A eficácia da decisão trabalhista de reconhecimento de vínculo de emprego no direito previdenciário à luz da teoria do diálogo das fontes

AutorLorena de Mello Rezende Colnago/Ben-Hur Silveira Claus
Páginas141-153

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“Nenhum homem é uma ilha, completa em si mesma; cada homem é um pedaço do continente, uma parte do todo...a morte de cada homem me diminui, porque estou envolvido pela humanidade e, portanto, nunca perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.

(John Donne)

1. Notas introdutórias

Frutos dos movimentos operários e sindicais que marcaram a era inaugurada pela Revolução Industrial, no século XVIII, tanto o Direito do Trabalho como o Direito Previdenciário se sedimentaram como marco regulatório da civilidade humana. Ambos enfeixam extenso catálogo de direitos fundamentais que corporificam o projeto constitucional de construção de uma sociedade verdadeiramente justa, livre e solidária.

Enquanto o Direito do Trabalho (em sentidos material e processual) se debruça a imprimir à relação capital/trabalho subsídios mínimos – normativos, principiológicos e axiológicos – necessários e inderrogáveis com o propósito de embargar a reificação do ser humano, o Direito Previdenciário desloca para o epicentro de suas normatizações o homem em sua integralidade, dentro e fora do espaço fabril; em tempos de atividade e de inatividade; em momentos regozijantes como o nascimento; e também de amargo luto, nos casos de passamento.

Muito embora se apresentem como ramos autônomos da ciência jurídica, cada qual sustentado por regras, princípios e valores próprios, são, a todo momento, convocados a conjugar esforços mútuos, estreitando seus relacionamentos, a fim de dar conta da complexidade dos fenômenos criados pela sociedade moderna.

A carteira de trabalho nada mais é que do que a demonstração viva desse estreito diálogo. Sua anotação, numa penada apenas, dá ensejo ao nascedouro de duas relações: uma de natureza eminentemente empregatícia; e outra de natureza essencialmente previdenciária. O reconhecimento formal da relação de emprego

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integra o trabalhador no regime universal da seguridade social, porque passa a contribuir efetivamente para o seu fomento, qualificando-se, a um só tempo, como empregado e segurado do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS.

Não obstante, a par da proximidade das cordas sinfônicas que os instrumentalizam, em vários acordes se verifica notável descompasso, obtendo-se como resultado melodias dessintonizadas com as notas propostas, tal como aquela de um aspirante a músico aventurando-se em tocar as complexas sinfonias de Bach.

Exemplo clássico e prático dessa disfuncionalidade sistêmica consiste na ausência de reconhecimento da efetividade da sentença declaratória de existência do vínculo de emprego para fins de comprovação de tempo efetivo de serviço junto à autarquia federal.

Em tons singelos: ainda que reconhecida a relação de emprego, sacramentada por decisão judicial proferida em processo submetido ao crivo da Justiça do Trabalho, já acobertada pelo manto da coisa julgada, de nada vale para fins administrativos, na busca pelo reconhecimento do efetivo tempo de serviço. Necessária outra via crucis judicial, de competência da Justiça Comum (Estadual ou Federal), para que o tempo trabalhado seja computado.

Movimenta-se, em duas oportunidades, a máquina judiciária – que, a propósito, trabalha no ritmo da esteira de Ford, sem dar conta do volume de ações que sobrecarrega suas limitadas engrenagens – quando já se obteve, por via judicial, a declaração de existência do vínculo de emprego, corporificada em sentença trabalhista transitada em julgado.

Há, em verdade, uma ruptura da comunicação necessária e vital entre o Direito Processual do Trabalho e o Direito Previdenciário na contramão da nova hermenêutica inaugurada pela teoria do diálogo das fontes, cujo marco teórico se deve a Erik Jayme, na Alemanha, amplamente difundida em terras tupiniquins pela jurista Cláudia Lima Marques. Em apertada síntese, consiste a teoria do diálogo das fontes na interlocução das normas que compõem os distintos ramos jurídicos, complementando-se.

Em muito se assemelha ao fragmento da passagem desenhada pelo poeta inglês John Donne: “nenhum homem é uma ilha, completa em si mesma”.1 E assim o é porque Direito Processual do Trabalho e Direito Previdenciário, a despeito de sua inegável autonomia, são, sobretudo, vasos comunicantes que se abraçam continuamente, levando oxigênio às células que integram a bela e indivisível copa do Direito.

É dentro dessa perspectiva que o presente ensaio perscruta enveredar, na esperança de que esse diálogo possa inspirar os recônditos jurídicos de norte a sul, de leste a oeste, encontrando na concertação dos atores sociais campo fértil para germinar, crescer, criar forma e sedimentar-se no tempo. Mesmo porque tudo no cosmos se inicia a partir de um ponto. No caso, de uma palavra...

