Contribuições da causa do negócio jurídico para a disciplina do inadimplemento contratual

AutorEduardo Nunes de Souza
Ocupação do AutorDoutor e mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Páginas83-132
Contribuições da causa do negócio jurídico para
a disciplina do inadimplemento contratual
Eduardo Nunes de Souza1
Sumário: Introdução: a perspectiva causalista como
procedimento hermenêutico; – 1. A noção de causa contratual
e suas aplicações; – 2. Relevância da causa para a disciplina do
inadimplemento e demais vicissitudes da dinâmica contratual;
– 3. À guisa de conclusão.
Introdução: a perspectiva causalista como procedimento herme-
nêutico
Mesmo em um setor tão caracterizado por seu complexo arca-
bouço teórico como o direito civil, poucos temas se notabilizaram
tanto pelas dificuldades conceituais que oferecem ao estudioso
quanto a causa do negócio jurídico. De fato, a doutrina sempre
atribuiu as mais variadas qualificações pessimistas ao tema da cau-
sa, diante da aparente impossibilidade de se apreender seu signifi-
cado definitivo.2 Contudo, caso se deixe de lado, ainda que mo-
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1 Doutor e mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ). Professor Adjunto de Direito Civil da Faculdade de Direito da
UERJ. O autor agradece ao acadêmico Matheus Mendes de Moura pela valiosa
interlocução e cuidadosa revisão deste trabalho, bem como ao Prof. Rodrigo da
Guia Silva pela longeva reflexão conjunta sobre o tema e indispensável leitura
crítica dos originais.
2 Salvatore Pugliatti, por exemplo, afirma tratar-se da mais exuberante fonte
de equívocos de toda a teoria do negócio jurídico (Precisazioni in tema di causa
del negozio giuridico. Diritto civile: metodo-teoria-pratica. Milano: Giuffrè,
1951, p. 105). Michele GIORGIANNI, por sua vez, compara a causa a um edi-
fício em constante construção e que, apesar de apoiado em bases sólidas e anti-
mentaneamente, a perplexidade inicial quanto ao conceito, e caso
se admita, como propõe este estudo, que a causa, em suas múlti-
plas acepções, corresponde sempre a um ou alguns dos atributos de
ordem funcional (isto é, não estrutural) do negócio,3 descortina-se
para o estudioso uma discussão ulterior ainda mais desafiadora e,
talvez, muito mais premente: a de definir as potencialidades inter-
pretativas de aplicação da perspectiva causalista no direito brasilei-
ro.4 Tais potencialidades, a rigor, podem até mesmo contribuir
para uma percepção mais apurada do aludido problema conceitual.
Com efeito, a causa parece tornar-se mais compreensível quando
percebida como uma certa forma de olhar do intérprete para o
contrato, vale dizer, como uma particular postura hermenêutica.
Nessa perspectiva, a causa poderia ser compreendida como a pre-
disposição do observador para analisar o negócio jurídico priorita-
riamente pelo seu perfil funcional, ou seja, com especial atenção
aos seus aspectos de ordem não estrutural.5
Como se sabe, estrutura e função associam-se, na ciência do
direito, a dois momentos históricos distintos da hermenêutica jurí-
dica. Pouco a pouco, a análise exclusivamente estrutural dos insti-
tutos (vinculada a um controle excepcional da autonomia privada e
normalmente relacionada ao Estado liberal clássico e a uma pers-
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gas, a despeito da destreza dos arquitetos, não consegue assumir um contorno
claro (Causa del negozio giuridico (dir. priv.). Enciclopedia del diritto, vol. VI.
Milano: Giuffrè, 1960, p. 547).
3 A sinonímia entre causa e função do negócio é afirmada pela mais autorizada
doutrina. Cf., por todos, Salvatore Pugliatti, segundo o qual: “[...] a causa do
negócio é a sua função jurídica fixada pela síntese dos seus efeitos (jurídicos)
essenciais” (Precisazioni in tema di causa del negozio giuridico, cit., p. 119. Trad.
livre). Ulterior desenvolvimento dessa afirmação será feita mais adiante.
