Existe o droit de saisine no sistema sucessório brasileiro?
Autor | Daniel Bucar |
Páginas | 173-204 |
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EXISTE O DROIT DE SAISINE NO SISTEMA SUCESSÓRIO
BRASILEIRO?
Daniel Bucar 1
Sumário: 1. Introdução. 2. Sistemas de Transmissão causa mortis:
Técnicas e Modelos. 2.1. O Sistema de Transmissão Direta e Imediata.
2.2. Sistema de Transmissão Diferida 2.3. Sistema de Transmissão
Indireta e Diferida. 3. O Sistema Sucessório Brasileiro. 3.1. Direito
Civil. 3.2. Direito Processual Civil (e Notarial) 3.3. Direito Tributário.
4. Por uma Compreensão do Sistemática para o Direito das Sucessões
Brasileiro. 5. Conclusão. 6. Referências
1. Introdução
Na doutrina nacional do Direito das Sucessões, parece não
haver controvérsia a ideia de que o Brasil teria adotado o modelo de
saisine, segundo o qual, conforme dicção artigo1.784, Código Civil,
“aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros
legítimos e testamentários” 2-3 . Vigente desde 2003, a referida
1 Professor de Direito Civil da UERJ e do IBMEC. Doutor e Mestre em Direito Civil – UERJ.
Especialista em Direito Civil pela Università degli Studi di Camerino.
2 Neste sentido, diversos manuais a respeito da matéria, escritos por autores de distintas
gerações e que se utilizam de diferentes metodologias para embasar suas obras, tais como:
GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito Civil Brasileiro. Volume 7: direito das sucessões. 6ª
ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes;
CAHALI, Francisco José. Direito das Sucessões. 5ª ed. revista, São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2014. p. 38/40; GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA, Rod olfo Filho. Novo
curso de direito civil. Volume 7: direito das sucessões. São Paulo, Saraiva Educação, 2019. p.
71/76; ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Curso de dir eito civil:
sucessões. 3ª ed. Salvador: Editora Jus Podvm, 2017. p. 112/116; VENOSA, Silvio, Direito
civil: direito das sucessões. 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2013, p.13/15; TARTUCE, Flávio.
Manual de d ireito civil: volume único. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p.1888/1889;
TEPEDINO, Gustavo; NEVARES, Ana Luiza Maia; MEIRELES, Rose Melo Vencelau.
Direito da s Sucessões. In: TEPEDINO, Gustavo (org). F undamentos de Direito Civil. Volume
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disposição repete, como pequena alteração, o artigo1.572 da legislação
anterior, de cujo texto foi suprimida a expressão “domínio e posse”.
No entanto, a confrontação do dogma nacional da saisine com
o sistema sucessório brasileiro, que vai além do Direito das Sucessões
como ramo do direito civil, apresenta certa perplexidade prático-
jurídica. Afinal, de um lado, a obrigatoriedade do inventário e a
ausência de responsabilidade patrimonial dos sucessores para além
dos valores recebidos (intra hereditatis) são escolhas de política
legislativa distantes de uma transmissão imediata da propriedade entre
particulares. Enquanto isso, de outro lado, efeitos pragmáticos de
aquisição direta da herança, consubstanciados no acesso livre e
desimpedido aos bens que a compõem - a exemplo, a transmissão
incontinenti de bens móveis custodiados em nome do falecido (valores
mantidos em instituição financeira) - são impensáveis no país.
Portanto, a unidade complexa das normas, que regulam o
fenômeno sucessório, e a sua aplicação prática no cotidiano estão em
verdadeiro desalinho com a interpretação recorrente que se dá ao
art.1784, Código Civil. Não por outro motivo, é preciso compreender
a sucessão ca usa mortis brasileira a partir do sistema que a legislação
lhe destina. Compreender o direito civil sucessório de modo isolado
significa fechar-se, hermeticamente, à suposta existência de
7. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 34/35; WALD, Arnoldo, Direito das Sucessões. Volume 6.