2. As incongruências do sistema de distribuição de competências no sistema judiciário brasileiro quanto à matéria previdenciário-trabalhista

A divisão de competências2 dentro da estrutura do Poder Judiciário revelou-se imperativa, em decorrência da crescente complexidade social e da multiplicidade de conflitos. Tornou-se necessária a criação de parâmetros de distribuição de demandas da forma mais equânime possível, a fim de que a prestação jurisdicional pudesse ocorrer com maior efetividade, eficiência e celeridade.

A esse respeito, entende Piero Calamandrei que “competência é acima de tudo uma determinação dos poderes judiciais de cada um dos juízes”3. Francesco Carnelutti defende que competência é “a medida da jurisdição ou ainda é a jurisdição na medida em que pode e deve ser exercida pelo juiz”.4 Portanto, em uma aná-lise sistêmica, a jurisdição é um todo e a competência é parte, fração.5

No decorrer dessa repartição, Giuseppe Chiovenda criou alguns critérios de divisão de competências que foram acolhidos pela doutrina processual brasileira e utilizados até os dias atuais. No que toca à questão em análise entre a matéria trabalhista e a previdenciária, interessam os seguintes critérios: (i) em razão da natureza da relação jurídica, chamada de material ou objetiva; e (ii) em razão da qualidade das partes envolvidas na

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relação jurídica controvertida, em razão da pessoa, chamada de pessoal.6

A Constituição da República de 1988 fixou competências distintas para apreciação e julgamento das matérias trabalhistas e previdenciárias. Nas lides submetidas ao crivo da Justiça do Trabalho, a natureza da relação jurídica controvertida é determinante para aferição da competência, em conformidade com o disposto no art. 114 e seus incisos.7 Já a competência em matéria previdenciária, sujeita ao processamento e julgamento pela Justiça Federal, decorre do fato de a composição da relação jurídica processual abranger pessoa jurídica federal, seja no polo passivo seja no polo ativo, à luz da disposição normativa catalogada no art. 109, inciso I da CR/88.8

A situação de conflitos de competência envolvendo a Justiça do Trabalho e a Justiça Federal, pela sua natureza absoluta9 e, portanto, de ordem pública, não comporta flexibilização procedimental, mesmo em assuntos conexos, relacionados e complementares, como é o caso da sentença judicial trabalhista que reconhece a relação de emprego e o efeito previdenciário relativo ao tempo de serviço.

Todavia, as sentenças proferidas pela Justiça do Trabalho, muito além de declarar a existência de direitos, sujeitam-se a regular procedimento de liquidação, aptas que estão à formação da coisa julgada. E mais: ao reconhecer a existência de vínculo de emprego, comina o empregador na obrigação de proceder ao registro na carteira de trabalho e previdência social, justamente para fins previdenciários.

Questão usual, entretanto, é a negativa de reconhecimento do valor probante da sentença judicial que declara a existência do vínculo de emprego, o que leva o trabalhador a ajuizar nova ação, porém, agora, de competência da Justiça Federal para que o tempo de serviço seja reconhecido. Há, em verdade, uma dupla atuação do Poder Judiciário com o mesmo objeto, em esferas competenciais distintas.

Essa verdadeira aberração na interpretação normativa e na utilização da jurisdição brasileira atua no esfacelamento do princípio da dignidade humana, em que a coisa julgada trabalhista não é reconhecida pelo Instituto Nacional do Seguro Social – INSS – e este se recusa a participar da lide pelo simples fato de ser uma autarquia federal, o que impõe o respeito ao comando normativo inserto no art. 109, inciso I da CR/88.

Essa situação gera uma antinomia que é denominada pela autora Nathalic Sauphanor, citada por Cláudia Lima Marques, “como a existência de uma incompatibilidade entre as diretivas relativas ao mesmo objeto”.10 Noberto Bobbio já havia previsto na teoria do ordenamento jurídico que a antinomia, “situação de normas incompatíveis entre si é uma dificuldade tradicional frente à qual se encontram os juristas de todos os tempos”, mas que o Direito não tolera.11

A repartição de competência constitucional inicialmente nasceu para lidar com a complexidade das relações sociais. Assim, as instituições passavam a fazer parte da racionalização formal que, para Max Weber, era um tipo de racionalidade que se concentrava, fundamentalmente, nos meios necessários à consecução das ações humanas em sociedade, ou seja, na melhor forma de se atingir determinados fins.12

Por isso a racionalização tecnicista, instrumental, tendencialmente neutra em termos de valores e emoções, era uma racionalização que...

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