Classificação dinâmica dos atos juridicamente relevantes na perspectiva do seu controle de validade

AutorEduardo Nunes de Souza
Páginas235-268
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CLASSIFICAÇÃO DINÂMICA DOS ATOS JURIDICAMENTE
RELEVANTES NA PERSPECTIVA DO SEU CONTROLE DE
VALIDADE
Eduardo Nunes de Souza1
Resumo: O controle de validade dos negócios jurídicos encontra-se
minuciosamente disciplinado pelo Código Civil. Isso não ocorre,
porém, com a validade de outras categorias de atos juridicamente
relevantes, sobre as quais não foi concebido pelo legislador um regime
normativo geral. Este artigo visa a analisar a possibilidade de
aplicação dos requisitos de validade negocial a estas outras categorias,
bem como traçar alguns dos limites dessa extensão, a partir de uma
análise que associa a própria categorização teórica desses atos aos
mecanismos de seu controle valorativo pelo ordenamento.
Palavras-chave: Negócios jurídicos; atos jurídicos em sentido estrito;
atos-fatos jurídicos; invalidade.
1. Introdução: fatos humanos e produção de efeitos jurídicos
Não é desconhecido o relevante papel do princípio da
legalidade para a própria construção de uma esfera de autonomia
privada juridicamente garantida. As diferentes formas de controle
valorativo exercido pelo ordenamento jurídico sobre as diversas
espécies de atos humanos dizem respeito diretamente a essa matéria.
De fato, se, politicamente, o direito civil moderno, em sua matriz
1 Doutor e mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Professor adjunto de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ e professor permanente
dos cursos de Mestrado e Doutorado em Direito Civil do Programa de Pós-Graduação em
Direito da UERJ.
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liberal, buscou a afirmação da liberdade particular por meio de sua
delimitação,2 do ponto de vista estritamente jurídico a tutela da
autonomia privada pela ordem jurídica sempre apresentou o problema
teórico de sua compatibilização com as fontes do direito: como
atribuir qualificação e tutela jurídicas a efeitos criados por força da
vontade individual, e não por obra do legislador (ou, ainda, por força
do costume ou construção jurisprudencial)?
O problema da eficácia jurídica, como já se observou em
doutrina, corresponde ao núcleo do problema da juridicidade de um
ato.3 O dilema desenvolveu-se à exaustão na forma da controvérsia,
muito difundida doutrinariamente, em torno de se considerar ou não o
negócio jurídico uma fonte do direito.4 A questão, de maior interesse
para a filosofia jurídica do que, propriamente, para a dogmática
civilista, não poderia receber ulterior desenvolvimento nesta sede.5
Dela, no entanto, extrai-se uma constatação crucial para este estudo:
em linha de princípio, quanto mais a vontade individual assume o
papel de fonte geradora de efeitos jurídicos em determinado ato, tanto
maior tende a se tornar a resistência, por parte do ordenamento
2 Sobre o ponto, permita-se remeter a SOUZA, Eduardo Nunes de. Merecimento de tutela: a
nova fronteira da legalidade no direito civil. In: MORAES, Carlos Eduardo Guerra de;
RIBEIRO, Ricardo Lodi (Coord.). Direito civil. Coleção UERJ 80 anos. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 2015.
3 Como leciona Angelo FALZEA, “o problema d o efeito jurídico não é e não pode ser outro
que o problema da própria juridicidade, isto é: o próprio problema do direito” (Efficacia
giuridica”. Enciclopedia del dir itto, vol. XIV. Milano: Giuffrè, 1959, §5. Tradução livre).
4 Ilustrativamente, relata Salvatore PUGLIATTI algumas das divergências, na doutrina italiana,
em matéria de se reconhecer na autonomia privada uma fonte de efeitos jurídicos: Sob outro
perfil, a vontade viria qualificada como autônoma, enquanto fonte dos efeitos negociais, e,
coerentemente, seria considerado como ato negocial também o ato legislativo. Segundo uma
outra tendência, a vontade negocial seria heterônoma, enquanto constituiria um dos elementos
da hipótese fática legal, de modo que a fonte dos efeitos seria sempre a lei (“Autonomia
privata”. Enciclopedia del diritto, vol. IV. Milano: Giuffrè, 1959, p. 368. Tradução livre ). No
direito pátrio, Francisco AMARAL reputa a autonomia pr ivada uma autêntica fonte do direito
(Direito civil: introdução. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 126).
5 Muitos consideram superada a di scussão nos termos em que colocada. Para Menezes
CORDEIRO, “o abandono do dogma da vontade e as atuais doutrinas sobre as relações entre a
vontade, o direito e o negócio não permitem manter a distinção nesses termos: no negócio
como no ato há fatos que, por voluntários, produzem efeitos ex lege” (Tratado de dir eito civil,
vol. II. Coimbra: Almedina, 2012, p. 88).
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jurídico, à tutela desses efeitos.6
De fato, a dificuldade em se reconhecerem efeitos jurídicos
decorrentes da vontade particular (e não seria demais lembrar o
relevante o papel conferido à vontade individual pela dogmática
civilista, nos moldes liberais que a caracterizam, com mitigações, até
hoje) levou a uma gradação: a tarefa exige um número maior de
requisitos quanto maior for o papel da vontade individual na
atribuição de efeitos a determinado ato.7 Distinguem-se, assim, os atos
privados cujos efeitos decorrem da lei e os atos que, também
empreendidos por particulares, têm seus efeitos por estes escolhidos.
Trata-se da clássica divisão entre, de um lado, atos jurídicos em
sentido estrito e atos-fatos jurídicos e, de outro, negócios jurídicos.8
6 A diversidade de regime jurídico baseada no papel desempenhado pela vontade em cada tipo
de ato é ressaltada por Salvatore PUGLIATTI, segundo o qual a tute la jurídica dos atos
voluntários (atos jurídicos em sentido lato) compreende “seja o interesse perseguido pelo
sujeito, seja a vontade (subjetiva) que ele persegue. Mas se a tutela do interesse permanece a
mesma em relação a qualquer tipo de ato, a tutela da vontade se comporta de maneira diversa
em relação às duas categorias de atos (simplesmente) voluntários [para o autor, os atos
jurídicos em sentido estrito] e dos atos de vontade [negócios]: na verdade tal distinção, que tem
valor apenas sob o perfil jurídico, impõe-se e se sustenta com referência à diversidade
fundamental de postura da tutela jurídica” (I fatti giuridici. Milano: Giuffrè, 1996, p. 55.
Tradução livre).
7 A noção de que a vontade particular teria por conteúdo efetivamente os efeitos jurídicos do
ato, de certo modo pouco realista, recebe diversos temperamentos. Faz -se distinção, por
exemplo, entre o “intento empírico” das partes e o “intento j urídico” (este último efetivamente
relativo à ef icácia jurídica do ato), ou, ainda, faz-se alusão ao “efeito econômico-prático”,
destacando-se que basta que a vontade individual esteja direcionada a esse efeito. A esse
propósito, cf. MESSINEO, Francesco. Manuale di diritto civile e commerciale, vol. I. Milano:
Giuffrè, 1957, p. 460.
8 Adotam esta classificação tripartite dos atos humanos voluntários (isto é, a existência de um
tertium genus para além do negócio jurídico e do ato jurídico stricto sensu), ainda que com
designações distintas, entre outros: no direito italiano, FERRARA, Luigi Cariota. Il negozio
giuridico nel diritto pr ivato ita liano. Napoli: ESI, 2011, p. 40; MESSINEO, Francesco.
Manuale di diritto civile e commerciale, vol. I, cit., p. 453; no direito brasileiro, MIRANDA,
Francisco Cavalcanti Pontes de. Tra tado de direito privado, t. II. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2012, p. 457; MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da
existência. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 137; LÔBO, Paulo. Direito civil: Parte Geral. São
Paulo: Saraiva, 2009, p. 232. Com interessante terminologia, Fernando NORONHA sustenta
que a expressão “ato jurídico stricto sensuconsiste em gênero de duas espécies: os atos-fatos
jurídicos (atos reais) e os “atos quase negociais”, equivalentes aos atos aqui designados como
jurídicos stricto sensu (Direito das obr igações. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 4 01 e ss.),
designações muito semelhantes àquelas de ENNECCERUS, Ludwig; KIPP, Theodor; WOLFF,
Martin. Tratado de derecho civil, t. I, vol. II. Barcelona: Bosch, 1955, p. 11. Já Orlando
GOMES, conquanto afaste os atos-fatos dos atos jurídicos stricto sensu, insere-os entre os fatos
jurídicos naturais (Introdução ao dir eito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 232).

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