Responsabilidade civil e os 'novos turcos': o papel da conduta humana nos danos relacionados à inteligência artificial

AutorCarlos Affonso Souza e Vinicius Padrão
Páginas41-67
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RESPONSABILIDADE CIVIL E OS NOVOS TURCOS”:
O PAPEL DA CONDUTA HUMANA NOS DANOS
RELACIONADOS À INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL1
Carlos Affonso Souza2
Vinicius Padr ão3
Resumo: O presente artigo procura evidenciar o papel da conduta
humana no debate sobre os danos causados por aplicações de
inteligência artificial, especialmente quando as soluções
automatizadas auxiliam o usuário na tomada de decisões. Para essa
finalidade são exploradas três questões: (i) a reputada
imprevisibilidade dos erros causados por aplicações de IA e como ela
impulsiona discussões sobre culpa normativa; (ii) as novas
vulnerabilidades que a digitalização acarreta para uma série de
atividades; e (iii) a discriminação gerada a partir do uso de aplicações
de inteligência artificial.
Sumário: 1. Introdução: o que se esconde atrás dos “novos Turcos”?
2. Reconhecendo o papel da conduta humana na inteligência artificial;
3. Desafios em matéria de responsabilidade civil 3.1.
Imprevisibilidade dos erros relacionados à inteligência artificial; 3.2.
Novas vulnerabilidades advindas da digitalização e do uso de
1 O presente artigo é uma versão atualizada do texto originalmente publicado em TEPEDINO,
Gustavo; SILVA, Rodrigo da Guia (org). O Direito Civil na era da Inteligência Artificial. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2020; pp. 663-681.
2 Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Doutor e Mestre em Direito Civil pela UERJ. Diretor do Instituto de Tecnologia e Soci edade
do Rio de Janeiro (ITS Rio). Professor visitante da Faculdade de Direito da Universidade de
Ottawa. Pesquisador afiliado ao Information Society Project, da Faculdade de Direito da
Universidade de Yale. Advogado.
3 Mestrando em Direito Civil na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Pesquisador associado ao Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio).
Advogado.
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inteligência artificial; 3.3. O fator humano na discriminação por
aplicação de inteligência artificial; 4. Conclusão.
1. Introdução: o que se esconde atrás dos novos turcos?
Garry Kasparov, o famoso campeão de xadrez, ao refletir
sobre o jogo disse que o mesmo era como uma miniatura da vida. Não
deixa, portanto, de ser uma fina ironia que na história da inteligência
artificial e da robótica seja rotineiramente lembrada a figura do
autômato “o Turco”, que encantou as cortes europeias no final do
século XVIII ao jogar xadrez com enorme habilidade. A imperatriz
Maria Teresa da Áustria, Napoleão Bonaparte e Benjamin Franklin se
encantaram com a engenhosidade do robô que, vestido em
extravagantes trajes orientais, derrotava até o mais habilidoso
oponente no jogo de xadrez. Era como se estivesse vivo.
Acontece que o Turco nunca possuiu qualquer autonomia, não
sabia jogar xadrez e nem mesmo era provido de qualquer espécie de
inteligência artificial (IA). A partir de uma esperta configuração da
mesa sobre a qual se apoiava o tabuleiro estava escondida uma pessoa
que, na verdade, operava os movimentos do jogador mecânico. A farsa
foi revelada em 1820, rompendo o encanto de uma infinidade de
pessoas que haviam alicerçado as suas visões sobre o futuro da
tecnologia e suas reais capacidades em uma convincente e cativante
ilusão.4 A Europa do final do século XVIII vivia um fascínio por
autômatos e seus mecanismos intrincados que pareciam conferir vida a
objetos antes inanimados. Inicialmente criados como artefatos
exóticos, especialmente trocados entre as cortes europeias como
presentes de luxo, as máquinas gozaram de uma história de crescente
popularização nos anos 1700, terminando o século dentro do
contexto da Revolução Industrial. Havia, portanto, enorme interesse
4 STANDAGE, Tom. The Turk: the life and times of the famous eighteenth-century
chessplaying machine. Nova York: Walker & Company, 2002.

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