A Evolução do Controle de Constitucionalidade na Constituição de 1988

AutorGilmar Ferreira Mendes
Páginas23-38

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1. Introdução

A Constituição de 1988 ampliou significativamente os mecanismos de proteção judicial, e assim também o controle de constitucionalidade das leis.

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A Constituição preservou a representação interventiva, destinada à aferição da compatibilidade de direito estadual com os chamados princípios sensíveis1(CF, art. 34, VII, c/c art. 36, III). Esse processo constitui pressuposto da intervenção federal, que, nos termos do art. 36, III e § 1º, da Constituição, há de ser executada pelo Presidente da República. Tradicionalmente, é o Supremo Tribunal Federal competente para conhecer as causas e conflitos entre a União e os Estados, entre a União e o Distrito Federal ou entre os Estados entre si (art. 102, I, f ). Tal como outros países da América Latina, não dispõe a ordem jurídica brasileira de instrumento único para defesa de direitos subjetivos públicos2. A Constituição consagra o habeas corpus como instrumento processual destinado a proteger o indivíduo contra atos arbitrários do Poder Público que impliquem restrições ao direito de ir e vir (CF, art. 5º, LXVIII). Ao lado do habeas corpus, dispõe a ordem jurídica brasileira, desde 1934, do mandado de segurança, destinado, hodiernamente, a garantir direito líquido e certo não protegido por habeas data ou habeas corpus (CF, art. 5º, LXIX, a)3. O mandado de segurança pode ser, igualmente, utilizado por partido político com representação no Congresso Nacional, organização sindical, entidade de classe ou associação em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses dos seus membros (mandado de segurança coletivo).

A Constituição de 1988 criou, ao lado do habeas data, que se destina à garantia do direito de autodeterminação sobre informações4(art. 5º, LXXII), o mandado de injunção, remédio especial que pode ser utilizado contra a omissão de órgão com poder normativo que impeça o exercício de direito constitucionalmente assegurado (CF, art. 5º, LXXI).

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Até a entrada em vigor da Constituição de 1988 era o recurso extraordinário - também quanto ao critério de quantidade - o mais importante processo da competência do Supremo Tribunal Federal5. Esse remédio excepcional, desenvolvido segundo o modelo do writ of error americano6e introduzido na ordem constitucional brasileira pela Constituição de 1891, pode ser interposto pela parte vencida7, no caso de ofensa direta à Constituição, declaração de inconstitucionali-dade de tratado ou lei federal ou declaração de constitucionalidade de lei estadual expressamente impugnada em face da Constituição Federal (CF, art. 102, III, a, b, e c). A Constituição de 1988 reduziu o âmbito de aplicação do recurso extraordinário8, confiando ao Superior Tribunal de Justiça a decisão sobre os casos de colisão direta entre o direito estadual e o direito federal ordinário.

A Emenda Constitucional n. 45/2004 (Reforma do Judiciário) consagrou, no art. 102, § 3º, da Constituição, o instituto da repercussão geral, segundo o qual "no recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-la pela manifestação de dois terços de seus membros".

A Lei n. 11.418, de 19 de dezembro de 2006, definiu a disciplina processual do novo instituto. O recurso extraordinário passa, assim, por uma mudança significativa, havendo que sofrer o crivo da admissibilidade referente à repercussão geral. A adoção desse novo instituto deverá maximizar a feição objetiva do recur-so extraordinário.

Particular atenção dedicou o constituinte à chamada "omissão do legislador".

Ao lado do mandado de injunção, previsto no art. 5º, LXXI, c/c o art. 102, I, q, destinado à defesa de direitos subjetivos afetados pela omissão legislativa ou administrativa, introduziu a Constituição, no art. 103, § 2º, o processo de controle

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abstrato da omissão. Tal como o controle abstrato de normas, pode o controle abstrato da omissão ser instaurado pelo Presidente da República, pela Mesa da Câmara dos Deputados, Senado Federal, Mesa de uma Assembleia Legislativa, Governador do Estado, Procurador-Geral da República, Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partido político com representação no Congresso Nacional, confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional9.

2. A ação direta de inconstitucionalidade

A grande mudança verificou-se no âmbito do controle abstrato de normas, com a criação da ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo estadual ou federal (Cf, art. 102, I, a, c/c o art. 103).

