Declaração Universal de Direitos Humanos: Desafios e Perspectivas

AutorFlávia Piovesan
Páginas189-210

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1. Introdução

Como compreender o processo de construção histórica dos direitos humanos? Qual é o legado da Declaração Universal de 1948? Em que medida introduz uma nova concepção a respeito dos direitos humanos? Quais são os principais desafios e perspectivas para a afirmação de uma cultura de direitos na ordem contemporânea?

São estas as questões centrais a inspirar o presente estudo, que tem por objetivo maior propor uma reflexão a respeito dos direitos humanos e seus desafios na ordem contemporânea, tendo como referência o legado da Declaração Universal de 1948.

2. A construção histórica dos direitos humanos e a declaração universal de 1948

Os direitos humanos refletem um construído axiológico, a partir de um espaço simbólico de luta e ação social. No dizer de Joaquin Herrera Flores1, com-

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põem uma racionalidade de resistência, na medida em que traduzem processos que abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade humana. Invocam uma plataforma emancipatória voltada à proteção da dignidade humana. No mesmo sentido, Celso Lafer2, lembrando Danièle Lochak, realça que os direitos humanos não traduzem uma história linear, não compõem a história de uma marcha triunfal, nem a história de uma causa perdida de antemão, mas a história de um combate.

Enquanto reivindicações morais, os direitos humanos nascem quando devem e podem nascer. Como realça Norberto Bobbio, os direitos humanos não nascem todos de uma vez e nem de uma vez por todas3. Para Hannah Arendt, os direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução4.

A partir de uma perspectiva histórica, observa-se que o discurso jurídico da cidadania sempre enfrentou a tensa dicoto mia entre os valores da liberdade e da igualdade.

No final do século XVIII, as modernas Declarações de Direitos refletiam um discurso liberal da cidadania. Tanto a Declaração francesa de 1789, como a Declaração americana de 1776, consagravam a ótica contratualista liberal, pela qual os direitos humanos se reduziam aos direitos à liberdade, segu rança e propriedade, complementados pela resistência à opres são. Daí o primado do valor da liberdade, com a supremacia dos direitos civis e políticos e a ausência de previsão de qualquer direito social, econômico e cultural que dependesse da interven ção do Estado.

Caminhando na história, verifica-se por sua vez que, especialmente após a Primeira Guerra Mundial, ao lado do discurso liberal da cidadania, fortalece-se o discurso social da cidadania e, sob as influências da concepção marxista-leninista,

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é elaborada a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado da então República Soviética Russa, em 1918. Do primado da liberdade transita-se ao primado do valor da igualdade, objetivando-se eliminar a exploração econômica. O Es tado passa a ser visto como agente de processos transformadores e o direito à abstenção do Estado, nesse sentido, converte-se em direito à atuação estatal, com a emergência dos direitos a prestações sociais. A Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado de 1918, bem como as Constituições sociais do início do século XX (ex: Constituição de Weimar de 1919, Constituição Mexicana de 1917 etc.) primaram por conter um discurso social da cidadania, em que a igualdade era o direito basilar e um extenso elenco de direitos econômicos, sociais e culturais era previsto.

Essa breve digressão histórica tem o sentido de de monstrar o quão dicotômica se apresentava a linguagem dos direitos: de um lado, direitos civis e políticos, e do outro, direitos sociais, econômicos e culturais.

Considerando esse contexto, a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 introduz extraordinária inovação, ao conter uma linguagem de direitos até então inédita. Combinando o discurso liberal da cidadania com o discurso social, a Declaração passa a elencar tanto direitos civis e políticos (arts. 3º a 21), como direitos sociais, econômicos e culturais (arts. 22 a 28), afirmando a concepção contemporânea de direitos humanos. De um lado, parifica, em grau de relevância, os direitos civis e políticos e os direitos econômicos, sociais e culturais; por outro, endossa a interdependência e inter-relação destas duas categorias de direitos, inspirada na visão integral dos direitos humanos.

