Critérios para aferição concreta do adimplemento substancial

AutorMariana Ribeiro Siqueira
Ocupação do AutorMestre e Doutoranda em Direito Civil pela UERJ
Páginas175-215
Critérios para aferição concreta do
adimplemento substancial
Mariana Ribeiro Siqueira1
Sumário: 1. As dificuldades de aferição do adimplemento
substancial; – 2. Pressupostos para a caracterização do
adimplemento substancial; – 3. O tormentoso exame da
existência do interesse útil do credor no contrato; – 4. A
importância da obrigação inadimplida; – 5. Necessária análise
do comportamento das partes; – 6. Ponderação das
consequências advindas para os contratantes; – 7. Conclusão.
1. As dificuldades de aferição do adimplemento substancial
Diante da ausência de dispositivo legal que regule o instituto,
de conceitos que definam o que é o adimplemento substancial –
ou, ainda, um inadimplemento suficientemente grave –, da diver-
sidade contratual à qual se aplica a teoria, das peculiaridades fáti-
cas de cada caso concreto, cabe à doutrina e à jurisprudência a
tarefa de identificar limites e parâmetros que possam auxiliar não
só os julgadores, quando do seu emprego prático em hipóteses liti-
giosas, mas também aqueles que, diariamente, contratam e nego-
ciam, assegurando-lhes uma maior previsibilidade.2,3
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1 Mestre e Doutoranda em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Direito
Privado pela Université de Droit d Economie et des Sciences Sociales de Paris.
Advogada. Sócia de Siqueira, Bottrel, Almeida e Silva Advogados.
2 Nesse sentido, Anderson Schreiber: “o atual desafio da doutrina está em
fixar parâmetros que permitam ao Poder Judiciário dizer, em cada caso, se o
adimplemento afigura-se ou não significativo, substancial. À falta de suporte
técnico, as cortes brasileiras têm se mostrado tímidas e invocado o adimplemen-
Com efeito, por não haver no ordenamento jurídico brasileiro
parâmetro legal expresso que indique quando determinado adim-
plemento será substancial a ponto de impedir que o credor exerça
o seu direito de resolver o contrato por inadimplemento, caberá ao
juiz, diante das particularidades da hipótese a ele submetida, deci-
dir por sua aplicação ou afastamento.4
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to substancial apenas em abordagem quantitativa”. (SCHREIBER, Anderson. A
tríplice transformação do adimplemento: adimplemento substancial, inadimple-
mento antecipado e outras figuras. Revista Trimestral de Direito Civil, v.32,
p.19, out./dez. 2007). A relevância do estudo da importância do inadimplemen-
to também foi ressaltada, no direito estrangeiro, por Paolo Cendon ao se mani-
festar sobre o art. 1455 do Código Civil Italiano: “Si tratta di una norma che
illumina l’intera materia della risoluzione per inadempimento, stabilendo, seppu-
re in maniera un poco vaga, la necessità di connotati particolari dell’inadempi-
mento utile allo scioglimento del vincolo contrattuale. Con ciò, il Legislatore ha
ribadito quale sia l’ambito funzionale dell’istituto, ossia la tutela del sinallagma:
soltanto un inadempimento così grave da ledere significativamente questo rappor-
to di reciprocità può portare alla risoluzione del contrato; se tale gravita non si
riscontra, non vi è pregiudizio per il legame tra le prestazioni e conseguentemente
non sussiste ragione per sciogliere l’intero rapporto contrattuale.” Tradução livre:
“Trata-se de uma norma que ilumina toda a matéria da resolução pelo inadimple-
mento, estabelecendo, ainda que de forma um pouco vaga, a necessidade de
conhecer as particularidades do inadimplemento apto a desfazero vínculo con-
tratual. Com isso, o Legislador reafirmou qual o âmbito funcional do instituto,
ou seja, a tutela do sinalagma: apenas um inadimplemento tão grave capaz de
afetar significativamente esta relação de reciprocidade, pode levar à resolução do
contrato; se tal gravidade não se verificar, não há prejuízo para o vínculo entre as
prestações e, consequentemente, não subsiste razão para o desfazimento de toda
a relação contratual.” (CENDON, Paolo. Commentario al codice civile. Milano:
Giuffrè, 2010. p.1611).
