Notas para um Ensaio sobre a Carência de Legitimidade da Criminalização das Infrações Tributárias

AutorMarco Aurélio Borges de Paula
Páginas361-395

Page 361

1. Da injustiça do sistema tributário brasileiro

"Não se pode, a rigor, dizer que o sistema tributário brasileiro é justo."2Não se pode negar que os sistemas tributários de diversos países estejam extremamente complexos. O sistema tributário brasileiro padece, v. G., da prolixidade, incoerência e incontinência normativa. Daí falar-se num "emaranhado tributário",3o que em nada traduz o ideal de uma ordem jurídica unitária.4 - 5

Page 362

Há de ressaltar-se, outrossim, que a expressão "unidade da ordem jurídica tributária" (Klaus Tipke) está assente na ideia de justiça. O mesmo é dizer: a ordem jurídica tributária só formará uma unidade se os princípios de justiça forem seguidos à risca. Daqui surge um Direito consistente, harmônico e livre de contradições axiológicas, porque fundado em um único princípio fundamental.6 - 7

Feita esta observação elementar, insta referir que a complexidade das normas tributárias não é um fenômeno peculiar aos países subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento. O sistema norte-americano, por exemplo, é extremamente complexo, de tal maneira que nem os profissionais mais habilitados em matéria tributária conseguem responder a algumas questões sobre uma dada situação hipotética.8As semelhanças, quanto a este assunto, aproximam, pois, países como Brasil, Estados Unidos, Alemanha, Portugal e Itália, revelando, por conseguinte, o "estado de doença" dos seus sistemas tributários.9 - 10

Page 363

Ocorre que, em meio à complexidade da sociedade pós-industrial, a favor da qual acresce a abundância legislativa e a complexidade das normas jurídicas (características do Direito pós-industrial), muitas são as ideias (correntes de pensamento) e variados são os instrumentos criados pelo legislador para que a arrecadação de tributos não esmoreça. Porém, nem sempre estas ideias e inovações normativas estão em harmonia com a finalidade do Direito Tributário - que é, prima facie, a limitação ao poder de tributar, por meio de normas jurídicas que propiciam aos contribuintes a segurança jurídica indispensável ao planejamento de suas atividades, à sua liberdade, em suma. Segue-se daí as ameaças fáticas e as ameaças teóricas ao Direito Tributário.11No que respeita às ameaças fáticas, importa referir, em primeiro lugar, que a técnica legislativa pouco tem contribuído para o "estado de saúde" dos sistemas tributários da atualidade, enquanto sistemas resultantes do intervencionismo estatal, isto é, da superação da "ideologia das três separações", como, por exemplo, a "Separação Estado-Economia", de Adam Smith.12Deveras, como já ressaltamos em outra ocasião,13o câmbio de paradigma econômico (do paradigma clássico ao paradigma intervencionista, de cunho keynesiano) teve implicações pragmáticas no que à certeza da tributação se refere, aumentando a insegurança jurídica dos cidadãos-contribuintes para além do mínimo suportável. Diga-se, en passent, que uma norma jurídica deve revestir-se do máximo de precisão, de modo a ser concebida como "um limite genuíno à ar-

Page 364

bitrariedade do Estado".14A segurança jurídica, neste prisma, exsurge como a "segurança de liberdade."15 - 16

Porque oportuna e sobremodo elucidativa, importa trazer à tona a lição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, já que, conquanto não esteja direcionada especificamente ao Direito Tributário, a mesma se adapta perfeitamente a este ramo do Direito - aquele "nel quale manca, più che in ogni altro, la ‘certezza’"17-, revelando ao leitor as múltiplas e labirínticas questões que dizem respeito ao Estado intervencionista e ao seu revolto mundo normativo, verbis:

"A multiplicidade das leis é fenômeno universal e inegável. (...) Por um lado, essa multiplicação é fruto da extensão do domínio em que o governante se intromete, em razão das novas concepções sobre a missão do Estado. A lei é hoje onipresente. Não há campo da atividade humana, não há setor da vida humana, onde não esteja o governo a ditar

Page 365

regras. (...) Essa mudança incessante das leis ‘repercute sobre todas as relações sociais e afeta todas as exigências individuais. (...) O cidadão, aí, já não está protegido por um direito certo, pois a Justiça segue as leis cambiantes. Não mais está ele garantido contra os governantes cuja audácia lhes permite legislar segundo seu capricho. (...) Com isso, o mundo jurídico se torna uma babel. A multidão de leis afoga o jurista, esmaga o advogado, estonteia o cidadão, desnorteia o juiz. A fronteira entre o lícito e o ilícito fica incerta. A segurança das relações sociais, principal mérito do direito escrito, se evapora. Os males da inundação não ficam por aí, porém. (...) Quanto maior o número de leis que se editam, menor o respeito que cada qual inspira. (...) Daí o bonus pater familias ignorá-la, o jurista ironizá-la, o magistrado esquecê-la."18Não resta a menor dúvida de que, perante esta "abundância normativa",19

"nós solapamos exatamente o chão sobre o qual pisamos, porque tiramos o essen-cial, o básico, o elementar, o condicional de todo o resto",20"o bem mais incômodo à função confiscatória de todos os governos que entendem ser o tributo uma obrigação da sociedade"21: a segurança jurídica.

