Os conceitos jurídicos e a verificação do impossível

AutorHeloisa Helena Barboza
Páginas365-386
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OS CONCEITOS JURÍDICOS E A VERIFICAÇÃO DO
IMPOSSÍVEL
Heloisa Helena Bar boza
L´histoire contemporaine nous montre pourta nt
qu´au point de vue socia l, il ne faut plus considérer
l´absurd e comme impossible. Et déjà, la réa lisation
de l´absur de hante l´esprit de certa ins savants.1
Resumo: algum tempo os avanços da Medicina vêm
surpreendendo o mundo com feitos extraordinários, que parecem
saídos da ficção. Situações que pertenciam ao para um futuro
imaginado distante se incorporam ao cotidiano de modo contínuo e
célere. O impacto dos avanços biotecnocientíficos, especialmente
sobre a existência humana, enseja uma série de desafios para o Direito
elaborado com base em “fatos” da natureza, tidos como imutáveis. Os
surpreendentes avanços resultantes da aliança entre a ciência e a
tecnologia que interferem na existência humana geram em muitos
casos intrincadas questões existenciais que confrontam princípios
éticos e jurídicos. Os conceitos jurídicos existentes não bastam para
atender as demandas que estão postas em particular pela Medicina.
Mais do que apresentar soluções, o Direito deve exercer sua função
precípua de proteção do ser humano em sua dignidade. O presente
estudo apresenta algumas práticas que rompem leis naturais ou a
ordem natural das coisas e provocam abalos na área jurídica, muitos
dos quais ainda não encontraram o encaminhamento mais adequado ao
atendimento dos altos interesses humanos que estão em jogo.
1 SAVATIER, R. Les Métamorphoses économiques et sociales du Dr oit Civil d´a ujourd´hui.
Paris: Librairie Dalloz. 1948. p.132.
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Palavras-chave: biotecnociência leis naturais conceitos jurídicos
proteção do ser humano reprodução assistida.
1. Interferências na existência humana: o rompimento de
conceitos jurídicos
Desde o início do século XX a humanidade vem presenciando
o desenrolar de uma verdadeira revolução promovida pela
biotecnociência2 que afeta, diretamente e a um tempo, diferentes
ramos do conhecimento humano, e gera uma série de questionamentos
até então não cogitados. O homem passou a interferir em processos
atinentes à existência humana, que até então escapavam ao seu
domínio, eis que monopolizados pela natureza. Para fins de melhor
apresentação do objeto do presente trabalho, considera-se a existência
humana em três dimensões, a saber: a) a do surgimento da vida
humana, que se com a fertilização de um óvulo3 por um
espermatozoide, configurando a concepção do embrião humano; b) a
do desenvolvimento da vida humana, a partir da fase embrionária; e c)
a da terminalidade4 da vida humana.
Em cada uma das citadas dimensões as interferências se fazem
crescentes e mais profundas. Desde 1905 há registro de transplantes de
tecidos e órgãos, para restaurar sentidos ou prolongar a vida humana,
2 Esclarece SCHRAMM que a biotecnociência é um paradigma científico, que o rienta o
conhecimento dos fenômenos e processos vivos chamados também de autopoiéticos - e as
intervenções que visam seu controle e transformação, do qual se originam as várias
biotecnologias, que devem ser consideradas o s produtos originados a partir do paradigma
biotecnocientífico. Trata-se de um neologismo, formado pelos termos bio e techne (de origem
grega) e cientia (de origem latina e tradução do grego episteme), que visa indicar a interação
entre sistemas complexos como são os seres e ambientes vivos, o sistema técnico e de
informação que permite agir sobre tais sistemas, e o tipo de saber e saber -fazer que se torna
possível quando aplicado ao mundo vital. O paradigma biotecnocientífico refere-se, em
particular, às atividades da medicina, da biologia amplamente entendida, dos dispositivos de
informação e comunicação, da biopolítica, e a suas interações. Paradigma bio-tecnocientífico e
para digma bioético. In: ODA, Leila M. (Org.). Biosafety of transgenic organisms in human
health products. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996. p. 112.
3 Utilizam-se aqui os termos usuais do senso comum.
4 A palavra terminalidade significa a qualidade do que é terminal, em particular o estado clínico
grave e irreversível, que precede uma morte próxima.

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