3 REsp 1.581.505/SC. Relator: Min. Antonio Carlos Ferreira. Julgamento:
18/08/2016. Órgão Julgador: Quarta Turma. Publicação: DJe 28/09/2016;
REsp 1.622.555/MG. Relator: Min. Marcos Buzzi. Rel. p/ Acórdão Ministro
Marco Aurélio Bellizze. Julgamento: 232/02/2017. Órgão Julgador: Segunda
Turma. Publicação: DJe 16/03/2017.
4 Nesse sentido, Anelise Becker defende que “não existe fórmula fixa para
determinar o que seja o adimplemento substancial de um contrato. Cabe ao
julgador, face às circunstâncias do caso concreto, pesar a gravidade do descum-
primento e o grau de satisfação dos interesses do credor. Isso implica em um
alargamento dos limites do poder judicial na apreciação do caso concreto, o que,
por sua vez, pressupõe uma mudança no próprio método de aplicação do direito,
ou seja, a superação do raciocínio lógico-subsuntivo pelo da concreção”. (BEC-
KER, Anelise. A doutrina do adimplemento substancial no direito brasileiro e em
Ocorre que a teoria do adimplemento substancial vem sendo
aplicada indistintamente. A despeito do que já restou consignado
em julgados proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça, que, por
diversas vezes afirmou a necessidade de aferição dos critérios
quantitativos e qualitativos para a verificação da aplicação da teoria
ao caso concreto5, entendimento esse que foi, inclusive, objeto de
enunciado da Jornada de Direito Civil6, a análise das decisões judi-
ciais demonstra que, na grande maioria dos casos, o único critério
utilizado pelos julgadores é o quantitativo.
Além de ignorar fatores de extrema importância para a aferição
do cumprimento essencial da obrigação – tais como a função da
obrigação contratada, o interesse útil do credor, o comportamento
das partes, a importância da obrigação inadimplida e as consequên-
cias advindas dos remédios aplicáveis –, a jurisprudência se mostra
extremamente díspar na aplicação do critério quantitativo: não há
uniformidade sequer no percentual do contrato que, uma vez
adimplido, caracterizaria o seu adimplemento substancial.
A dificuldade em traçar parâmetros para a verificação ou não da
substancialidade do adimplemento não é um problema apenas do
direito brasileiro. Por tratar-se de conceito aberto, aplicável a uma
considerável variedade de espécies contratuais, também ordena-
mentos estrangeiros, entre os quais destaca-se o francês, encon-
tram dificuldades para encontrar balizas que norteiem os julgado-
res na aplicação da teoria ao caso concreto.7
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perspectiva comparatista. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Fe-
deral do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v.9, n.1, p.63, nov. 1993).
5 REsp 1.051.270/RS. Relator: Min. Luis Felipe Salomão. Julgamento:
04/08/2011. Órgão Julgador: Quarta Turma. Publicação: DJe 05/09/2011;
REsp 1.215.289. Relator: Min. Sidnei Beneti. Julgamento: 05/02/2013. Órgão
Julgador: Terceira Turma. Publicação: DJe 21/02/2013; REsp 1.581.505/SC.
Relator: Min. Antonio Carlos Ferreira. Julgamento: 18/08/2016. Órgão Julga-
dor: Quarta Turma. Publicação: DJe 28/09/2016.
6 Enunciado 586 da Jornada de Direito Civil: “Para a caracterização do adim-
plemento substancial (tal como reconhecido pelo Enunciado 361 da IV Jornada
de Direito Civil – CJF), levam-se em conta tanto os aspectos quantitativos como
qualitativos”.
7 Nesse sentido: « Le gros du contentieux de la résolution porte naturellement
sur la détermination du seuil de gravité de nature à justifier cette mesure. A cet
égard, la stipulation d’une clause résolutoire présente un avantage certain: le
juge, en principe, est lié par la définition des fautes arrêtée par les parties. Mais

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