Lex rei sitae: os estatutos reais no direito internacional privado brasileiro

AutorPaul Hugo Weberbauer
Ocupação do AutorProfessor Associado de Direito Internacional Privado na Faculdade de Direito do Recife/UFPE
Páginas171-279
Capítulo 11
LEX REI SITAE: OS ESTATUTOS REAIS
NO DIREITO INTERNACIONAL
PRIVADO BRASILEIRO
11.1 OS ESTATUTOS REAIS OU O TRATAMENTO
DOS BENS COISAS NO DIREITO BRASILEIRO
11.1.1 Dos conceitos e das denições
Vamos agora ver o que se passa com as coisas. Estas, ou fazem parte do
nosso patrimón io, ou estão fora do nosso patrimón io. (Gaio, Livro II, 1233).
Quando estuda mos os manuais de Direito Internac ional Privado bra-
sileiro, é muito comum verif icarmos que a doutrina al i contida parece igno-
rar a questão do sign ificado bem ao analis ar o adágio lex rei sitae consa grado
no art. 8º, caput, da LINDB, mesmo qua ndo é sabido da polissemia do vocá-
bulo bem na Ciênc ia Jurídica.
Simplificando a questão, não há como entendermos o tratamento dos
bens no Direito Inter nacional Privado brasileiro sem compreender mos o con-
ceito de bem, para o qual podemos del imitar três sign ificados principai s.
O primeiro sig nificado corresponde ao seu uso comum, no qua l bem
é entendido como algo associado ao indivíduo, suas aspirações, sua morali-
dade e seus valores. Nesse sentido, bem compreende o d ireito à integridade
física, à fel icidade, ao amor – é tudo que se associa ao interior de uma p essoa,
tudo “aquilo que lhe constit ua suporte integrativo – sua i ndividualidade, sua
vida – não é propriamente um bem”234.
233 GAIUS. Instit uições: direito privado romano. Trad. J. A. Seg urado e Campos.
Lisboa: Fundaç ão Calouste Gulbenkia n, 2010, p. 165.
234 MELO, Albert ino Daniel de. Teoria geral dos ben s – um ensaio juríd ico. In: MEN-
DES, Gilmar ; STOCO, Rui (orgs.). Doutrinas essenciais: direito c ivil. Parte geral
– atos, fatos, negócios e ben s. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 1024, v. IV.
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Comentários sobre o Direito Internacional Privado Brasileiro
O segundo significado corresponde ao seu uso jurídico, ao conceito
jurídico que define o objeto de uma relação jurídica, consistindo em tudo
aquilo que pode compor o patri mônio de uma pessoa e ser objeto de direito
subjetivos: é o bem juríd ico – uma expressão ampla e genérica que compre-
ende “tudo que pode ser objeto da relação jurídica, sem disti nção de mate-
rialidade ou patrimonialidade”235.
E o último sig nificado é o que corresponde ao seu emprego no Dire i-
to Internacional Privado brasileiro: o bem como conceito genérico compre-
endendo a coisa, os anim ais e seus direitos decorrentes.
Aqui temos de lembrar do apagão doutr inário que existe em boa par-
te da doutrina civilista brasileira, a qual tem sérios problemas em delimitar
a relação entre bem e coisa, ao ponto de af irmar o absurdo de que a coisa
seria o gênero, enquanto o bem seria uma espécie de coisa, baseando-se no
fato do Código Civil em vigor tratar dos ben s na parte geral e o Direito das
Coisas na parte es pecial236.
Esse tipo de doutri na se contradiz em sua origem – se o bem está re-
gulamentado na parte geral e a coisa na parte especial do Código Civil, a
consequência lógica é a de que bem é o gera l, enquanto coisa é o específico.
Isso decorre da constatação de que a parte geral – na doutr ina original de
Teixeira de Freitas considera como melhor sistemática para um Código –
existe par a estabelecer as noções elementares para guia r as partes especiais,
servindo de prolegômenos pa ra estas237.
