As Três Velocidades do Moderno Processo Penal

AutorEdilson Mougenot Bonfim
Páginas283-294

Page 283

1. Introdução

A última palavra em processo penal nas modernas democracias chama-se efetividade1. Já não se busca um estudo processual "nada-mais-que-jurídico", como saber estéril, sem preocupar-se com suas repercussões no seio comunitário. Estruturada a "teoria da norma processual", decodificada a íntima fisiologia do processo por alentados estudos desenvolvidos nos dois lados do Atlântico, o estudo do processo penal hoje saiu da academia e seu tecnicismo, para ganhar dimensão social mais ampla, largo protagonismo, a ponto do "direito de ação" e "efetividade do processo" serem considerados pela moderna doutrina constitucional um verdadeiro direito fundamental dos cidadãos. Pergunta-se, assim, quais os mecanismos processuais a serem implementados, para que de fato, possa o processo penal ser efetivo, eficaz, para "dar a cada um o que é seu"? Reclama-se assim, a certeza da punição para o verdadeiro culpado, assim como a absolvição para o comprovadamente inocente, buscando se minorar os "espaços de dúvidas" que ensejam grande número de absolvições, por "dúvidas" não solucionadas, ensejando no mais das vezes, o "erro judicial contemporâneo" qualificado de "erro judiciário negativo", que se caracteriza pela "absolvição de culpados" e, se fundamenta, no caso brasileiro, no art. 386, inc. VI, do CPP.

Nesse sentido, se empresta, hoje, à ciência processualística tradicional a mesma crítica que se faz à ciência do direito na "linha Jellinek-Kelsen", ou seja, a de

Page 284

ser reduzida à dimensão positivista-analítica, não havendo uma clara finalidade em sua fisiologia, reduzindo o direito a um inumano normativismo, levado a uma "rua sem saída, sem fim nem objetivo"2. Daí o questionamento de Heller, sobre haver um extravio de duas gerações de nossa ciência do Estado, que cria uma ciência jurídica asséptica a outros valores, tentando alhear da visão jurisdicional todos os problemas sociológicos e éticos da vida do Estado"3. Destarte, os fins do processo, os questionamentos face aos direitos fundamentais enfrentados pela utilização dos meios investigativos e probatórios, a dialética no jogo processual do binômio acusado-vítima, enfim, o jus puniendi como exercício do poder-dever jurisdicional, aporta à ciência do processo penal desafios mais além do que a análise do seu puro normativismo, adentrando no terreno ético e filosófico, tudo permeado pelo balizamento jurídico ínsito à moderna teoria constitucional.

2. Princípio da segurança jurídica

É o apogeu do chamado princípio da segurança jurídica, que promete um processo penal assegurador do respeito às formalidades previamente descritas em lei e perseguidor da verdade material ou fática. O primeiro momento, a estruturação e obediência às formalidades legais é instrumento para consecução do segundo e inafastável fim: a efetiva prestação jurisdicional.

Daí, uma necessária conclusão: é afirmativa recorrente que o modelo clássico de processo penal, nascido na razão iluminista, emergindo com a Revolução Francesa, pleno de garantias processuais, hoje se vê em crise, desafiado pela criminalidade hodierna4. Nesse sentido, o modelo tradicional do criminoso e de crime, que ensejou um processo penal acusatório, que tem no princípio in dubio pro reo a mais emblemática de suas garantias, se vê hoje posto a prova frente à nova e macro-criminalidade, dando azo à corajosa observação de Winfried Hassemer de que o clássico princípio in dubio pro reo, se atravessa no combate a criminalidade mais emblematicamente contemporânea5, com isso, estabelecendo uma polêmica

Page 285

constatação e um revelador desafio da constante tensão processual: as garantias e princípios do direito em favor da proteção dos cidadãos, e os mesmos, como obstáculos da efetividade do processo. Donde, o questionamento: o processo não é para a aplicação do direito penal? Mas, sendo assim, que valor deve preponderar e quais são os limites de ambos? A busca da justiça quando quebrantada a ordem legal - como garantia constitucional - ou a preservação do status libertatis dos acusados, enquanto não sejam declarados culpados?

3. Processo penal: um instrumento comprometido com valores constitucionais

A partir do momento em que se aceita a natureza instrumental do direito processual, torna-se imprescindível que se revisem seus institutos fundamentais, a fim de ajustá-los a essa nova visão, não podendo ser visto como um simples instrumento a serviço do ordenamento jurídico formalmente garantidor dos direitos, mas sobre tudo e, especialmente, como um poderoso instrumento ético destinado a servir à sociedade e ao Estado6, tornando eficaz uma aplicação do direito penal para a proteção efetiva "de todos os membros da sociedade", nas palavras de Mir Puig7.

Destarte, o crescimento expressivo das organizações criminosas, com todas suas múltiplas variantes e intersecções, tais como, a corrupção, a lavagem de dinheiro, o tráfico de drogas, o tráfico de mulheres etc., propõe uma discussão tal, de forma que o processo penal moderno possa ser instrumento eficiente em investigar e punir os reais culpados. Assim, o desafio é, como fazê-lo eficaz, sem o retrocesso a um "processo penal sem garantias" e de triste memória? Como tê-lo,

Page 286

efetivamente a serviço da sociedade, e não um instrumento anódino, sem força, um "processo de papel", verdadeiro "processo penal light", sem força punitiva ou eficácia investigativa e probatória, a ponto de tornar-se um caro joguete nas mãos inábeis do Estado, e para o qual as organizações criminosas devotam apenas escárnio, desprezo e sorriso?

4. A expansão do direito penal: o processo penal de três velocidades

Nesse diapasão, o atual momento da sociedade - pós-moderna, de risco ou pós-industrial, na nomenclatura de sociólogos e filósofos- com o incremento de uma espécie de criminalidade veloz, audaz e imprevisível, obriga a repensar o "engessamento clássico" do processo penal, a ponto de aparelhá-lo com um método de interpretação que o habilite a "ponderar" em cada caso concreto os interesses em jogo, possibilitando-lhe sopesar os direitos do acusado - dependendo do crime a que esteja respondendo- com o poder-dever do Estado em dar segurança pública e fazer justiça penal, adequando o processo ao tipo do crime que se investiga, para que o instrumento esteja apto ao benefício social a que se propõe. Como se fala na criminologia de uma tipologia de criminosos e no direito penal de uma variação de sanções possíveis, fala-se hoje de uma variação dos modelos de procedimentos penais.

Assim, uma moderna nomenclatura do processo penal alude a um "processo penal de três velocidades"8ou em outras palavras, formas procedimentais que trabalham em perspectivas diversas, inerentes ao tipo de crime que visam investigar e coibir:

  1. O processo penal de primeira velocidade é o modelo tradicional, nascido com a revolução francesa, às margens do qual nasceram os modelos procedimentais romano-germânicos. Caracteriza-se pela inflexibilidade e plenitude dos princípios e garantias pro reo. O modelo punitivo proposto é representado pela constrição da liberdade (prisão). Eis aí, desenhado, o processo penal clássico: as garantias processuais são maximizadas e a pena restritiva de liberdade, como pena corporal, emblematizada pelo cárcere. Tal modelo vem, paulatinamente, sendo superado pela aceitação de que existe um grande número de infrações penais cuja resposta punitiva do Estado não poderia ser a "prisão", mas alguma espécie de "pedagogia corretiva" ou "penas alternativas" a ela;

    Page 287

  2. O processo penal de segunda velocidade, caracteriza-se pela flexibilização das garantias processuais e a aplicação de uma pena alternativa à prisão. Nesse...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT