A Revisão Judicial dos Contratos de Crédito Bancário e a Limitação da Taxa de Juros

AutorSideni Soncini Pimentel
Páginas245-261

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Contrato é um acordo de vontades para estabelecer uma regulamentação de interesses das partes, celebrado nos limites da lei, da ética, da probidade e da boafé, exercido em razão e nos limites de sua função social (CC, arts. 421 e 422). A manifestação dos contratantes fundamenta-se no princípio da autonomia da vontade, que lhes permite escolher e decidir pelos ajustes que lhes forem mais convenientes e úteis.

Os contratos de crédito bancário, objeto deste breve estudo, são típicos contratos por adesão, em que as cláusulas contratuais são estabelecidas unilateralmente por um dos contratantes, no caso a instituição bancária, sem que ao outro, o consumidor, seja possível modificar substancialmente seu conteúdo. É evidente que com isso o princípio da autonomia da vontade sofre relevante mitigação, já que, na lição do saudoso Caio Mário da Silva Pereira,1ela pressupõe que o contratante possa escolher não só com quem contratar, mas também o conteúdo a ser contratado, a forma de elaboração do contrato e de seu cumprimento.

Nesses casos, ensina Arnaldo Rizzardo que "o princípio da autonomia da vontade fica reduzido à mera aceitação do conteúdo do contrato". E explica:

"Daí, sem dúvida, enquadrar-se como hipossuficiente o aderente, posto que obrigado a aceitar cláusulas aleatórias, abusivas, unilaterais, como a que permite ao banco optar unilateralmente por índice de atualização monetária que quiser, sem consultar o consumidor; a que possibilita ao mesmo banco utilizar a taxa de mercado por ele praticada; aquela que autoriza o vencimento antecipado do contrato em caso de protesto ou execução judicial de outras dívidas; a cláusulas que impõe a eleição do foro de comarca

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diferente ou daquela onde foi celebrada a operação; e a relativa à outorga de mandato ou poderes para o credor contra ele emitir título de crédito, dentre inúmeras outras." 2

(destaquei)

O ordenamento jurídico brasileiro não tolera a liberdade absoluta na pactuação da remuneração do capital, não podendo passar despercebida a falsa ideia da autonomia da vontade, sobretudo e fundamentalmente daquele que simplesmente adere ao contrato-modelo, com cláusulas muitas vezes redigidas de forma obscura, ininteligíveis pelo cidadão comum, elaboradas unilateralmente pelas instituições financeiras, como as que estabelecem os encargos a serem pagos pelo devedor de mútuo bancário.

A atividade de crédito, regularmente exercida, é sempre bem-vinda, pois alavanca o crescimento econômico. Todavia, se o seu exercício é abusivo, caracteriza usura, que não produz riqueza, mas tão-somente a transfere, para concentrá-la nas mãos de poucos. A usura é, sem dúvida, agente catalisador da pobreza, da marginalização, da desigualdade social e da concentração de riqueza, diametralmente oposta aos mais elevados objetivos da República (art. 3º, CF).

"A usura é em si, denominador comum de um conjunto de práticas financeiras proibidas. A usura é a arrecadação de juros por um emprestador nas operações que não devem dar lugar ao juro. Não é, portanto a cobrança de qualquer juro. Usura e juro não são sinônimos, nem usura e lucro: a usura intervém onde não há produção ou transformação material de bens concretos." (LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida: economia e religião na Idade Média. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 18)

A usura é, pois, um abuso reconhecido e repudiado pela prática das relações intersubjetivas, o que lhe conferiu relevância jurídica, a ponto de vir a ser condenada pelo Direito. Assim, na década de 1930, num contexto mundial marcado pela Crise de 1929 e num cenário interno pós-revolução de 1930, a par do teor social da Carta de 1934, que visava ao desenvolvimento das classes produtoras -, tornou-se imperioso impedir e reprimir os excessos praticados pela remuneração exagerada do capital.

O Código Civil de 1916, no art. 1.262, em consonância com o dogma da autonomia da vontade e a consequente liberdade de contratar, até então prevalecente no direito privado, não limitava a taxa de juros nos contratos de mútuo feneratício, dispondo que poderia ser fixada abaixo ou acima da taxa legal. Por conseguinte, o legislador, objetivando atender às expectativas de seu tempo, passou a estabelecer um limite para a contratação de juros, o que fez por meio do Decreto 22.626, conhecido como Lei da Usura, cujo art. 1º, "caput", estabelece: "É veda-

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do, e será punido nos termos desta lei, estipular em quaisquer contratos taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal (Código Civil, artigo nº 1.062)".

Assim, a Lei da Usura, surgida em meio à crise de 1929, quando se pretendia reprimir os efeitos nocivos da cobrança de juros abusivos e do anatocismo, veio preencher a lacuna deixada pelo legislador de 1916. Por considerar que juros convencionados acima de um por cento ao mês eram intoleráveis, o Decreto 22.626/33 vedou a estipulação em quaisquer contratos, sob pena de punição, de taxas de juros superiores ao dobro da estabelecida pelo então Código Civil, chamada de "taxa legal", que era de seis por cento ao ano (art. 1.062).

