A obrigação de diligência: sua configuração na obrigação de prestar melhores esforços e efeitos do seu inadimplemento

AutorJudith Martins-Costa
Ocupação do AutorDoutora e Livre Docente em Direito Civil pela Universidade de São Paulo
Páginas133-173
A obrigação de diligência:
sua configuração na obrigação de prestar
melhores esforços e efeitos do seu
inadimplemento
Judith Martins-Costa1
Sumário: Introdução; – 1. Das obrigações de meios
(diligência); – 1.1. Caracterização geral das obrigações de
diligência; – 1.2. A obrigação de empregar melhores esforços; –
2. Do inadimplemento de uma obrigação de melhores esforços
e de seus efeitos; – 2.1. O inadimplemento relativo (mora); –
2.2. Inadimplemento definitivo; – 2.3. Efeitos do
inadimplemento definitivo: execução em espécie, execução
pelo equivalente pecuniário e exercício do direito de resolução;
– 3. Conclusão.
Introdução
No primeiro quarto do século XIX, René Demogue2, civilista
francês, tratando do problema da repartição do ônus da prova em
matéria de obrigações contratuais e delituais, ensaiou uma distin-
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1 Doutora e Livre Docente em Direito Civil pela Universidade de São Paulo.
Foi professora de Direito Civil na Faculdade de Direito da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. É Presidente do Instituto de Estudos Culturalistas – IEC.
A autora agradece imensamente a revisão e a constante troca de ideias com
Rafael Xavier, Giovana Benetti e Gustavo Haical, bem como as sugestões de
Luca Giannotti e Catarina Paese. Agradece, ainda, a primorosa pesquisa de
jurisprudência de Pietro Webber.
2 DEMOGUE, René. Traité des obligations en général. Tomo V. Paris: Librai-
rie Arthur Rousseau, 1925, p. 539.
ção que faria fortuna: sobre o devedor, escreveu, pode pesar uma
obrigação que não terá sempre a mesma natureza.
Haverá obrigação de resultado quando, implícita ou expressa-
mente, o contratante obriga-se – como está o nome a indicar – a
prestar determinado resultado. Por exemplo, construir um prédio,
ou elaborar um trabalho técnico, como um laudo contábil; trans-
portar uma pessoa, ou disponibilizar um determinado número de
bens a serem comercializados, ou vender determinada coisa. Nes-
tes casos, para adimplir o contrato, o devedor tem o dever de pres-
tar o resultado prometido, isto é: o prédio, construído; o laudo,
confeccionado; a pessoa transportada ao destino combinado; os au-
tomóveis entregues à concessionária para comercialização na quan-
tidade ajustada; o apartamento a ser vendido, etc.
Em face dessa modalidade de obrigações, afirmava Demogue,
haveria inexecução3, tendo o credor ganho de causa sempre que o
resultado não fosse alcançado, a menos que o devedor provasse a
impossibilidade de prestar por caso fortuito ou força maior. Mas
questionava: e se o devedor tivesse prometido adotar certas medi-
das que visassem a certo resultado?
Tratava, então, da segunda modalidade, que nomeou como
obrigação de meios. Referia, dentre outras hipóteses, o dever do
médico de empregar seus cuidados para curar o paciente. Se o
doente morresse, dizia, ninguém pensaria em condenar o médico.
E concluía caber ao “objetivo do contrato, às regras gerais e à von-
tade das partes” estabelecer a distinção sobre a natureza do dever
prometido: se o de alcançar certo resultado ou empregar sua dili-
gência (meios) para que certa finalidade fosse alcançada4.
Desde então, a dicotomia expressada e etiquetada por Demo-
gue5 é um verdadeiro acquis da Ciência Jurídica ocidental, malgra-
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3 Os termos inexecução, inadimplemento e incumprimento serão aqui utili-
zados como sinônimos, reportando-se ao mesmo fenômeno, qual seja, o não
cumprimento imputável de uma obrigação contratual.
