Crise bancária e responsabilidade civil: análise da jurisprudência portuguesa recente

AutorAdelaide Menezes Leitão
Ocupação do AutorProfessora-Associada da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Páginas1-19
CRISE BANCÁRIA E RESPONSABILIDADE CIVIL:
ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA
PORTUGUESA RECENTE1
Adelaide Menezes Leitão
Professora-Associada da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa..
Sumário: 1. Regras especiais para a insolvência dos bancos. 2. Modelos de resposta à crise
bancária. 3. Os modelos de intervenção bancária afectam o funcionamento da responsabilidade
civil pelos danos causados pela insolvência bancária. Jurisprudência portuguesa.
Na presente sessão, dedicada às consequências da insolvência bancária nas acções
de responsabilidade civil, consideramos essencial responder a três perguntas. A primeira
incide sobre se se justif‌ica consagrar regras especiais para a insolvência dos bancos. A
segunda respeita aos modelos concretos de resposta à insolvência bancária no ordena-
mento jurídico nacional. A terceira concerne a saber se esses modelos afectam a possi-
bilidade de funcionamento do instituto da responsabilidade civil pelos danos causados
pela insolvência bancária.
1. REGRAS ESPECIAIS PARA A INSOLVÊNCIA DOS BANCOS
Na doutrina estrangeira discute-se se as instituições bancárias devem ou não estar
sujeitas ao Direito da Insolvência comum2. No ordenamento jurídico nacional, o art. 2º,
n. 2, b) do CIRE determina que as instituições de crédito e as sociedades f‌inanceiras estão
subtraídos, regra geral, ao regime da insolvência3. Convém compreender se a referida
especialidade se justif‌ica.
Ao longo do século XX registaram-se crises no sector f‌inanceiro, especialmente a
crise de 1929, que revelaram a falta de mecanismos adequados para lidar com situações
de insolvência bancária. Desde a referida crise que se discute nos EUA a necessidade de
regras especiais para os bancos, que permitam proteger as economias da instabilidade
f‌inanceira e das perdas individuais dos depositantes. Deve ser equacionado se este con-
1. O presente texto intitulado a Crise bancária e responsabilidade civil foi apresentado nas III Jornadas Luso-Brasileiras
de Responsabilidade Civil (7 e 8 de Novembro de 2019), na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Pelo respectivo convite consigna-se um agradecimento à Professora Doutora Mafalda Barbosa Miranda.
2. Eva Hüpkes, Insolvency – why a special regime for banks? Current Developments in Monetary and Financial Law,
v. 3, 2003.
3. Exceptuam-se do processo de insolvência: As empresas de seguros, as instituições de crédito, as sociedades f‌inanceiras, as
empresas de investimento que prestem serviços que impliquem a detenção de fundos ou de valores mobiliários de terceiros
e os organismos de investimento colectivo, na medida em que a sujeição a processo de insolvência seja incompatível com
os regimes especiais previstos para tais entidades (art. 2./2, b) do CIRE). MARTINS, Alexandre Soveral. Um curso de
direito da insolvência. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2016. 69.
ADELAIDE MENEZES LEITÃO
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junto de regras para a crise bancária deve ser um Direito da Insolvência especial ou um
puro Direito Bancário, com um regime em que os princípios insolvenciais são comple-
tamente postos de lado4.
A justif‌icação para um especial tratamento da insolvência bancária assenta no papel
único que os bancos desenvolvem na economia. Com efeito, os bancos são fundamentais
em termos de serviços f‌inanceiros essenciais, tais como a concessão de crédito, os depó-
sitos bancários e o sistema de pagamentos5. Por outro lado, a especialidade dos bancos
assenta na sua vulnerabilidade devido à sua exposição à perda de conf‌iança pública,
bastando uma notícia menos positiva para a corrida ao levantamento dos depósitos
bancários e à dif‌iculdade de obtenção de crédito junto de outras instituições bancárias.
Em razão da referida dependência da conf‌iança, a crise bancária envolve a possibilidade
de danos a todo o sistema económico: o chamado risco de contágio ou risco sistémico6.
Assim, a lei necessita antes de mais de enquadrar a prevenção da insolvência bancá-
ria. Mas, para além de medidas preventivas, o sistema jurídico tem de encontrar medidas
correctivas que permitam lidar com bancos já insolventes. É, neste contexto, que em
diversos ordenamentos jurídicos surge legislação bancária especial e são criadas autori-
dades nacionais com funções de supervisão bancária7. Ora, a realidade tem demonstrado
que, muitas vezes, a forma de solução da insolvência bancária é determinada através de
procedimentos decididos ad hoc. Esta situação resulta do facto de, em alguns ordena-
mentos jurídicos, não existir legislação especial para lidar com a insolvência bancária,
ou haver uma sujeição das instituições bancárias à legislação insolvencial comum8.
Note-se que nem sempre a legislação sobre insolvência é completamente inade-
quada aos bancos. Áreas como a avaliação do activo, a verif‌icação das reclamações dos
credores e a liquidação do património seguem regras próximas da insolvência de qual-
quer sociedade comercial. Assim, no passado, alguns ordenamentos jurídicos europeus
aplicavam aos bancos a legislação da insolvência como lei geral, apenas afastada em caso
de existência de normas especiais.
Esta situação é completamente distinta nos EUA, em que o Congresso norte-ame-
ricano optou por aprovar um regime especial de insolvência bancária. Desde o National
Bank Act de 1864 que se encontra consagrado um regime especial de insolvência bancária,
tendo sido criada em 1933 uma única autoridade competente nesta matéria, bem como
um fundo de garantia dos depósitos (Federal Deposit Insurance Corporation). Iniciava-se,
assim, uma interessante clivagem entre o direito norte-americano e o europeu no sentido
de ser da competência de uma autoridade administrativa e não dos tribunais a aplicação
da legislação de insolvência. Porém, esta solução mantém-se controversa mesmo no
ordenamento jurídico norte-americano. Efectivamente, há quem defenda que os bancos
insolventes não deviam ser submetidos à autoridade de regulação e supervisão por já não
se encontrarem aptos a desenvolver a actividade bancária, mas antes ser tratados como
4. HÜPKES, Eva. Insolvency – why a special regime for banks, 459.
5. HÜPKES, Eva. Insolvency – why a special regime for banks, 460-461.
6. HÜPKES, Eva. Insolvency – why a special regime for banks, 461-462.
7. HÜPKES, Eva. Insolvency – why a special regime for banks, 462.
8. HÜPKES, Eva. Insolvency – why a special regime for banks, 462-463.

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