Dos limites e das excludentes da aplicação do direito estrangeiro

AutorPaul Hugo Weberbauer
Ocupação do AutorProfessor Associado de Direito Internacional Privado na Faculdade de Direito do Recife/UFPE
Páginas469-543
Capítulo 16
DOS LIMITES E DAS EXCLUDENTES DA
APLICAÇÃO DO DIREITO ESTRANGEIRO
16.1 REFLEXO DA SOBERANIA NO DIREITO INTERNACIONAL
PRIVADO
Antes de anal isarmos os limites e a s excludentes da aplicação do direi-
to estrangeiro, é importante que context ualizemos o fenômeno que dá ori-
gem a esses inst itutos que, de algum modo, interferem na solução de conf li-
to de leis: a soberania do Est ado nacional.
É um dos pilares do pensamento jurídico contemporâneo que cada
ordem jurídica naciona l é soberana, isto é, cada Direito naciona l é revestido
por um “manto místico” que confere i ndependência ao Estados e, no Direi-
to, confere a igualdade jurídica entre eles, igualdade esta que se ma nifesta
em dois grandes princípios das relações internacionais moder nas: a não in-
tervenção e a autodetermin ação dos povos.
Ocorre que a soberani a é um conceito místico de origem política que
remonta ao século XVI e t inha por fina lidade justificar a se paração do poder
eclesiástico (a Igreja) do poder do príncipe (o Estado), consolidando-se na
teoria do Estado moderno como elemento do poder a partir da Paz de Ves-
tefália de 1648, momento em que se tornou intrinsicamente relacionada à
própria ideia de Est ado.
No século XIX, essa associação se tornou ainda mais profunda, em
especial no momento em que apareceria uma nova forma de agir político
dos soberanos no campo internacional, a passagem da raison d’état para a
Realpolitik, tendo por consequência a expansão do Estado como fig ura cen-
tral das relações internacionais em detrimento dos indivíduos, das pessoas
– é a consolidação do Direito Inter nacional Público como Direito entre So-
berania s, Direito entre Estados.
Direito internacional privado.indd 469Direito internacional privado.indd 469 03/11/2021 19:56:2403/11/2021 19:56:24
470
Comentários sobre o Direito Internacional Privado Brasileiro
É nesse contexto que vai emergi r o que é concebido como a doutrina
do Domínio reser vado dos Estados, a expressão jurídica p rincipal da sobera-
nia em configurar como um instrumento do poder estatal de fazer suspen-
der e, até mesmo, impedir a aplicabi lidade de normas jurídic as não nacionais
(sejam internacionais ou est rangeiras), sob fundamento da conveniênci a po-
lítica daquelas norm as.
Simplificando, o domínio reservado dos Estados é a plataforma
sobre a qual se desenvolveu o que podemos denomina r de política jurídi-
ca, a criação de normas ju rídicas excessivamente indeter minadas (concei-
tos jurídicos indeterminados), cuja interpretação está sujeita a fatores
políticos, servindo dessa forma de instrumentos de legitimação jurídica
para agendas políticas.
Não sem razão, atualmente não contamos com uma jurisdição inter-
nacional compulsória, forte o suficiente para impor-se sobre os Estados na-
cionais, a ponto de encontrarmos na própria Cart a das Nações Unidas o ali-
cerce legal para a doutrina do domínio reservado: o art. 2 (7)711, também
conhecido como a cláusula de ju risdição doméstica.
A cláusula de jur isdição doméstica é a manifestação máxima de que,
em última in stância, caberá exclusiva mente a cada Estado nacional deliber ar
sobre determinados assuntos, independentemente de sua natureza, a ponto
de ignorar qualquer interferência externa ou tomar em consideração qual-
quer normativa inte rnacional envolvida712.
Os limites e a excludente de aplicação do Direito estrangeiro são um
desdobramento dessa cláus ula, dessa doutrina do Di reito Internacional Público
711 Artigo 2. A Organização e seus Membros, para a realização dos propósitos
mencionados no Art igo 1, agirão de acordo com os segui ntes princípios: (...) 7.
