Justiça Restaurativa e Direito Penal Juvenil: Uma Perspectiva

AutorAbadio Baird - Letícia Campos Baird
Páginas341-359

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"(...) as pessoas grandes jamais se interessam em saber como ele realmente é. Não perguntam nunca: ‘Qual é o som da sua voz?

Quais brinquedos que prefere? Será que ele coleciona borboletas?’

Mas, perguntam: ‘Qual é a sua idade? Quantos irmãos ele tem?

Quanto pesa? Quanto ganha seu pai?’

Somente assim é que elas julgam conhecê-lo."

(O Pequeno Príncipe - Antoine de Saint Exupéry)

1. Introdução

No Brasil, aproximadamente quatorze mil adolescentes estão em cumprimento de medida sócio-educativa de privação de liberdade. Desses, 90% (noventa por cento) são meninos, 51% (cinquenta e um por cento) já não mais frequentam a escola (e sequer concluíram o ensino fundamental), 86% (oitenta e seis por cento) são usuários de drogas1e 80% (oitenta por cento) dos adolescentes em conflito

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com a lei vêm de lares em que a renda familiar não alcança dois salários-mínimos2: jovens marginalizados dos valores perfilhados pela própria sociedade que os aborta.

Oriundos de famílias desestruturadas econômica e psicologicamente, marcados pela privação do mínimo existencial e da ausência de perspectivas, discriminados pela sociedade, filhos de uma Pátria omissa nos seus deveres e comissiva nas injustiças, os adolescentes infratores brasileiros traduzem a precisa expressão da socióloga e pesquisadora Vera da Silva Telles: "vidas que se estruturam no fio da navalha"3.

O cometimento de ato infracional pelo adolescente - conduta, prevista em lei, como crime ou contravenção penal - pode deflagrar ação sócio-educativa pública com vistas à aplicação de medida sócio-educativa. A Constituição da República de 1988 sujeita o adolescente a uma legislação especial, assegurando-lhe um tribunal especial, presidido por um juiz especial, objetivando resposta estatal antes em uma finalidade pedagógica do que punitiva (apesar do cunho misto). Não é, todavia, o que tem sido implementado.

Em que pese a vigência da doutrina da proteção integral e a edição de inúmeros documentos internacionais guaridadores dos direitos juvenis, rotineiramente é possível deparar-se com a notícia de violações, inclusive processuais a que são submetidos os adolescentes, não sendo senão outra a percepção:

"Se acompanharmos o noticiário cotidiano da imprensa, poderemos constatar que poucos países no mundo tratam os jovens infratores de forma tão desumana e degradante como o nosso. A política de atendimento - salvo as raras e honrosas exceções - temse resumido à construção de mais unidades e a sua lotação com pessoal despreparado (...)."4Ocorre, todavia, que a submissão do adolescente da forma indiscriminada, como vem acontecendo, à privação de sua liberdade é imputar-lhe carga aflitiva de consequências inaferíveis. FRASSETO, nesse sentido, pontua:

"Todos os internos, quase invariavelmente, mais ou menos cedo acabam recomendados para a saída por conta do aproveitamento do regime. Assim, ou as avaliações estão enviesadas ou elas demonstram ser falaciosa toda a literatura vastíssima, que denuncia

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os danos psicossociais dos reformatórios juvenis. O sistema de execução baseado na avaliação psicossocial de aproveitamento, como se vê, é montado com um mecanismo de auto-reforçamento inibidor por excelência da crítica, ou seja, é montado para invisibilizar o entorno institucional"5. (grifo nosso)

Desta feita, configura-se em um sistema penal alienígena à linguagem do adolescente, eivado de rigores e formalismos que, ademais, tem-se demonstrado ineficaz também em seus objetivos primários.

É neste cenário que ascendem as práticas restaurativas que, calcadas no respeito à diferença e na tolerância, propõem uma quebra do paradigma punitivo imposto aos adolescentes, por meio de uma releitura do ato infracional, sob a ótica da voluntariedade e por meio da gestão compartilhada do conflito, envolvendo autor, vítima e comunidade, ampliando, dessa forma, o palco da cidadania.

Pretende-se a apresentação deste novo referencial de justiça por meio de sua aproximação com a realidade do adolescente infrator brasileiro. Para tanto, o texto, inicialmente, traçará um panorama da justiça penal nesta nova perspectiva, abordando conceitos, evolução e principiologia. Depois, um confronto entre o modelo clássico de justiça penal e o modelo de práticas restaurativas possibilitará uma formatação teórica menos abstrata. Mais adiante, partindo da doutrina da proteção integral - enunciando as garantias processuais e materiais proclamadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente - pretende-se a identificação desta com os pilares das práticas restaurativas convergindo para a sua aplicação quando do cometimento de ato infracional. Seguindo, notas experimentais, inclusive com menção e deferência às práticas restaurativas brasileiras, pragmatizarão o valimento e a conclusão do que aqui se defende.

