Princípios Constitucionais Penais

AutorRuy Celso Barbosa Florence
Páginas421-440

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O homem andando a pé pelo mundo deve ter percebido que sua liberdade estava limitada à capacidade de suas pernas. Encontrou o cavalo e ganhou rapidez no trote e no galope. Com seu novo parceiro equino, uma verdadeira espaçonave a percorrer fronteiras e continentes, entrou em lutas e guerras em busca de maiores espaços e mais liberdade.

Com trens, navios, automóveis, aviões e foguetes, o "homo racionalis" invade o séc. XXI trazendo o seu primitivo desejo: a liberdade.

A liberdade, ponto de partida da história da humanidade, e estrada de todas as verdadeiras democracias, foi bem caracterizada pela simbologia de Adão e Eva, apenados que foram dentro de critérios da autonomia pessoal, pois foi por vontade própria que descumpriram normas de comportamento dentro do paraíso. A liberdade terá que sempre ser, nos Estados democráticos, a referência ética e a base do Direito.

Fruto de conquistas históricas, e saudada em odes e poemas, a liberdade é cantada no hino grego e possui interessante força expressiva: "Reconheço-te pelo gume do teu terrível gládio; Reconheço-te por esse rápido olhar com que fitas o horizonte; Saída das ossadas sagradas dos Helenos. É pujante da tua antiga bravura. Saúdo-te, saúdo-te, Oh Liberdade".

Quando esta ode, já em seu primeiro verso diz: "Reconheço-te pelo gume do teu terrível gládio", que em linguagem coloquial resume: "Reconheço-te pelo corte da tua terrível espada", indica a estreita ligação entre a liberdade e a força.

Sob o ponto de vista de um moderno Estado Democrático, a mesma força representada pela lâmina afiada da espada grega, reside na Constituição de uma nação.

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No dizer de Conrad Hesse1, a Constituição tem em sua essência a "força normativa" que se manifesta na natureza das coisas como uma força ativa.

Nesse contexto, é a Constituição, em última análise, a garantidora da liberdade dos cidadãos.

O que fica em aparente e aguda situação paradoxal é a existência de um Direito penal, frequente e insistentemente utilizado sem nenhum método ou sob a luz de teorias radicais que dão guarida a legislações punitivas simbólicas que assombram princípios constitucionais essencialmente libertários.

No entanto, essa contradição desaparece quando o Direito penal é visto e entendido por seus aplicadores e pelos legisladores que o (dês) constroem, tal qual um instrumento a serviço da Constituição e uma ferramenta em prol da liberdade2. Seja a liberdade do inocente ou do culpado. Das vítimas ou dos vitimados.

Para que o Direito penal não seja avassalado ou comprometido é necessário que a sua criação e interpretação se deem nos estritos termos dos princípios constitucionais do país onde deverá ser aplicado.

Os princípios constitucionais informadores do Direito penal constituem garantia do cidadão até contra a maioria, implicando assim, que não basta o legislativo criar leis penais ou que a sociedade entenda que este ou aquele fato deva ser criminalizado desta ou daquela maneira. Um único cidadão pode contrapor-se a todo o parlamento do país ou contra toda a sociedade, mesmo estando esta, muitas vezes ensandecida por influência da mídia, se tiver um princípio constitucional a seu favor na interpretação da lei penal que se lhe pretenderá imputar.

A Constituição é a lei superior na qual todas as demais buscam validade. Por isso, a adequação da legislação infraconstitucional e sua interpretação em conformi-dade com os ditames da Lei Fundamental é tema que deveria dispensar dúvidas.

Conceito formal de direito penal

Franz von Lizt esculpiu na final do séc. XIX, uma definição de Direito penal que tem servido de alicerce a todas as definições que se seguiram sobre o mesmo assunto: Direito penal é o conjunto de regras jurídicas estabelecidas pelo Estado, que associa o crime com o fato e a pena, como legítima consequência3.

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Considerando pois, que o Direito penal é definido como um conjunto de normas jurídicas, é importante saber qual a natureza dessas normas, ou seja, em que classe ou categoria hierárquica se encontram.

A resposta a esse questionamento é dada por um princípio constitucional penal - o da reserva legal (art. 5º inc. XXXIX CF brasileira), segundo o qual só a lei pode estabelecer tipos penais.

A lei a que se refere o art. 5º é a lei ordinária federal, pois segundo o art. 22 da mesma Constituição, compete privativamente à União legislar sobre Direito penal.

Estabelecida assim a classe das leis penais

Não se pode desconsiderar entretanto, que as emendas constitucionais e as leis complementares, também podem definir infração e cominar penas. As primeiras, embora não possam restringir direitos e as garantias individuais (art. 64, § 4º, CF), envolvem Poder Constituinte Derivado ou Reformador, e estão consequentemente autorizados a legislar sobre matéria penal. Já as leis complementares, por se enquadrarem entre as leis produzidas pela União, serão recebidas como leis ordinárias quando tratarem de tema criminal.

De qualquer forma, todas essas categorias legais permanecerem sob a égide dos valores constitucionais.

Valores constitucionais

A Constituição ao consagrar a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático e Social de Direito brasileiro (art. 1º, inc. III), reconheceu categoricamente que é o Estado que existe em função da pessoa, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal4.

A partir do reconhecimento formal de que o homem é a principal razão de todo o sistema social, político e jurídico da nação, e sua dignidade um valor primeiro, tem-se por decorrência lógica que todos os demais valores da sociedade brasileira alçados à condição de valores constitucionais, devem orbitar em torno da dignidade humana. E isso não envolve apenas uma questão de coerência do sistema, mas também de efetividade dos demais princípios constitucionais.

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Pelo mesmo nexo, no âmbito do Direito penal, que tem missão especial dentro do sistema jurídico, todos os valores constitucionais que informam sua criação e interpretação devem estar iluminados pelo valor fundante da dignidade da pessoa humana.

Missão do direito penal

A tese majoritária e amplamente difundida na Europa já nas últimas décadas do séc. XX5, e objetivamente confirmada no Brasil, mantém o pensamento de ser missão do Direito penal a de exclusiva proteção de bens jurídicos6.

Tem-se ainda como certo, que a noção de bem jurídico, por estar atrelada às alterações sociais e organização do Estado, sofre justificadas variações. Verifica-se também, a perda quase total da sua substância material7.

Conforme anota JUAREZ TAVARES8, o bem jurídico não se confunde nem com os interesses juridicamente protegidos, nem com um estado social representativo de uma sociedade eticamente ideal, nem ainda com mera relação sistêmica. Tampouco pode ser identificado como uma função ao fim de proteção da norma.

Para JUAREZ TAVARES, bem jurídico é um elemento da própria condição do sujeito e sua proteção social, e nesse sentido pode ser entendido tal qual um valor que se incorpora à norma como seu objeto de preferência, constituindo assim, o elemento primário do tipo, ao qual se devem reportar a ação típica e todos os seus demais componentes9.

Na visão de ROXIN10, um conceito de bem jurídico vinculante político-criminalmente só pode derivar daqueles bens indicados ou existentes na Lei Fundamental do Estado de Direito baseado na liberdade do indivíduo, por meio dos quais se marcam os limites da vontade punitiva da Nação.

Em consequência, ROXIN11define bem jurídico como sendo circunstâncias dadas ou finalidades que são úteis para o indivíduo e seu livre desenvolvimento no

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quadro de um sistema social global estruturado sobre a base dessa concepção dos fins ou para o funcionamento do próprio sistema.

Com esse conceito de bem jurídico Roxin afasta do âmbito penal as cominações penais arbitrárias, o que ocorreria se fosse criada uma pena para quem deixasse fazer referência a uma fotografia do Presidente da República, pois o gesto não observa a liberdade do cidadão em um Estado liberal, nem tem a função de manter um sistema social baseado em tal princípio. Essa norma é plenamente viável em um Estado autoritário.

Com o mesmo conceito, o Catedrático da Universidade de Munique também coloca fora da esfera penal as finalidades puramente ideológicas e as meras imoralidades. As primeiras por não protegerem bens jurídicos, e as segundas por não lesionaram qualquer bem, salvo quando as imoralidades sejam públicas e possam perturbar a paz social12.

Com a devida observação de que as concepções a respeito de bem jurídico de JUAREZ TAVARES e ROXIN divergem em alguns pontos, e especialmente em relação a posição de ROXIN de que, no fundo, o bem jurídico serve para a manutenção do sistema, o que não é aceito por TAVARES, o importante é que para ambos, e tantos outros autores, o bem jurídico não pode ser simplesmente inferido de um dado normativo, mas possui um caráter valorado. Posição que deve ser adotada pelo Direito penal de um Estado Democrático de Direito como o brasileiro, pois só assim é possível a criação e interpretação das normas penais a partir de propósitos de proteção da dignidade da pessoa humana, com garantia a todos ao pleno exercício de seus direitos fundamentais.

Somente compreendendo o bem jurídico por meio das lentes dos valores essenciais de uma democracia é possível barrar o Estado despótico e arbitrário, que tende a fazer uso das penas criminais como respostas simbólicas e políticas contra cidadãos desprotegidos, sem que essas penas tragam qualquer utilidade para a sociedade cada vez mais desorientada.

Princípios constitucionais penais

Verificado, pois, em rápidas linhas, que a...

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