No entanto, na década de 1960, o Brasil atravessava uma séria crise não só econômica mas também política. Com a ditadura militar instaurada a partir de abril de 1964, sobressaiu-se um Poder Executivo forte, preocupado de regular e controlar o valor da moeda, os surtos inflacionários, a dívida externa, os investimentos de bancos estrangeiros e das multinacionais, e coordenar as políticas monetária, creditícia, orçamentária, fiscal e a dívida pública, para assegurar a liquidez e solvência das instituições financeiras.

Diante disso, em 1964, a Lei 4.595 - Lei de Mercado de Capitais - que dispõe sobre a política e as instituições monetárias, bancárias e creditícias -, criou o Conselho Monetário Nacional e passou a atribuir-lhe competência para, entre outras, limitar, sempre que necessário, as taxas de juros, que, no entanto, já eram limitadas pela Lei da Usura.

Nos anos setenta, o Governo Militar propugnava o crescimento econômico do País, interessado na confiança dos banqueiros estrangeiros e das grandes multinacionais, a fim de favorecer novos investimentos, para combater os altíssimos índices de inflação e o crescimento brutal da dívida externa. Em 1973, a Crise do Petróleo fez a economia mundial passar do crescimento à recessão, com a consequente elevação das taxas internacionais de juros e a dificuldade brasileira de exportação.

Nesse cenário, o Supremo Tribunal Federal (STF), em dezembro de 1976, acabou por editar a Súmula 596, preceituando que as disposições do Dec. 22.626/33 não poderiam ser aplicadas às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas que integrassem o sistema financeiro nacional.

A Súmula 596 do STF decorreu particularmente do voto do então Ministro Oswaldo Trigueiro, proferido no julgamento do RE 78.953, no sentido de que o art. 1º da Lei da Usura teria sido revogado pela Lei 4.595/64. O entendimento deveu-se, sobretudo, ao disposto no art. 4º, IX, dessa lei, que estatui competir ao Conselho Monetário Nacional "limitar, sempre que necessário, as taxas de juros".

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Entendeu o Ministro que, com a lei nova, a limitação imposta pela Lei da Usura já não poderia prevalecer, até porque, na época, naquele cenário econômico, o limite da Lei da Usura não era observado, tendo em vista os altíssimos índices de inflação, que tornavam inviável, não só para os bancos, mas também para os cidadãos, a estipulação das taxas de juros em até um por cento ao mês.

Nisso, o Ministro Xavier de Albuquerque, no mesmo julgamento daquele RE 78.953, concluiu que "a cláusula, ‘sempre que necessário’, contida nesse preceito [o art. 4º, IX, da Lei 4.595/64]" parecia "mostrar que deixou de prevalecer o limite genérico do Dec. 22.626/33; a não ser assim, jamais se mostraria necessária, dada a prevalência de um limite geral, único, constante e permanente, preestabelecido naquele velho diploma legal, a limitação que a nova lei atribuiu ao Conselho"3. Assim, a Lei da Usura deixou de ser aplicada às instituições integrantes do Conselho Monetário Nacional, muito embora permanecesse plenamente aplicável a todos os demais contratos de mútuo feneratício que não fossem celebrados por instituição financeira, dando ensejo a uma construção jurisprudencial que passou a discriminar o mútuo bancário do mútuo civil.

Com a Constituição Federal de 1988, o Brasil deixou de ser uma ditadura e passou a Estado Democrático de Direito, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos. O Estado passou a ter o dever expresso de promover a defesa do consumidor (art. 5º, XXXII), erigida como princípio geral da atividade econômica (CF, art. 170, V), o que viria a se refletir em diversos setores econômicos, principalmente nos contratos de consumo, como os contratos de crédito bancário.

A partir de 1994, com o Plano Real, a inflação deixou de ser um dos maiores problemas que assolavam o País; mas as instituições financeiras continuavam a estipular, nos contratos de mútuo, taxas de juros imensamente superiores ao limite de 1% ao mês, que se impunha a todos os demais cidadãos, a despeito da veda-ção expressa que então era feita pelo art. 192, § 3º, da Lei Maior. Surgiu, pois, a necessidade de revisar a Súmula 596 do Supremo Tribunal Federal, até porque, como esclarece o Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Rui Portanova:

"Na época, a Lei da Reforma Bancária era quase uma necessidade conjuntural, em face do período inflacionário então vivido. Disso dá conta a decisão do Supremo Tribunal Federal, na apreciação do Recurso Extraordinário nº 78.953, o que serviu de base à Súmula 596. Aquela preocupação, hoje, já não faz mais sentido. De um lado, porque,

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como visto, na caracterização constitucional do que sejam juros reais, não está incluída a...

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