Por outro lado, porém ainda no âmbito das ameaças fáticas ao Direito Tributário, devemos dizer que são inúmeros os exemplos que retratam a frequência com que o Fisco descumpre os seus deveres para com o cidadão-contribuinte. Importa mencionar, por exemplo: (a) não-restituição do empréstimo compulsório sobre a aquisição de veículos e de combustíveis; (b) atrasos frequentes na restituição do imposto de renda das pessoas físicas que a isto têm direito em face do ajuste anual;

(c) a oposição de obstáculos injustificáveis ao exercício do direito à compensação estabelecido pelo art. 66, da Lei nº 8.383/91; (d) a sistemática recusa à restituição de tributos pagos indevidamente, dentre muitos outros exemplos.22

Neste sentido, vale mencionarmos um caso recente (de 12 de junho de 2008) em que o Supremo Tribunal Federal, após declarar a inconstitucionalidade da ampliação dos prazos de decadência e prescrição das contribuições de seguridade social (de cinco para dez anos) por lei ordinária (artigos 45 e 46 da Lei 8.212/91), garantiu à Fazenda os créditos constituídos ou exigidos dentro do segundo quinquênio, impossibilitando os contribuintes de repetirem o indébito (restituição da contribuição recolhida), "a menos que já tenham ajuizado as respectivas ações

Page 366

judiciais ou solicitações administrativas até a data do julgamento (11 de junho)". Em outras palavras, o que o STF fez foi garantir à Fazenda valores arrecadados de forma ilegítima, dispensando-a de devolver aos contribuintes as quantias por eles pagas em afronta ao artigo 146, III, b, da Constituição Federal (reserva de lei complementar para normas gerais em Direito Tributário). É lógico que as leis tributárias inconstitucionais não produzem (ou não deveriam produzir) quaisquer efeitos válidos na esfera jurídica, de modo que constitui (ou deveria constituir) corolário lógico a restituição dos recolhimentos por elas impostos, mediante compensação ou repetição do indébito.23Certo é que situações como esta descrita não são impossíveis de serem repetidas, o que, quando ocorrerem, evidenciarão tanto a voracidade tributária do Estado Fiscal Social brasileiro, quanto aquilo que lhe é característica: a "ilegalidade eficaz".24 - 25

Portanto, mesmo quando os cidadãos-contribuintes pensam estarem obrando com correição (em consonância com os preceitos legais), eles podem ser surpreendidos por exegeses cujo escopo não é outro que não o aumento incontido da arrecadação tributária por meio de restrições de seus direitos.26Já no domínio das ameaças teóricas, não faltam doutrinas com posições defensoras de alguns instrumentos viabilizadores da eficiência fiscal que não são congruentes com a almejada conciliação entre o interesse arrecadatório do Estado

Page 367

e a justiça tributária27- justiça que no plano da aplicação-interpretação do Direito é implementada pela proibição do arbítrio (segurança jurídica).28Com efeito, o Direito Tributário debate-se, hodiernamente, entre o polo da justiça e o polo estritamente financeiro, sendo este último o "habitat" da desigualdade na relação entre a Administração Tributária e o contribuinte. Daí que, pela prevalência atual do mero interesse financeiro, o cidadão-contribuinte seja considerado um mero objeto do acontecer fiscal,29uma cobaia da atividade do Fisco,30um súdito fiscal,31ou, como dizem García de Enterría e Fernández, um mero administrado.32Com o fim de elucidar essas considerações, cabe traçar um esboço - sobremodo reducionista, porém não menos realista - do que vem sucedendo na seara tributária desde o irromper do Estado Fiscal Social: (1) as funções extrafiscais dos impostos se multiplicaram para viabilizar os fins - o interesse público superior - deste Estado Fiscal;33(1.1) passou a falar-se numa convulsiva e desordenada proliferação da

Page 368

extrafiscalidade;34(1.2) daí adveio a hipertrofia legislativa; (1.3) daí resultou o caráter muitas vezes prolixo, casuístico e complexo das normas tributárias, que, por seu turno, é estimulador do animus apropriandi e do animus abutendi da Administração Tributária,35e, como sói ocorrer, da "distorção" do processo de interpretação/ aplicação, tornando difícil, quando não impossível, a segurança jurídica (certeza e confiança); (1.4) daí dimanou, pois, o efeito multiplicador da complexidade no sistema tributário - que não deixa de ser oriunda, num primeiro momento, da complexidade das relações sociais, econômicas e políticas da sociedade pós-industrial; (1.5) daí proveio, outrossim, a aberrante ideia da eficiência singelamente arrecadatória; (1.5.1) passou a falar-se em prati...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT