Petição inicial: Narrativas, realidade e consequências

AutorFábio Rodrigues Gomes
Páginas77-101
PETIÇÃO INICIAL:
NARRATIVAS, REALIDADE E CONSEQUÊNCIAS
Fábio Rodrigues Gomes
Juiz Titular da 41ª VT/RJ, Mestre e Doutor em Direito Público pela UERJ, Professor
Adjunto de Direito Processual do Trabalho e Prática Jurídica da UERJ e Coordenador
Pedagógico da EJUTRA.
Sumário: 1. Introdução – 2. Era uma vez: o storytelling no processo do trabalho – 3. O processo-
surpresa: sem história e com pedidos invisíveis – 4. Teorizando sobre universos processuais
paralelos – 5. Consequências de uma história infeliz: as mudanças da realidade a fórceps
legislativo – 6. Conclusão – 7. Referências bibliográcas.
1. INTRODUÇÃO
Petição inicial, peça de ingresso ou peça exordial. Estes são alguns dos nomes
dados ao primeiro de muitos outros atos sequenciais que constituirão o processo1.
Trata-se do “exórdio” ou do início do discurso jurídico. É a partir deste começo, deste
ato de comunicação originário, que se estabelece a demanda, retira-se o Poder Judici-
ário da sua inércia institucional e def‌lagra-se a movimentação de todo o maquinário
estatal em busca de uma solução para o problema que lhe é apresentado. Af‌inal de
contas, se não foi possível a composição autônoma dos interesses em conf‌lito e os
meios alternativos não foram utilizados ou, se o foram, não se mostraram suf‌icientes,
só resta aos litigantes recorrerem ao processo judicial, a f‌im de darem um ponto f‌inal
ao imbróglio antes de se voltarem para as vias de fato.
No processo comum, a verbalização das pretensões em juízo vinha cercada de
cuidados formais, mas estas exigências foram bastante abrandadas com o novo Có-
digo de Processo Civil e as suas generosas brechas para que o erro, o lapso ou a má
redação pudessem ser corrigidos nos mesmos autos2. Entretanto, na esfera processual
trabalhista, parece que as coisas caminharam no sentido contrário.
De fato, a combinação de alguns fragmentos do novo CPC com a Lei nº 13.467/17
transformaram o processo do trabalho de maneira paradigmática. Parafraseando
Thomas Kuhn, na medida em que as anomalias criadas pelas clássicas teorias vão
se acumulando e diante de sua incapacidade de lidar com fenômenos ocorridos nas
suas entranhas, aduba-se o terreno para o surgimento das mais variadas crises e de
1. Cf., por todos, SCHIAVI, Mauro. Manual de direito processual do trabalho. 7ª ed. São Paulo: Ltr, 2014, p.
503-505.
2. Por exemplo, o art. 321 do CPC que impõe ao juiz de direito o dever de conceder prazo para emendar a
inicial e, não satisfeito, o dever de indicar com precisão o que deve ser corrigido ou complementado (criando
a carinhosa f‌igura da “babá processual”). Mais à frente retornarei a este ponto.
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novas ideias para resolvê-las3. Estas revoluções científ‌icas não acontecem vagarosa-
mente, a passo de tartaruga. Elas vêm num rompante, inf‌luenciadas pelos contextos
sociais, históricos e psicológicos do observador e levam de uma só vez toda a velha
estrutura teórica carcomida, a qual apenas aparentemente se mantinha de pé. E foi
precisamente isto o que se deu com o direito processual do trabalho.
Novos conceitos, novos procedimentos e novas crenças permeiam um renovado
processo do trabalho. As resistências a esta ruptura são previsíveis, e é bom que assim o
sejam, pois nem sempre a novidade é para melhor. É importante questioná-la, criticá-la
e, principalmente, testá-la na prática e monitorar as suas consequências. Sem isso, tor-
na-se impossível o falseamento de suas hipóteses ou a contraposição racional de suas
novas premissas, restando ao amante da velha teoria o choro e o ranger de dentes típicos
da emoção à f‌lor da pele, instintiva, mas desprovida de uma mínima dose de razão4.
Portanto, será neste contexto de virada de página estrutural, conceitual e senti-
mental do processo do trabalho que falarei um pouco sobre a petição inicial. Como
ela era antes e como ela deve ser interpretada depois do advento das mudanças im-
plantadas pelo novo CPC, devidamente turbinadas pela Reforma Trabalhista.
E nada é mais apropriado do que analisar este refrescado marco teórico pelo seu
ato de início, pela forma de ingresso de sua primeira manifestação discursiva, pela
autópsia de sua exordial.
2. ERA UMA VEZ: O STORYTELLING NO PROCESSO DO TRABALHO
1. “Advogados são contadores de histórias”5. Esta é uma das realidades da vida
processual que raros teóricos já se dispuseram a abordar6. Os advogados trazem
versões sobre os fatos, reordenam os eventos, reconstroem o passado, remodelam as
histórias dos seus clientes com o intuito – legítimo, diga-se de passagem – de alcan-
çar os seus propósitos. Ou seja, af‌irmar que a comunicação linguística e a narrativa
integram a essência desta atividade prof‌issional não é demérito algum, muito ao
contrário. Neste sentido, bem nos advertiu Benjamin Cardozo, há quase cem anos: os
juristas deveriam deixar de lado as suas atitudes jocosas ou a sua cínica indiferença
sobre a inf‌luência da literatura no direito7.
3. A estrutura das revoluções científ‌icas. Trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. 5ª ed. São Paulo: Ed.
Perspectiva, 1998.
4. POPPER, Karl. Os dois problemas fundamentais da teoria do conhecimento. Trad. Antonio Ianni Segatto.
1ª ed. São Paulo: Ed. Unesp, 2013.
5. “Lawyers are storytellers” (tradução livre). Cf. MEYER. Philip N. Storytelling for lawyers. New York:
Oxford University Press, 2014, p. 3. Nota do autor: como se trata de um ebook, a numeração das páginas
não corresponde exatamente ao similar em papel.
6. Como exemplo, menciono TARUFFO, Michele. Uma simples verdade. O juiz e a construção dos fatos.
Trad. Vitor de Paula Ramos. São Paulo: Marcial Pons, 2012.
7. “Law and Literature”. In: CARDOSO, Benjamin Nathan. Selected writings of Benjamin Nathan Cardozo:
the choice of tycho brahe. New York: Fallon Law Book Company, 1947, p. 339. Cf., também, SILVA, Joana
Aguiar e. A prática judiciária entre o direito e a literatura. Coimbra: Livraria Almedina, 2001.

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