4 Como pondera Mario BARCELLONA, substitu i-se paulatinamente a busca
de um “conceito-substância”, de tradição aristotélica, pelo estudo de um “con-
ceito-função” da causa, mais usual no “pensamento científico contemporâneo”
(Della causa: il contratto e la circolazione della ricchezza. Padova: CEDAM,
2015, p. 144).
5 Como se extrai da clássica lição de Norberto BOBBIO, existem, ao menos
duas formas fundamentais de se analisar determinado conceito no âmbito das
ciências sociais: pelo perfil estrutural (vale dizer, pela descrição dos elementos
componentes do objeto de estudo) ou pelo funcional (isto é, indagando-se, para
além do retrato estático da estrutura, qual finalidade ou interesse configura a
dinâmica eficácia da noção sob análise) (Da estrutura à função: novos estudos de
teoria do direito. Barueri: Manole, 2007, p. 53).
pectiva formalista do Direito) passou, sobretudo com a mudança
de modelo de Estado e com o reconhecimento da força normativa
das Constituições, a ser precedida6 pela análise denominada fun-
cional (atenta aos interesses envolvidos nesses mesmos institutos e
aos valores do sistema).7 Em matéria contratual, essa mudança de-
mandou inserir o contrato, como era então compreendido (mera
estrutura formal, ato pontual formativo, modificativo ou extintivo
de uma relação jurídica) em um contexto maior, que permitisse
apreender a real dinâmica entre as partes. Quais efeitos o contrato
se destina a produzir? Qual estado ideal de coisas as partes acorda-
ram obter? Que interesses esse acordo tem a finalidade de tutelar?
De que modo a eventual relação prévia entre as partes, as tratativas
e demais comportamentos pré-contratuais e os próprios termos da
avença permitem identificar esses efeitos pretendidos e interesses
tutelados? De que modo o inteiro programa contratual,8 esse soma-
tório de efeitos e interesses, coaduna-se (ou não) com os valores do
ordenamento?
Apenas formulando perguntas dessa ordem é possível ao intér-
prete aferir a juridicidade do contrato no plano valorativo, indo
além da simples verificação de possíveis vícios estruturais do ato.9
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6 A análise funcional, registre-se, não exclui a estrutural, ponto de partida
natural (e inevitável) do raciocínio do intérprete. Assim já se pôde afirmar, por
exemplo, a respeito do atual papel do raciocínio subsuntivo (cf. SOUZA, Eduar-
do Nunes de. Merecimento de tutela: a nova fronteira da legalidade no direito
civil. Revista de Direito Privado, vol. 58. São Paulo: Revista dos Tribunais, abr.-
jun./2014, item 2). A função, porém, pode condicionar a estrutura, gozando,
assim, não de exclusividade, mas de prioridade valorativa. A respeito, cf. PER-
LINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro:
Renovar, 2008, p. 642; e, no direito brasileiro, Konder, Carlos Nelson. Contratos
conexos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 32.
7 Cf. BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função, cit., p. 13.
8 No que diz respeito ao termo “programa contratual”, trata-se de noção
usualmente associada ao conteúdo do contrato (BARCELLONA, Mario. Della
causa, cit., p. 146); o termo “conteúdo”, porém, é muitas vezes associado à causa
contratual (como ocorreu, por exemplo, na recente reforma da lei francesa – cf.
item 2, infra).
9 Nesse sentido, destaca Carlos Nelson Konder que, “no exame de um fato
jurídico deve-se privilegiar o perfil funcional – os efeitos buscados, o fim almeja-
do – em detrimento do perfil meramente estrutural, pois aquele é o mais ade-
quado para individuar os interesses que as partes buscam realizar” (Contratos
conexos, cit., p. 32).

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