Inadimplemento por perda do interesse útil para o credor

AutorGabriel Rocha Furtado
Ocupação do AutorDoutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor Adjunto de Direito na Universidade Federal do Piauí (UFPI). Advogado
Páginas51-82
Inadimplemento por perda do interesse
útil para o credor
Gabriel Rocha Furtado1
Sumário: Introdução; – 1. Mora e inadimplemento no direito
civil brasileiro; – 2. Resolução contratual por inadimplemento;
– 3. O problema da ausência de interesse útil do credor como
pressuposto para a resolução contratual; – 4. A satisfação do
interesse do credor entre a execução específica e a resolução do
contrato; – 5. Considerações finais.
Introdução
Este estudo busca apresentar a mora como um estado interme-
diário entre o adimplemento e o inadimplemento. Não em um as-
pecto estrutural, meramente descritivo da previsão legal, mas sim
em um aspecto funcional, atentando para a sutil – porém essencial
– importância do interesse útil do credor como ponto de inflexão
entre aqueles estados.
Sua compreensão, neste viés, é essencial pois os efeitos práticos
que podem decorrer de uma inexecução obrigacional são variados,
conforme previsto no art. 475 do Código Civil: “a parte lesada pelo
inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não prefe-
rir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, in-
denização por perdas e danos”. Aliado a isso, preceitua o parágrafo
único do art. 395 do mesmo texto codificado que “se a prestação,
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1 Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ). Professor Adjunto de Direito na Universidade Federal do Piauí
(UFPI). Advogado.
devido à mora, se tornar inútil ao credor, este poderá enjeitá-la
[isto é, poderá resolver a obrigação], e exigir a satisfação das perdas
e danos”.
É preciso, então, que se tenha precisa compreensão do peso da
noção conceitual de utilidade no estudo do inadimplemento das
obrigações. É essa a proposta deste estudo, e o que se passa a fazer.
1. Mora e inadimplemento no direito civil brasileiro
A relação jurídica nascida de um contrato tem um propósito e,
assim, tende sempre a um fim.2 Transcendendo à especificação em
concreto do objeto de uma determinada obrigação, pode-se afir-
mar com segurança que ela tem uma finalidade e visa a realizar
interesses desejados e previamente estipulados pelas partes con-
tratantes – bem como, vale frisar, promover outros valores e inte-
resses socialmente relevantes e tutelados pelo ordenamento.
Não se deve, por isso mesmo, encarar a relação contratual
como a estéril junção de dois momentos estáticos – o nascimento e
o adimplemento da obrigação3 –, senão como um contínuo, dinâmi-
co e fluido, em que ao lado dos deveres principais e secundários de
prestação atuam outros elementos, como os deveres laterais.4
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2 “O adimplemento atrai e polariza a obrigação. É o seu fim” (SILVA, Clóvis
do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p.
17). Também nesse sentido, SILVA, João Calvão da. Cumprimento e sanção
pecuniária compulsória. Coimbra: Boletim da Faculdade de Direito da Universi-
dade de Coimbra, 1987, pp. 70-75.
3 “Constituindo o adimplemento a finalidade da relação obrigacional, fácil é
constatar que comumente ocorre o pagamento, a solutio, satisfazendo o devedor
a pretensão do credor de forma voluntária ou ‘espontânea’, como diz o art. 580,
parágrafo único do CPC, e exata, isto é, no tempo, lugar e forma estatuídos em
lei ou no contrato (CC, art. 394), em acordo à finalidade econômico-social, à
boa-fé e aos bons costumes (CC, art. 187)” (MARTINS-COSTA, Judith. TEI-
XEIRA, Salvio de Figueiredo (Coord.). Comentários ao novo Código Civil. Rio
de Janeiro: Forense, 2005. Volume V, tomo I: Do direito das obrigações, do
adimplemento e da extinção das obrigações, p. 117. Grifos no original).
4 “[...] numa compreensão globalizante da situação jurídica creditícia, apon-
tam-se, ao lado dos deveres de prestação – tanto deveres principais de prestação,
como deveres secundários –, os deveres laterais (‘Nebenpflichten’), além de di-
reitos potestativos, sujeições, ónus jurídicos, expectativas jurídicas, etc. Todos os
Diante de sua complexidade, percebe-se que o contrato é um
processo encadeado e direcionado à satisfação dos interesses que
levaram à sua criação.5 Não basta às partes, deste modo, que cum-
pram com suas prestações no tempo, no lugar e na forma devidos.
Mais que isso, é necessário que se comportem durante todo o iter
relacional de modo leal, cooperativo e honesto, a fim de que o
resultado útil inicialmente almejado seja alcançado em toda a sua
plenitude e com o máximo de proveito possível aos contratantes.6
Numa sentença, especialmente difundida na teoria contratual con-
temporânea: é preciso que os contratantes ajam conforme a boa-fé
objetiva.
Esse novo princípio se estabeleceu definitivamente como um dos
mecanismos de equilíbrio e justiça no direito contratual contempo-
râneo, ao atuar como ferramenta de refreamento à indiscriminada
autonomia privada dos contratantes.7 No direito brasileiro, cumpre
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referidos elementos se coligam em atenção a uma identidade de fim e consti-
tuem o conteúdo de uma relação de carácter unitário e funcional: a relação obri-
gacional complexa, ainda designada relação obrigacional em sentido amplo ou,
nos contratos, relação contratual” (COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das
obrigações. 9ª ed. revista e aumentada. Coimbra: Almedina, 2001, p. 63. Grifos
no original).
5 “A relação obrigacional nasce e desenvolve-se com vista ao objectivo que lhe
dá vida e confere razão de ser: o cumprimento” (Ibidem, p. 95).
6El contrato fue concebido con un comienzo a través del consentimiento y un
fin, por efecto de alguna causa de extinción; su estudio se pareció entonces a una
fotografía estática. Hoy en día se comienzan con contactos sociales, tratativas,
ofertas, consentimiento, ejecución extensa, deberes poscontractuales, todo en una
secuencia en la que resulta difícil separar etapas; su estudio se parece más a una
película capaz de captar el dinamismo. La duración de las relaciones jurídicas es
un fenómeno difundido en la actualidad” (LORENZETTI, Ricardo Luis. Esque-
ma de una teoria sistemica del contrato. TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz
Edson (Org.). Doutrinas essenciais: obrigações e contratos. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2011. Volume I, p. 494).
7 A respeito dos chamados novos princípios contratuais e sua relação com a
autonomia privada, leciona Gustavo TEPEDINO: “Pode-se afirmar que os três
princípios cardinais do regime contratual, a autonomia privada, a força obrigató-
ria dos contratos e a relatividade obrigacional, embora prestigiados pelo sistema,
adquirem novos contornos com o surgimento dos princípios da boa-fé objetiva,
do equilíbrio econômico e da função social dos contratos. A boa-fé objetiva atua
preponderantemente sobre a autonomia privada” (Novos princípios contratuais
e teoria da confiança: a exegese da cláusula to the best knowledge of the sellers.
Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. Tomo II, p. 250).

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