Nesse sentido, bem é a noção preliminar obrigatória par a compreen-
der o que é a coisa. Logo, temos:
Coisas
Obrigações
Empresa
Família
Sucessões
BENS Coisas
PARTE
GERAL
Lógica da codicação civil
235 PEREIRA, Caio Már io da S. Instituições de di reito civil. v. 1: Introdução ao
direito civ il. Teoria geral do direito. Atuali zado por Maria Celina Bodi n de
Moraes. 28. ed. Rio de Ja neiro: Forense, 2015, p. 337.
236 TARTUCE, Flávio. Direito civ il: lei de introdução e par te geral. 15. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2019, p. 331, v. 1.
237 FREITAS, Augus to Teixeira de. Consolidação d as leis civis. Brasíli a: Senado
Federal – Consel ho Editorial, 2003, p. CXII.
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LEX REI SITAE
Suspeitamos que o problema na doutrina brasi leira sobre essa questão
surgiu na ortodoxa utilização pelo Código Civil de 1916 da palavra “bem/
bens” em sua parte geral, não seguindo a lógica proposta por Teixeira de
Freitas em seu Esboço, o qual uti lizava coisa para designa r o que os Códigos
de 1916 e de 2002 denominaram bem, enquanto que na pa rte especial a divi-
são de Teixeira de Freitas consistia em direitos pessoais e direitos reais; en-
quanto a legislação de 1916 dividiu em família, as coisas, as obrigações e as
sucessões, e a legislação de 20 02 dividiu em obrigações, a empresa, a s coisas,
a famíl ia e as sucessões.
Outro ponto de confusão é que a expressão “bem jurídico” é uma
expressão muito mais ampla no Direito do que a expressão “coisa”, esta
que pode ser definida como “todos os objetos materiaes susceptíveis de
uma medida de valor”238, se associando a ideia alemã de Sa chen (coisas)239,
enquanto que aquele é um conceito dotado de alteridade, pois engloba
não só bens patrimon iais (sua variante de Direito Pr ivado), como também
a defesa de direitos, de interesses do indivíduo perante o Estado, ou “o
bem jurídico como o que assegura as expectativas normativas essenciais
frente a lesões”240 (o bem jurídico penal) – é o que os alemães denom inam
de Rechtsgut.
Destarte, temos que o conceito de bem jurídico não é limitado ao
Direito Civil , mas se trata de um conceito jurídico indeterm inado, do qual a
doutrina civ ilista é, tão-somente, uma pequena ram ificação.
Feita essa ressalva, podemos def inir que o emprego do bem no Dir ei-
to Internacional Privado brasi leiro é fundamentado na doutrina civilista,
denotando uma coisa ou um d ireito real.
Porém, diferentemente da doutr ina privatista naciona l, seu conceito é
ampliado, não se lim itando aos objetos materiais de valor patrimonia l, mui-
to menos às coisas corpóreas. Ent ram em seu conceito questões envolvendo
objetos incorpóreos (virtuais), bem como questões envolvendo propriedade
intelectual e, até cer to ponto, a questão envolvendo animais.
238 FREITAS, A. T. de. Código Civil – esboço. Rio de Janei ro: Typographia Uni-
versal de Laemme rt, 1860, p. 214.
239 A respeito, o § 90 BGB: “Sachen im Sinne d es Gesetzes sind nur körp erliche Gegenstän-
de” (“São consideradas coi sas para fins d a lei somente os objetos corpóreos”).
240 SIMÕES DE FARI AS, Angela. B em jurídico e exclus ão da antijuridic idade aplicada
à integridade física e à saúde. Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do
Recife, v. 83, n. 1, out. 2013. ISSN 2448-2307. Disponível em: <http s://periodicos.
ufpe.br/revistas/ACADEMICA/article/view/287/252>. Acesso em: 19 jul. 2019.
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