dos direitos sociais à saúde, educação e moradia, é daqueles que podem ser percebidos em sua dimensão individual no que toca ao seu exercício, mas a sua titularidade remete normalmente a necessidades coletivas, que não se acomodam na latitude individual ou isolada de cada interessado.

É irme a convicção de que o empregado não pode, solitariamente, delagrar uma greve. Ao menos a deliberação pressupõe-se coletiva. A convocação dos trabalhadores para esse im, a deliberação sobre o início da greve e acerca dos meios a serem utilizados, bem assim sobre a terminação da parede, estão indiscutivelmente associados à dimensão coletiva do direito de greve. Não há controvérsia séria, na doutrina ou na jurisprudência, sobre caber ao sindicato, na forma de seu estatuto, “convocar [...] assembleia geral que deinirá as reivindicações da categoria e deliberará sobre a paralisação coletiva da prestação de serviços”. Assim o diz o art. 4º da Lei n. 7.783/89, rematando o seu § 2º que, na falta de entidade sindical, a assembleia geral dos trabalhadores interessados deliberará acerca da convocação e da cessação da greve, constituindo comissão de...

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