Segurança Pública na Sociedade do Risco

AutorLuis Alberto Safraider
Páginas441-456

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Nós não convivemos bem com a insegurança. Precisamos de certezas, de algo que nos mostre o caminho para o futuro, de alguma coisa que nos garanta que tudo vai dar certo porque, enfim, estamos fazendo o que é certo, mesmo que o futuro não se conforme aos nossos planos. A isto já chamamos azar, desgraça e agora chamamos risco. O importante é nos mantermos dentro de uma ordem, mesmo que esta ordem não garanta nada a respeito do futuro: pelo menos nos preocupamos em evitar danos futuros, preservamos a normalidade e evitamos riscos. O problema é que não há na sociedade uma forma que permita observar normalidade ou risco.

Como adverte Niklas Luhmann1, o mundo externo não mais reconhece riscos, porque não conhece nem distinções, nem expectativas, nem valorações, nem probabilidade, senão enquanto prestação própria de sistemas que observam no ambiente de outros sistemas. Talvez reconhecendo a inexistência do risco no ambiente como ontologia, mas como prestação dos sistemas, possamos ver algo mais além das racionalidades que sustentam a existência da normalidade e da segurança. Com Ignácio Farias e José Ossandón2possamos ver que o risco pode ser pensado como um programa para o processamento de decisões, que em sua operação é capaz de reestruturar o desintegrado funcionamento dos sistemas sociais para que eles possam continuar suas operações de cara com o futuro incerto, cuja função

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é reduzir a complexidade dos sistemas sociais permitindo decidir sobre o futuro sem conhecê-lo.

O risco, portanto, pode ser observado como um programa linguístico criado para resolver o problema do "futuro" e que se apresenta nos sistemas sociais. Mas cada sistema opera como opera, ou seja, resolve os seus problemas com estruturas próprias. Não é possível falar em integração entre eles. Ao contrário, quando se fala em sistemas, o que se observa são diferenciações, porque eles operam auto-nomamente e estruturalmente fechados. Se não fosse assim seria impossível distinguir o funcionamento de sistemas no ambiente: eles se confundiriam. Por isso também não se pode falar que sistemas integrados propiciam segurança social. O risco é resultado de toda operação do sistema. Para a forma risco/segurança isso significa que não existe segurança absoluta e que o que é observado como segurança num sistema pode se tratado como insegurança em outro. Pode-se socorrer de uma infinidade de cálculos, mas estes só servem para ajudar na decisão e não evitam os riscos.

Que tipo de prevenção contra riscos pode ser feita na sociedade do risco? Ou, perguntando de outro modo, quanto de segurança se pode ter utilizando da prevenção? A prevenção não tem função de gerar segurança, mas sim de fazer a ligação entre risco e decisão. De modo geral, prevenir é se preparar para danos futuros incertos, olhando-se a redução tanto da probabilidade que se verifique um dano quanto de seu montante. O interessante é que o círculo de diminuição ou do aumento do risco vai muito além do fator estar preparado. A política, por exemplo, subvalora ou supervalora os riscos, ou seja, politiza temas de seu interesse que são gerados pelo fato que um risco primário é considerado controlável ou incontrolável dependendo de onde se quer chegar.

Com estas variáveis é que são construídas as políticas de segurança pública, deixando ao direito e especificamente ao direito penal a função de incrementá-las mediante a aplicação dos programas legais definidos pela política. Obviamente que o direito não pode incrementar nenhum programa político justamente porque não trabalha com estruturas e programas políticos. Quando o direito funciona com base em determinado programa legal, primeiro reconhece esse programa como direito e com base nele produz mais direito para alguns e menos direito para outros, o que sempre é um risco. Daí porque diz Raffaele De Georgi3que o direito penal é o direito da sanção e não direito orientado ao exercício do direito. O direito penal só torna visível o poder de criminalizar e impor sanção. A sanção estabiliza esta visibilidade no plano temporal na medida em que inclui o tempo

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da sociedade no tempo do direito - relação causa/efeito. Atribui-se a culpa e por isso é possível individualizar a pena. Continua Raffaele: o paradoxo da inclusão do tempo no tempo é ocultado pela semântica das consequências, de onde provêm as teorias:

  1. ressocialização: que é o direito de cultivar os corpos e domar as almas;

  2. prevenção: que é o direito ao uso da violência;

  3. integração: que é possível pelo não saber da diferença entre sistemas psíquicos e sociais e por distinções artificiais - normalidade/desvio, risco/segurança.