Se a intensa discussão sobre o monopólio da ação por parte do ProcuradorGeral da República não levou a uma mudança na jurisprudência consolidada sobre o assunto, é fácil constatar que ela foi decisiva para a alteração introduzida pelo constituinte de 1988, com a significativa ampliação do direito de propositura da ação direta.

O constituinte assegurou o direito do Procurador-Geral da República de propor a ação de inconstitucionalidade. Este é, todavia, apenas um dentre os diversos órgãos ou entes legitimados a propor a ação direta de inconstitucionalidade.

Nos termos do art. 103 da Constituição de 1988, dispõem de legitimidade para propor a ação de inconstitucionalidade o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, a Mesa de uma Assembleia Legislativa, o Governador do Estado, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partido político com representação no Congresso Nacional, as confederações sindicais ou entidades de classe de âmbito nacional.

Tal fato fortalece a impressão de que, com a introdução desse sistema de controle abstrato de normas, com ampla legitimação e, particularmente, a outorga do direito de propositura a diferentes órgãos da sociedade, pretendeu o constituinte

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reforçar o controle abstrato de normas no ordenamento jurídico brasileiro como peculiar instrumento de correção do sistema geral incidente.

Não é menos certo, por outro lado, que a ampla legitimação conferida ao controle abstrato, com a inevitável possibilidade de se submeter qualquer questão constitucional ao Supremo Tribunal Federal, operou uma mudança substancial - ainda que não desejada - no modelo de controle de constitucionalidade até então vigente no Brasil.

O monopólio de ação outorgado ao Procurador-Geral da República no sistema de 1967/69 não provocou alteração profunda no modelo incidente ou difuso. Este continuou predominante, integrando-se a representação de inconstitucionalidade a ele como um elemento ancilar, que contribuía muito pouco para diferençá-lo dos demais sistemas "difusos" ou "incidentes" de controle de consti tu cionalidade.

A Constituição de 1988 reduziu o significado do controle de constitucionalidade incidental ou difuso, ao ampliar, de forma mar can te, a legitimação para propositura da ação direta de inconsti tu cio na lidade (CF, art. 103), permitindo que, praticamente, todas as contro vér sias constitucionais relevantes sejam submetidas ao Supremo Tribunal Federal mediante processo de controle abstrato de normas.

3. A ação declaratória de constitucionalidade

A Emenda Constitucional n. 3, de 17 de março de 1993, disciplinou o instituto da ação declaratória de constitucionalidade, introduzido no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, no bojo de reforma tributária de emergência. A Emenda Constitucional n. 3 firmou a competência do STF para conhecer e julgar a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, processo cuja decisão definitiva de mérito possuirá eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Executivo e do Judiciário. Conferiu-se legitimidade ativa ao Presidente da República, à Mesa do Senado Federal, à Mesa da Câmara dos Deputados e ao Procurador-Geral da República.

Embora a discussão sobre a ação declaratória de constitucionalidade seja mais ou menos recente no Brasil, a prática constitucional demonstra que, muitas vezes, a representação interventiva e sobretudo a representação de inconstitucionalidade foram utilizadas com o fito de afastar qualquer dúvida sobre a legitimidade de uma norma.

Daí não parecer surpreendente a criação da ação declaratória de constitucionalidade.

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Acolhendo sugestão contida em estudo que elaboramos juntamente com o Professor Ives Gandra, o Deputado Roberto Campos apresentou proposta de Emenda Constitucional que instituía a ação declaratória de constitucionalidade10.

Parte dessa proposição, com algumas alterações, foi incorporada à Emenda que deu nova redação a alguns dispositivos da ordem constitucional tributária e autorizou a instituição do imposto sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira, mediante iniciativa do Deputado Luiz Carlos Hauly11.

A ação declaratória foi aprovada, embora com ressalvas, quanto à legitimação, restrita ao Presidente da República, Mesa da Câmara, Mesa do Senado Federal e Procurador-Geral da República, e quanto ao objeto, que se limitou ao direito federal12.

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A discussão sobre a constitucionalidade da emenda, suscitada pela Associação dos Magistrados do Brasil, foi pacificada no julgamento da ADC n. 113.

A Emenda Constitucional n. 45, de 2004, corrigiu em parte o modelo restritivo da EC 3/93, estabelecendo que estariam legitimados para ADC os mesmos legitimados para a ADIN. Subsiste, porém, a limitação quanto ao objeto, restrito ao direito federal, objeto agora de Projeto de emenda constitucional que tramita no Congresso...

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