Esta concepção é fruto do movimento de internacionalização dos direitos humanos, que surge, no pós-guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. Apresentando o Estado como o grande violador de direitos humanos, a era Hitler foi marcada pela lógica da destruição e descartabili-dade da pessoa humana, que resultou no envio de 18 milhões de pessoas a campos de concentração, com a morte de 11 milhões, sendo 6 milhões de judeus, além de comunistas, homossexuais, ciganos,... O legado do nazismo foi condicionar a titularidade de direitos, ou seja, a condição de sujeito de direitos, à pertinência a determinada raça - a raça pura ariana. No dizer de Ignacy Sachs, o século XX foi marcado por duas guerras mundiais e pelo horror absoluto do genocídio concebido como projeto político e industrial5. A barbárie do totalitarismo significou a ruptura do paradigma dos direitos humanos, por meio da negação do valor da pessoa humana como valor fonte do Direito. Se a Segunda Guerra significou a

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ruptura com os direitos humanos, o Pós-Guerra deveria significar a sua reconstrução. Nas palavras de Thomas Buergenthal: "O moderno Direito Internacional dos Direitos Humanos é um fenômeno do pós-guerra. Seu desenvolvimento pode ser atribuído às monstruosas vio lações de direitos humanos da era Hitler e à crença de que parte destas violações poderiam ser prevenidas se um efetivo sistema de proteção internacional de direitos humanos existisse".6É neste cenário que se vislumbra o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional.

Fortalece-se a ideia de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao domínio reservado do Estado, porque revela tema de legítimo interesse internacional. Prenuncia-se, deste modo, o fim da era em que a forma pela qual o Estado tratava seus nacionais era concebida como um problema de jurisdição doméstica, decorrência de sua soberania. Para Andrew Hurrell: "O aumento significativo das ambições normativas da sociedade internacional é particularmente visível no campo dos direitos humanos e da democracia, com base na ideia de que as relações entre governantes e governados, Estados e cidadãos, passam a ser suscetíveis de legítima preocupação da comunidade internacional; de que os maus-tratos a cidadãos e a inexistência de regimes democráticos devem demandar ação internacional; e que a legitimidade internacional de um Estado passa crescentemente a depender do modo pelo qual as sociedades domésticas são politicamente ordenadas".7

Neste contexto, a Declaração de 1948 vem a inovar a gramática dos direitos humanos, ao introduzir a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade e indivisibilidade destes direitos.

Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano como um ser essencialmente moral, dotado

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de unicidade existencial e dignidade, esta como valor intrínseco à condição humana. Isto porque todo ser humano tem uma dignidade que lhe é inerente, sendo incondicionada, não dependendo de qualquer outro critério, senão ser humano. O valor da dignidade humana, incorporado pela Declaração Universal de 1948, constitui o norte e o lastro ético dos demais instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos.

Além de afirmar a universalidade dos direitos humanos, a Declaração Universal acolhe a ideia da indivisibilidade dos direitos humanos, a partir de uma visão integral de direitos. A garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o são. Os direitos humanos compõem, assim, uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos com o catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais.

A partir da Declaração de 1948, começa a se desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de diversos instrumentos inter-nacionais de proteção. O sistema internacional de proteção dos direitos humanos constitui o legado maior da chamada "Era dos Direitos", que tem permitido a internacionalização dos direitos humanos e a humanização dos Direito Internacional contemporâneo, como atenta Thomas Buergenthal8. Este sistema é integrado por tratados internacionais de proteção que refletem, sobretudo, a consciência ética contemporânea compartilhada pelos Estados, na medida em que invocam o consenso internacional acerca de temas centrais aos direitos humanos, na busca da salvaguarda de parâmetros protetivos mínimos - do "mínimo ético irredutível". Neste sentido, cabe destacar que, até agosto de 2007, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos contava com 160 Estados-partes; o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais contava com 157 Estados-partes; a Convenção contra a Tortura contava com 145 Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial contava com 173 Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher contava com 185

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Estados-partes e a Convenção sobre os Direitos da Criança apresentava a mais ampla adesão, com 193 Estados-partes.9

Ao lado do sistema normativo global, surgem os sistemas regionais de...

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