    O direito penal só pode reduzir e simplificar uma realidade tratando-a como ação - diferença temporal que pode ser utilizada para contar uma história - e imputar-lhe a um sujeito para os fins do próprio direito penal. É desse modo que o direito penal se abstrai da complexidade dos eventos comunicativos em sua completude e inventa a sua realidade, que pode ser utilizada pela política para produzir mais e mais normas, nunca segurança. É o paradoxo do direito da violência estatal que por definição não pode produzir segurança.

    A grande inteligência de Nelson Hungria4, nosso maior penalista, já sabia disto mesmo antes da chamada sociedade do risco. Dizia ele, "é inadmissível um direito penal filosófico, ou ideal, ou racional, ou natural... Direito penal é uma técnica, o resto é política criminal". Mas ele também chamava a atenção para o fato de que tecnicismo não se confunde com formalização do direito penal, mas é uma "superior atividade sistematizadora, sem abstração da realidade humana e social, preocupada em aplainar antinomias entre os textos rígidos da lei e os aspectos cambiantes da vida", ou, na linguagem luhmanniana, o direito penal pode ser observado como a diferença direito/ambiente.

    Em resumo, vivemos numa época em que o tema de ordem é a segurança. A política e a mídia são sistemas que manipulam o tema sob o prisma da sociedade do risco, como se fosse possível a sociedade da segurança. O que se propõe é a luta contra a criminalidade. Crescem a expectativa e a pressão sobre a política. A resposta desta se traduz em programas que o direito deve aplicar, sobrecarregando este sistema com temas políticos. O resultado é que o direito se fragiliza porque não tem como função prover a sociedade de segurança - as teorias penais se fragilizam e se fortalece a jurisprudência, que por não ter tempo nem condições para se sedimentar também se fragiliza. O sentimento comum é que o mundo é ameaçado sempre mais por riscos e perigos. Isso tende ao individualismo, à erosão das normas e à sensação de paralisia que nos rodeia. Esta análise feita por Winfried Has-

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    semer5e compartilhada por grande parte dos filósofos do direito, em especial do direito penal, leva à conclusão por parte dos políticos que a melhor reação consiste num aumento extremo da necessidade de controle e na assunção da possibilidade de controlar nossos problemas por meio da utilização da coação estatal, ou seja, segundo Hassemer:

  4. tenta-se compensar as debilidades das normas cotidianas - decência social - com normas jurídicas, ou seja, deve-se obrigar o outro a respeitar os direitos alheios, o que justifica o direito de polícia e o direito penal;

  5. para se defender dos riscos e perigos atuais recorre-se ao controle e à coação estatal e sempre mais à privada. Reduzem-se os espaços de liberdade; os direitos fundamentais perdem seu significado como direitos de garantia frente ao Estado. Tornam-se vazios de conteúdo, ou, como diz Raffaele De Georgi, transformam-se em direito de assistência social frente a um direito penal da exclusão, do suspeito, de status - pessoas que vivem em torno do crime.

    Colocam-se, então, algumas questões que pretendemos discutir neste estudo:

    1. O que se pode entender por sociedade da ordem e sociedade da segurança pública?

    2. Qual foi a resposta institucional à segurança na sociedade da ordem e na sociedade do risco?

    3. É possível segurança numa sociedade complexa?

1. Sociedade da ordem e sociedade do risco

O direito foi constituído pela política como direito ao poder e por isso o sistema normativo refere-se a um determinado sistema de produção, ao qual reflete, estimula e justifica buscando sempre a sua reprodução. Niklas Luhmann6diz que é a autoridade e não a verdade quem faz a lei e este é o paradoxo da autofundação do direito. O direito se funda em si mesmo e por meio de suas próprias operações constrói sua realidade: passa a distinguir direito e crime lá onde não havia essa distinção. Como não conseguimos observar a unidade da diferença, passamos a acreditar que no mundo existe direito e crime.

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Esquecemos que o direito fundamenta o poder e legitima o seu exercício. Por isso não conseguimos observar que o direito e especificamente o direito penal representa o meio no qual o poder condensa a sua sensibilidade em relação ao ambiente e passa a operar com uma linguagem própria, qual seja, a da culpa, a da individualização da pena, a da ressocialização, a da prevenção etc. E isto não tem nada a ver com segurança: são só definições linguísticas que o direito entende como juridicamente relevantes. São deduções e não observações; são reduções, simplificações operadas pelo direito sem as quais não funcionaria. Sem isso o direito seria destruído pela complexidade do ambiente.

Neste aspecto, o direito da modernidade reduziu e simplificou a comunicação tratando-a como ação, ou seja, uma diferença temporal - causa/efeito - por meio da qual se pode contar uma história. Nasce assim o sistema social da ação que é constituído por meio de processos de imputação a indivíduos. Desenvolvem-se teorias de análise da ação: a ação é utilizada para o tratamento de uma práxis de intencionalidade e de controle...

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