4 DEMOGUE, René. Traité des obligations en général. Tomo V. Paris: Librai-
rie Arthur Rousseau, 1925, p. 543.
5 Assim reconhece Comparato, ao assinalar ser ainda vacilante a terminologia
em 1967, época que escreveu, anotando: “‘Obrigações de meios’ e ‘obrigações de
resultado’ foram as denominações empregadas por Demogue. André Tunc pre-
fere as expressões ‘obrigações determinadas’ e ‘obrigações gerais de prudência e
diligência’. As obrigações de meios para Mengoni são ‘obrigações de simples
do ora se proclame a sua ainda maior ancianidade6, ora se brade sua
inutilidade e, até mesmo, uma suposta “inconstitucionalidade”7. A
prática desmente, todavia, os áugures de sua falta de serventia.
Não apenas a distinção dogmática tem uso frequente na vida dos
contratos empresariais8 quanto está consagrada, por exemplo, nos
Princípios dos Contratos Comerciais Internacionais do UNI-
DROIT, de 2016, cujo art. 5.1.4 explicita: “o devedor de uma obri-
gação de resultado deve fornecer o resultado prometido”; “o deve-
dor de uma obrigação de meios deve empregar na execução de sua
prestação a prudência e a diligência de uma pessoa razoável de
mesma qualidade, colocada na mesma situação”9.
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comportamento’, e para Betti ‘obrigações de conduta’ (contegno)” (COMPARA-
TO, Fábio Konder. Obrigações de meio, de resultado e de garantia. Revista dos
Tribunais, v. 386, dez./1967. Republicado em Estudos e Pareceres de Direito
Empresarial. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 524, nota de rodapé n. 4).
6 Apesar de sua consagração termonológica apenas no séc. XX, diz Deroussin,
a doutrina “sempre, mais ou menos conscientemente, diferenciou a situação na
qual o devedor encontra-se precisamente obrigado à obtenção de um resultado
(na falta do qual a responsabilidade é automaticamente desencadeada) daquela
segundo o qual a atitude que o devedor adota conta mais que o resultado que foi,
ou não alcançado”. Historiadores pontuam essa distinção (ou, ao menos, algumas
de suas nuances) em juristas do Direito intermédio, acerca da responsabilidade
médica. (v. DEROUSSIN, David. Histoire du Droit des Obligations. 2ª ed. Pa-
ris: Economica, 2012, p. 60, em tradução livre). Outros trabalhos aventam a
percepção do discrime “de forma mais ou menos explícita na doutrina germânica
desde fins do século XIX”, como relata COMPARATO, Fábio Konder. Obriga-
ções de meio, de resultado e de garantia. Revista dos Tribunais, v. 386,
dez./1967. Republicado em Estudos e pareceres de Direito Empresarial. Rio de
Janeiro: Forense, 1978, p. 524.
7 Para um arrolamento das críticas à distinção, vide RENTERÍA, Pablo. Obri-
gações de meio e de resultado. Análise crítica. Rio de Janeiro: Método, 2011,
especialmente p. 27-40. Para o enquadramento dogmático, v. MINASSE, Elton.
Contribuição ao estudo das obrigações “de meios” e “de resultado”. Dissertação
de Mestrado. Orient: Professor Alcides Tomasetti Júnior. Faculdade de Direito.
Universidade de São Paulo, 2005, especialmente p. 77-87.
8 Com levantamento sobre o uso crescente na prática societária e empresarial,
vide: COSTA, Márcio Henrique. Cláusula de melhores esforços – best efforts: da
sua incidência e efetividade nos contratos. Interpretação e prática. Curitiba: Ju-
ruá, 2016.
9 UNIDROIT Principles, 2016. Os Princípios acolhem, no art. 5.1.4, a distin-
ção entre obrigações de meio (obligation de moyens, na tradução francesa; duty
of best efforts, na língua inglesa) e de resultado (obligation de résultat, em fran-

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