Nenhum dis positivo da presente Carta autori zará as Nações Unidas a inter vi-
rem em assuntos que de pendam essencialmente d a jurisdição de qualquer E s-
tado ou obrigará os Membros a submeterem tai s assuntos a uma solução, no
termos da presente Ca rta; este princípio, porém, não prejudicará a aplicação
das medidas coe rcitivas constantes no Capítu lo VII.
712 A respeito dos de sdobramentos dessa doutrina, s ugerimos a leitura da mi nha
dissertação: WEBERBAUER, Paul Hugo; AGOSTINHO DA BOAVIAGEM,
Aurél io. O Estado-Nação e a jur isdição internacional: a nálise das barreiras
para implementação de u ma jurisdição compulsóri a no direito internacional.
Dissertaç ão (Mestrado) – Progr ama de Pós-Graduação em Direito da Un iver-
sidade Federal de Per nambuco, Recife, 2006. 174 p. Disponível em: htt ps://re-
posito rio.ufp e.br/handle/ 12 3456789/4554.
Direito internacional privado.indd 470Direito internacional privado.indd 470 03/11/2021 19:56:2403/11/2021 19:56:24
471
DOS LIMITES E DAS EXCLUDENTES DA APLICAÇÃO DO DIREITO ESTRANGEIRO
no Direito Internac ional Privado, sendo melhor denominado de o problema da
imperativ idade das normas jurídic as na diversidade legislat iva.
O problema da imperatividade das normas jurídicas na diversidade
legislativa é uma questão envolvendo a hierarquia entre as normas emana-
das de um poder estat al nacional diante das nor mas internacionais, a proble-
mática das normas emanadas por um órgão legislativo nacional possuírem
maior imperativ idade que as normas decorrentes de compromissos inter na-
cionais daquele Estado a ponto de a própria extraterritorialidade de um di-
reito somente ser aceita (ou “obrigatória”) se forem ratificada s, incorporadas
ou, simplesmente, aceitas por aquela própria ordem ju rídica nacional.
Os limites e a exc ludente de aplicação do Direito estrangeiro são ma-
nifestações desse problema, pois consistem em reser vas soberanas que cada
ordem jurídica naciona l (lex fori) possui para i nterferir na aplicação do direi-
to estrangeiro por motivos de conveniência política, social, econômica ou
incompatibilidade ju rídica com a ordem nacional.
Nesse contexto podemos delimitar duas categorias de proteção orde-
namento jurídico nacional na solução do conflito de leis: a excludente do
Direito estra ngeiro e as limitantes na apl icação do Direito estrangeiro.
A excludente do direito estrangeiro consiste naqueles impedimentos
existentes em determinada ordem jurídica nacional que afastam, impedem
os efeitos ou excluem por completo a extraterr itorialid ade da norma estran-
geira e o substit uem pela norma nacional.
É pela excludente de direito estrangeiro que a jurisdição nacional
pode ignorar a própr ia solução do conflito de leis, impondo o direito nacio-
nal do foro sob argumento de existir violação a valores, costumes, normas
ou, simplesmente, a soberania n acional.
A excludente de Direito estrangeiro é agrupada em nossa disciplina
sob a designação do pri ncípio da ordem pública internacional.
Quanto aos lim ites da aplicação do direito estrangei ro, consistem em
determinadas situações as quais interferem ou no processo de solução de
conflito de leis ou na própria aplicação do direito estrangeiro incidente, in-
terferência que não exclu i a solução do conflito de leis, mas impõe limites a
sua atuação na juri sdição nacional por motivos de conveniência política, so-
cial ou econôm ica.
Configuram como limites à aplicação do direito estrangeiro os insti-
tutos das normas de aplicação imediata, a fraude à lei, o controle de consti-
tucionalidade do direito estrangeiro, o controle de convencionalidade e a
instit uição desconhecida.
Direito internacional privado.indd 471Direito internacional privado.indd 471 03/11/2021 19:56:2403/11/2021 19:56:24

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT