A obrigação de restituir o lucro obtido com a indevida intervenção em bem ou direito alheio

AutorMarcella Campinho Vaz
Ocupação do AutorMestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Advogada
Páginas417-449
A obrigação de restituir o lucro obtido com a
indevida intervenção em bem ou direito alheio
Marcella Campinho Vaz1
Sumário: Introdução; – 1. Qualificação do lucro da
intervenção; – 1.1. A impropriedade no uso do regime
reparatório da responsabilidade civil; – 1.2. Enriquecimento
sem causa e lucro da intervenção: desafios e análise funcional;
– 2. Quantificação do lucro da intervenção; – 2.1. Imprópria
distinção entre interventor de boa-fé e interventor de má-fé; –
2.2. Conteúdo de destinação do bem e grau de contribuição
causal do interventor; Conclusão.
Introdução
A noção de lucro da intervenção vem há algum tempo sendo ob-
jeto de análise pela doutrina nacional, de tal modo que os tribunais
brasileiros já começam a se atentar para o tema e suas peculiaridades.
Contudo, apesar de existirem precedentes que buscam analisar a
restituição do lucro indevidamente auferido por intervenção em di-
reito alheio – que nada mais é do que o chamado lucro da interven-
ção –, estes o fazem, geralmente, por meio da aplicação do instituto
da responsabilidade civil, sendo o montante correspondente ao refe-
rido lucro utilizado como critério de quantificação de danos mate-
riais, sem que lhe seja conferida qualquer autonomia.
Em muitas situações, verifica-se que o principal fundamento
dessa utilização se baseia na disciplina do art. 210, inciso II, da Lei
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1 Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Advogada.
n.º 9.279/96 (Lei de Propriedade Intelectual), que, como será
aprofundado ao longo desse artigo, estabelece expressamente um
critério de quantificação de lucros cessantes baseado justamente
no lucro obtido por meio da violação de direito alheio.
As primeiras decisões de segunda e terceira instâncias que pa-
recem fazer referência expressa ao instituto do lucro da interven-
ção, analisando-o sob o enfoque do regime restitutório, e não como
critério de quantificação do dano, referem-se a uma ação de ressar-
cimento ajuizada por uma famosa atriz, em face de uma farmácia
de manipulação, que utilizou a imagem daquela, sem qualquer au-
torização, para campanha publicitária de seu produto.
Enquanto a sentença de primeiro grau condenou a farmácia a se
retratar publicamente e a indenizar danos morais e materiais, estes
últimos quantificados de acordo com o valor que se obteria pela
utilização autorizada da imagem da atriz, o Tribunal de Justiça do
Rio de Janeiro (TJ/RJ),2 no recurso interposto pela autora, além de
ter majorado os danos morais, condenou a ré ao pagamento de va-
lor referente ao “lucro da intervenção”, quantificado em 5% do
lucro obtido pela farmácia na venda dos produtos, tendo como base
o período entre o início e o fim da veiculação da propaganda. A
autora, no entanto, interpôs recurso ao Superior Tribunal de Justi-
ça (STJ),3 questionando a quantificação aleatoriamente determi-
nada pelo TJ/RJ.
Nota-se que a expressa condenação ao pagamento do lucro da in-
tervenção, não pela via reparatória, mas, sim, pela restitutória, pare-
ce ser realmente inédita e vai ao encontro do que a civilística brasilei-
ra vem desenvolvendo a respeito da interpretação do assunto. No en-
tanto, esta interpretação ainda não apresenta, em determinados pon-
tos, um denominador comum. No tocante à quantificação do lucro,
por exemplo, a dificuldade em se determinar critérios concretos dei-
xa clara a complexidade que a análise do tema envolve.
Sendo assim, e tendo em vista o avanço da jurisprudência na
aplicação do instituto, o presente artigo abordará as principais dis-
cussões existentes sobre o tema, de modo a tentar esclarecer seus
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2 TJRJ, 13ª C.C., Ap. Cív. 0008927-17.2014.8.19.0209, Rel. Des. Fernando
Fernandy Fernandes, julg. 26.10.2016.
3 STJ, 3ª T., REsp 1698701/RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julg.
02.10.2018.
aspectos mais complexos e os possíveis recursos capazes de deter-
minar uma aplicação mais uniforme e de acordo com a precisa fun-
ção que o dever de restituição do lucro da intervenção busca desen-
volver no sistema jurídico brasileiro.
1. Qualificação do lucro da intervenção
De início, cabe conceituar e compreender o instituto do lucro
da intervenção como o lucro obtido a partir do uso, consumo, frui-
ção ou alienação de bens e direitos alheios.4 Isto é, estabelece-se a
existência desse lucro específico a partir da verificação de um ato5
de determinado indivíduo que usurpa as utilidades de bens ou di-
reitos que são atribuídos à titularidade de pessoa diversa.
Vale mencionar que, apesar de uma eventual intervenção im-
plicar, muitas vezes, em acréscimos patrimoniais – seja por aumen-
to do ativo, seja por redução do passivo – também poderá haver
lucro por intervenção quando houver poupança de despesas,6 as
quais indiretamente causarão acréscimos.
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4 De acordo com Pereira Coelho: “A intervenção ou ingerência de uma pessoa
nos direitos ou bens jurídicos alheios, quer se trate do uso, do consumo ou da
alienação desses bens, pode trazer, e na verdade traz frequentes vezes, uma van-
tagem patrimonial ao autor daquela ingerência ou intervenção. A tal vantagem
patrimonial se chama ‘lucro por intervenção’ ou ‘lucro da intervenção’” (COE-
LHO, Francisco Manuel Pereira. O enriquecimento e o dano. Coimbra: Almedi-
na, 1970, pp. 5-6).
5 Acerca da possibilidade de o ato ser comissivo e/ou omissivo, a doutrina
assim explica: “[N]ão obstante o termo intervenção possa evidenciar certa intro-
missão em direitos alheios, tal como sustenta Antunes Varela, não há necessaria-
mente a prática de um ato comissivo por parte do interventor. Basta pensar no
exemplo do credor putativo, que recebe, passivamente, um crédito alheio, pois
pertencente a um outro credor, o verdadeiro credor. (...) O lucro da intervenção,
portanto, pode envolver um ato omissivo do interventor, isto é, daquele que se
enriquece à custa alheia” (LINS, Thiago. O lucro da intervenção e o direito à
imagem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 16).
6 Nesse sentido, Fernando Noronha explica que: “O enriquecimento por ga-
nho patrimonial efetivo tanto pode ser devido ao aumento do ativo, pelo ingresso
de novos valores, como pode ser devido à redução do passivo, por se extinguir
uma dívida que onerava o patrimônio. (...) O enriquecimento por poupança de
despesas traduz-se na pura manutenção do ativo, em circunstâncias em que de-
veria ter diminuído, e só não diminuiu porque a pessoa utilizou coisas alheias,

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