15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.22; Para além dos manuais, a mesma posição é encontrada
em livro resultado da tese de livre docência de HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes,
Morrer e suceder: passado e presente da transmissão sucessória concorrente. 2ª ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2014, p.317/320. Não só, mas também em obras clássicas, vide:
GOMES, Orlando. Sucessões, atualizado por Mário Roberto Carvalho de Faria. 17ª ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2012. p. 16. MIRANDA, Pontes de. Direito das Sucessões: sucessão em
geral, sucessão legítima. Atualizado por Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka e Paulo
Luiz Netto Lôbo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.Tomo LV, coleção tratado de
direito privado: parte especial, p.65/70; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Dir eito
Civil, volume VI: Direito das Sucessões, atualizado por Carlos Roberto Barbosa Moreira. 24ª
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 38/40.
3 Talvez sustentando a opinião mais dissonante sobre o assunto, dentre os autores que o
pesquisam, Paulo Lôbo, embora admitindo a saisine no Brasil, busca destacar, de todo modo,
algumas peculiaridades do sistema brasileiro para defendê-la. Sob esta perspectiva, remeta-se o
leitor p ara LÔBO, Paulo. Direito Constitucional à Herança, Saisine e Liberdade de Testar .
Anais do IX Congresso Bra sileiro de Direi to de Família. p. 35-46. Disponível em:
https://ibdfam.org.br/assets/upload/anais/290.pdf. Acesso em 14.07.2021.
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microssistemas dotados de independência4, quando, em verdade, a
própria disciplina da transmissão causa mortis vista por outras
matérias do direito – mais especificamente, o direito processual e o
tributário e o direito processual - revela incompatibilidade à dita
saisine.
Assim, a desconstrução do dogma é medida que se impõe, de
forma que não haja ilusão quanto à constatação jurídica que aqui se
demonstra: não há direito de saisine no Brasil.
2. Sistemas de transmissão causa mortis: técnicas e modelos
Até o presente momento, o direito sucessório justifica-se
segundo a necessidade de manutenção das situações jurídicas
patrimoniais passíveis de sucessão5-6 a um particular que tenha aptidão
tanto para adquiri-las, quanto para responder por elas7. Apesar da
4 Quanto aos problemas de hermenêutica jurídica gerados pela lógica de microssistemas,
TERRA, Aline de Miranda Valverde. Liberdade do intérp rete na metodologia civil
constitucional. In: SCHREIBER, Anderson; KONDER, Carlos Nelson (coord). Direito Civil
Constitucional. São Paulo: Atlas, p. 47-70, 2016.
5 Existe, também, relativo consenso entre os autores de direito sucessório ao afirmarem que os
direitos patrimoniais cuja titularidade detinha o falecido transmitem-se aos herdeiros, salvo os
personalíssimos, c omo o usufruto concedido ao autor da herança ou o seu dir eito à pensão
previdenciária, ao passo que os direitos existenciais, dos quais os direitos da personalidade, que
constituem o principal exemplo, não são transmissíveis. Neste sentido, HIRONAKA, Giselda
Maria Fernandes Novaes; CAHALI, Francisco José. Direito da s Sucessões. 5ª Edição revista,
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 28. Sob tal perspectiva, Gustavo Tepedino,
Ana Luiza Maia Nevares e Rose Melo Vencelau Meireles mencionam, inclusive, a existência
de um princípio da patrimonialidade da sucessão (TEPEDINO, Gustavo; NEVARES, Ana
Luiza Maia; MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Dir eito das Sucessões. In: TEPEDINO,
Gustavo (org). Funda mentos de Direito Civil. Volume 7. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 13).
Enfim, consigne-se que a internet tem remodelado essa lógica de transmissibilidade ora
enunciada, vez que as situações jurídicas patrimoniais ofertadas ao usuário para aquisição são
distintas, muitas das vezes, da propriedade, extinguindo-se com a morte do titular originário.
De outro lado, a pessoa ganha maior autonomia para expressar a vontade de que as
manifestações virtuais de sua personalidade continuem expostas na rede quando de sua morte.
Sobre o assunto, BUCAR, Daniel; PIRES, Caio Ribeiro. Situações pa trimoniais digitais e
ITCM: desafios e propostas. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; LEAL, Lívia Teixeira.
Herança digital: controvérsias e alternativas. Indaiatuba: Editora Foco, p. 273/288, 2021. p.
275-276.
6 Sobretudo, a perpetuação do direito real de propriedade.
7 MORAES, Walter. Teoria Geral e Sucessão Legítima. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1980. p. 8 ; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Volume VI: Direito
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