2. A justiça penal na perspectiva da justiça restaurativa

A ideia clássica do jus puniendi consubstancia-se no direito subjetivo do Estado de impor limites sociais e de defesa. A prática do sistema processual do tipo acusatório apresenta-se por meio de uma relação triangular (jurisdição - pretensão acusatória - resistência) edificada na oposição. É o paradigma punitivo-retributivo.

A ineficácia desse sistema penal que não tem atingido os objetivos a que ele mesmo se propôs, abriu as portas para o surgimento de penas e medidas alternativas que, tampouco, conseguiram melhor resultado. Conforme SICA, "nas últimas décadas muito se falou sobre penas alternativas: incontáveis projetos, experiências

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e supostas inovações surgiriam nesse campo. Curiosamente, as taxas gerais de encarceramento subiram vertiginosamente (...)"6.

KONZEN arremata o precitado pensamento, ponderando que de nada adianta pensar em penas e medidas alternativas se pela própria essência dos mecanismos existentes estas estão fechadas na ideia da pena:

"A massa dos encarcerados, a (des)organização produzida a partir da falência do estadoaprisionador, a incapacidade resolutiva das políticas de segurança, os reclamos por mais e mais investimentos em repressão, a insuficiência das políticas sociais, as explicações para o fenômeno, tudo leva ao desespero pela retórica esvaziada dos discursos sem efetiva repercussão no campo das soluções."7Importa, desde já, averbar que o telado paradigma de justiça penal não tem por desiderato a eliminação do modelo punitivo-retributivo, não configurando um modelo substitutivo ao atual,8devendo, ao contrário, nesta fase da evolução social e jurídica brasileira, coexistirem.

A conceituação das práticas restaurativas, por não se tratar de um tema fechado, legalizado, mas sim de medidas em vias da construção de sua teoria, não há uma definição cerrada, havendo conceitos doutrinários e sugestões enunciativas, todas, porém, no mesmo sentido: o de que qualquer ação que pretenda a justiça por meio da reparação do dano causado pelo crime pode ser considerada uma prática restaurativa. Eis algumas conceituações:

Publicação específica das Nações Unidas sobre a justiça restaurativa: Handbook on Restorative Justice Programmes - Criminal Justice Handbook Series (Viena, 2006), define o processo restaurativo como:

"A restorative process is any process in wich the victim and the offender and where appropriate, any other individuals or community members affected by a crime participate together actively in the resolution of matters arising from the crime, generally with the help of a facilitator."9

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O Conselho da União Europeia, conforme decisão de 4 de julho de 2002, criou a denominada "Rede Europeia de Pontos de Contacto Nacionais para a Justiça Restaurativa", definindo-a da seguinte forma:

"Art. 2º. Definição e formas de justiça restaurativa: Para efeitos da presente decisão, o termo "justiça restaurativa" refere-se a uma visão global do processo de justiça penal em que as necessidades da vítima assumem a prioridade e a responsabilidade do infra-tor é realçada de uma maneira positiva. A justiça restaurativa denota uma abordagem lata em que a reparação material e imaterial da relação confundida entre a vítima, a comunidade e o refractor constitui um princípio orientador geral no processo de justiça penal. O conceito de justiça restaurativa abrange um conjunto de ideias que é relevante para diversas formas de sancionamento e de tratamento de conflitos nas várias fases do processo penal ou com ele relacionados. Embora até à data a justiça restaurativa tenha encontrado expressão principalmente em diversas formas de mediação entre as vítimas e os infractores (mediação vítima-infractor), estão cada vez mais a ser aplicados outros métodos, como, por exemplo, o debate em família. Os governos, a polícia, os órgãos de justiça criminal, as autoridades especializadas, os serviços de apoio e assistência à vítima, os serviços de apoio ao infractor, os investigadores e o público estão todos implicados neste processo."10(grifo nosso)

Vale trazer, também, o conceito de justiça restaurativa delineado na ocasião do seminário "Building Restorative Justice in Latin América", em que se lançou a Declaração da Costa Rica sobre Justiça Restaurativa na América Latina (setembro do ano de 2005), conforme:

"Art. 1º.

§ 1º processo restaurativo é aquele que permite vítimas, ofensores e quaisquer outros membros da comunidade, com a assistência de colaboradores, participar em conjunto, quando adequado, na busca da paz social.

§ 2º Arrependimento, perdão, restituição, accountability, reabilitação e integração social, entre outros, podem ser incluídos dentre as metas restaurativas."11Doutrinadores e aplicadores nacionais, como Eduardo Rezende Melo conceitua na seguinte...

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